Markl: “Os nossos pais tiveram o 25 de Abril, o Maio de 68, tiveram luta, ideais. Nós tivemos Peta Zetas”

Texto de Jorge Manuel Lopes e fotos de Jorge Amaral/Global Imagens

É meio-dia de uma segunda-feira não muito tórrida em Lisboa e não está a ser fácil encontrar Nuno Markl. A sua manhã começou pelas seis e pico, como sempre, ultimando os textos que leu pouco depois na Rádio Comercial em “O homem que mordeu o cão”, rubrica em que desembrulha tropeções do quotidiano, de cá e do mundo, desde 1997.

Entretanto, outros tropeções, de natureza familiar, trocam as voltas ao horário e local da entrevista, mas tudo acaba em bem, em Benfica, o território onde Markl passou os primeiros dos seus 47 anos. As cigarras não se calam, o vento também não, a esplanada protege.

Nuno Markl, arranjador de assuntos, há décadas a moldar a comédia e as memórias da cultura pop em Portugal. No humor, acredita, não há fronteiras mas há bom senso. Nas memórias há “1986”, série de culto e sucesso com direito a maratona em ecrã de cinema já em setembro, na Aula Magna. Só falta a sua revisão do “Verão azul”.

Uma réplica em tamanho real da personagem central do filme “E.T.- O extra-terrestre” de Steven Spielberg é uma das aquisições mais recentes d’A Cave do Markl.

O “1986” está nos primeiros lugares entre as coisas que mais se orgulha de ter feito? Reparando na forma como tem falado da série, é o que parece.
É bastante estranho chegar a esta conclusão aos 47 anos, e para aí 30 de carreira, mas a esmagadora maioria das coisas que fiz foram trabalhos de encomenda.

Até “O homem que mordeu o cão”?
Até esse, que se tornou uma espécie de ex-líbris. Ele existe porque o Luís Montez, quando assumiu a liderança da Rádio Comercial em 1997, disse-me que era giro haver uma coisa qualquer de notícias bizarras. Em toda a minha carreira há sempre alguém que diz algo desse género, e comecei a pensar, “Porra, consigo tornar as encomendas em coisas pessoais, mas é raro o momento em que escrevo algo e digo, ‘tomem lá e vejam o que acham disto’”.

Foi assim que apareceu o “1986”? “Tomem lá e vejam o que acham disto”?
O que o tornou especial foi ter essa natureza. Inventei aquilo, que era para ser uma curta-metragem, há uma data de anos, e depois chegou-se a uma altura, no ano passado, em que consegui escrever uma história maior à volta da ideia inicial. São raros os momentos em que isto aconteceu – foi com a série e com o filme feito há dois anos, o “Refrigerantes e canções de amor”. O “1986” diz-me mais ainda porque é uma história muito pessoal e porque foram criadas condições para uma tempestade perfeita. O ambiente nas filmagens era ótimo, e assim que aqueles atores ocuparam aquelas personagens, já não podiam ser outros.

Uma tempestade perfeita que se estendeu à reação das pessoas.
Fiquei muito contente por se ter gerado este culto. Houve gente a fazer ilustrações e “fan art” sobre a série. Tudo isso foi uma coisa nova [para mim]. Daí o orgulho.

Houve também quem, em fóruns, inventasse biografias das personagens da série, de 1986 ao presente.
Ainda me ri bastante com algumas coisas que as pessoas escreveram. Foi giro, até porque, ao longo de anos, e se se olhar para a maioria da minha escrita para televisão, d’“Os contemporâneos” ao “Herman enciclopédia”, estou habituado a trabalhar com unidades narrativas muito pequeninas, e não há tempo por aí além para te afeiçoares a personagens. E termos conseguido, não só eu mas também a minha irmã [Ana Markl], o Filipe Homem Fonseca e a Joana Stichini Vilela (que nos ajudou imenso com a pesquisa), criar estas criaturas que entraram no coração das pessoas, é uma sensação nova e boa. Houve pessoas a escrever, “Chorei no episódio final.” Isto é novo – nunca tinha feito ninguém chorar com algo que tivesse escrito!

Até onde gostaria de levar o conceito da série?
Acho que era possível levar até uma segunda temporada. Ainda não fazemos ideia se vai haver, até porque o “1986” apanhou uma fase de transição na [direção da] RTP. Ela não foi idealizada para ter uma segunda série de episódios mas de repente, como gostamos das personagens e as pessoas também, ficamos com a ideia que era giro fazer só mais uma temporada. Passada no verão de 86.

A criatura da empreitada cinematográfica “Alien” também integra a coleção do autor de “O homem que mordeu o cão”

Porquê no verão?
Os verões daquela altura são riquíssimos para explorar. Basta dizer que, em 86, apareceu o Calippo. E foi o ano do Mundial de Futebol no México [com presença portuguesa, marcado pelo Caso Saltillo]. Adorávamos fazer uma espécie de “Verão azul”. Fica aqui o repto [risos].

Quando andou na vida de jornalista radiofónico no início dos anos 1990, queria ser como quem?
Não tinha modelos no jornalismo. Adorava rádio, queria fazer rádio. Apaixonei-me pela rádio como ouvinte. Cresci numa altura de muita criatividade radiofónica, com tudo o que se passava na Rádio Comercial: os programas do Herman, o “Pão com manteiga” [de Carlos Cruz], “As noites longas do FM estéreo” do António Santos, que eu adorava. Por outro lado, havia tantas rádios piratas que sentia que podia fazer parte de alguma delas a qualquer momento.

E fez.
Havia uma aqui mesmo ao virar da esquina [na zona de Benfica]. Era um casebre onde funcionava a Rádio Voz de Benfica, que encontrei por acaso numa das minhas infinitas pesquisas pelo éter. Foi aí que ganhei o gosto pela rádio.

E o jornalismo?
Percebi que, como não tinha médias para entrar em Comunicação Social, achei que era uma opção tentar o curso do CENJOR. Foram nove meses intensivos em que ficámos com noções gerais acerca de todo o tipo de jornalismo, e era uma porta para entrar no mundo da rádio. E não se perde nada: devo imenso do que sei hoje, e do trabalho que faço em humor, à bagagem cultural que o jornalismo me deu.

E também pela procura de histórias?
Fez-me sair da casca. Era um tipo completamente metido para dentro. (Ainda sou, mas consigo simular.) Tornou-me mais alerta para o que acontecia à minha volta e deu-me uma coisa extraordinária no jornalismo e que tem muito a ver com o humor: o poder de síntese.

Que assuntos estão excluídos dos seus textos?
Sou muito contra a ideia de que devemos ter uma lista de temas a não abordar.

Nem uma lista mental?
Não. O último grande programa de sketches em que colaborei foi “Os contemporâneos” [2008], no qual se falava muito da atualidade, e não havia assuntos proibidos. A única coisa que precisávamos de sentir é que aquilo tinha graça. Se tivesse graça, e um ponto de vista, avançávamos – nem que fosse com o tema mais tabu. O humor é feito de risco. O que a comédia faz é exorcizar toda a merda das nossas vidas. Gozar com as coisas com que não se deve gozar é, de certa forma, uma maneira de nos libertarmos delas.

Com que coisas goza e não devia gozar?
A morte é o exemplo maior. Quando o meu pai morreu, achei que o devia homenagear na rádio com piadas à volta da morte. Porque sabia que ele iria rir-se. Mesmo assim, houve uma senhora que ligou para a rádio a dizer: “Parece impossível, a gozar com o seu pai.” Respondi: “Não, desculpe. Do meu pai percebo eu.”

No humor vale tudo?
Há algum bom senso de perceber qual o meio, o contexto em que estamos a fazer uma ou outra piada. Obviamente, as piadas que faço no “Uma nêspera no cu” com o Bruno [Nogueira] e o Filipe Melo não são as mesmas que faço n’“O homem que mordeu o cão”.

A política é dos tópicos mais desconfortáveis.
Sim.

Sobretudo em Portugal.
Mais desconfortável do que a política, hoje em dia, é o futebol. Desconfortável no sentido em que, se escreves uma piada sobre o assunto, sabes que pode haver alguém que te quer matar [risos]. Ou, pelo menos, bater.

É um fenómeno recente?
Quando comecei a escrever humor, o futebol não era o tema tabu. Era a religião. Um dos primeiros textos que escrevi nas Produções [Fictícias, agência e produtora de media fundada por Nuno Artur Silva em 1993] foi “A última ceia”, para o Herman, que gerou aquela polémica toda. Se aquele texto fosse feito hoje, não causava nem 1% do caos que aconteceu. No entanto, se agora se falar de futebol, ameaçam-nos a família, matam-nos os cães…… De certa maneira, o futebol é a nova religião.

Não faz muito humor político.
Sinto que não tenho grande jeito para isso. Adorava ver os gajos do “Contra informação” a escrever as piadas, e o Ricardo [Araújo Pereira] quando faz humor político. Aborrece-me se tenho uma encomenda em que preciso de fazer algo desse género. Prefiro fazer humor sobre as pequenas coisas da vida.

Chegar às grandes questões existenciais através de pequenos exemplos?
A humanidade está a enlouquecer a passos largos e temos de exorcizar isso pelo humor. Está toda a gente a passar-se, e isto já não tem a ver com política.

Há quem diga que é devido ao alinhamento dos planetas.
É uma boa tese. Mas também pode ser só do calor.

Nuno Markl na sua cave na Parede, junto à “maior extravagância” do espólio, uma máquina de flippers d’”Os Sopranos”

Que muletas o fazem desesperar no humor alheio e que tenta evitar?
Há sempre muletas, e é provável que já as tenha usado. É um bocado irresistível. Lembro-me de estar a escrever os textos do Herman na rádio, na TSF e depois na RDP, com o Ricardo Araújo Pereira e o João Quadros. Na RDP fazia-se o “Herman difusão portuguesa”, e um dia por semana acontecia uma coisa chamada “A grandiosa história de Portugal em fascículos”. Construíamos as situações históricas com algum cuidado, mas muitas vezes não sabíamos como acabar o raio dos textos, e invariavelmente sentíamos que eles descambavam para o sexo ou para uma explosão. Era uma muleta, mas a nossa ideia era, ok, metemos uma piada de sexo, mas o mais imaginativa possível. Mesmo assim, isso não impediu que fôssemos chamados à direção da RDP, e o responsável da altura (José Manuel Nunes, se não me engano) disse uma coisa maravilhosa: “Temos tido muitas queixas. Vocês não podem terminar todos os textos com uma figura histórica a ser sodomizada”. [risos] Estávamos eu, o Ricardo, o Quadros, o Nuno Artur Silva e o Herman. Respondemos que isso só devia ter acontecido umas três vezes. Lembro-me de estarmos no elevador, a sair, e do próprio Herman, um tipo para quem não há limites, nos dizer, “Epá, vocês agora é que sabem” [risos].

E alvos fáceis?
Irritam-me bastante.

Há alvos fáceis que não passam de moda?
É incrível, mas ainda hoje há pessoas a fazerem piadas com o José Castelo Branco. Ou com o Cláudio Ramos. Para quê?

Na década passada, por exemplo, tornou-se comum gozar com os Delfins. Algo que, sem coincidência, só passou a acontecer quando o grupo entrou em declínio comercial.
Nós fizemos algumas e convidámos o Miguel Ângelo a entrar num sketch. Ele aceitou, mas depois houve um problema qualquer e já não sei se chegou a aparecer. Mais tarde, ele entrou num sketch do “5 para a meia-noite” em que estava em autoparódia. O Miguel Ângelo é um tipo superinteligente, com uma cultura musical tremenda.

O humorista tem algum dever para lá de fazer rir?
Esse é o principal, mas pode-se obviamente ter um extra e levar a coisa para algo com significado. Continuo a adorar o “Dr. Strangelove”, é um filme maravilhoso sobre a falta de sentido da guerra e que me abriu muito os olhos para o que a comédia podia fazer e as mensagens que podia passar, mas também gosto de uma boa piada de puns, onde não há qualquer mensagem. O humor pode ser muitas coisas diferentes. Acho que não se deve ir para o humor com um sentido quase messiânico. Se se quer mudar o mundo é melhor ir para uma profissão que faça algo de prático, de mãos na massa. Mas há espaço para abrir olhos, sim.

A que criadores portugueses de humor emergentes devemos estar atentos?
Há uma nova geração de pessoas de que sou genuinamente fã. Adoro as coisas que a Cátia Domingues faz no “One woman show”. Ela faz rir e vai ao âmago das questões. É uma das coisas mais próximas que temos de uma correspondente do “The Daily Show”. E gosto muito do Guilherme [Duarte], do “Por falar noutra coisa”. Também tem observações incrivelmente pertinentes sobre uma série de assuntos. Estão a aparecer muitas pessoas com muitas ideias.

Ideias diferentes?
Isso talvez seja mais difícil hoje em dia porque somos bombardeados com coisas novas de todos os lados e é muito difícil fixarmo-nos em algo. É mais duro, obriga a mais trabalho das pessoas para consolidarem as suas personalidades cómicas e sobressaírem.

O que é que descobriu acerca de si e dos outros nas romagens ao espólio do passado d’“A caderneta de cromos” e do “1986”?
O “1986” não seria o que é se não tivesse feito “A caderneta de cromos”. Às vezes sinto que fiz “A caderneta…” para reunir material que usei na série. Segurar orgulhosamente uma bandeira de nada: séries, doces, pastilhas elásticas, revistas, banda desenhada. Podem não parecer tão importantes quanto isso mas fizeram de nós o que somos. Não sei que idade tem.

Nascemos no mesmo ano.
Somos de uma geração que não tem nenhuma causa, o que me fascina. Os nossos pais tiveram o 25 de Abril, o Maio de 68, tiveram luta, ideais. Nós tivemos Peta Zetas. A geração anterior olha-nos de uma maneira algo sarcástica, mas tivemos o que tivemos e estimamos isso.

O “1986” parte do primeiro momento de fricção política posterior ao período revolucionário, com a disputa eleitoral entre Mário Soares e Freitas do Amaral.
O país ficou dividido ao meio. Uma espécie de Benfica-Sporting político. Uma das razões por que escolhi fazer o “1986” foi a explosão política desse ano, mas à qual não respondemos de um modo político, que é o que se vê na série de certa maneira. Os nossos pais obviamente que sim, reagiram politicamente, mas para nós era só uma questão de termos um clã, de nos sentirmos integrados.

A perspetiva que tinha em relação ao passado mudou depois dessas experiências?
Aconteceu de tudo, mas nunca tive uma sensação de repulsa. Houve sempre lugar para o carinho. Recordo-me do impacto que a série [de ficção científica] “V: A batalha final” teve em mim naquela altura. Passaram-se todos estes anos sem revê-la, e quando voltei a ela pensei, “Hummm…” [risos]. É lenta, é feia, não é particularmente boa. Já o “Espaço 1999” continua a ser uma boa série, mas tens de aceitar que o ritmo narrativo era diferente. Há episódios do “Espaço 1999” que têm quase a cadência de um filme do [Ingmar] Bergman. Aquilo não é uma aventura trepidante, são pessoas a falar, de maneira muito ponderada, dentro de naves. Mas é ótimo, desde que percebas que, naquela altura, todo o mundo era mais lento [risos].

O humor por cá ainda é muito desequilibrado a favor dos homens?
É. Sem dúvida. E é uma coisa que não acontece lá fora: na América tens uma quantidade fantástica de mulheres comediantes. Cá também estão a aparecer mulheres, mas sempre foi um negócio de homens e não sei explicar porquê. Quando entrei neste ofício, [o domínio masculino] era quase tão natural como respirar. A dada altura, nas Produções Fictícias, começámos a ter mulheres na equipa (uma delas levei-a eu, a Maria João Cruz, minha colega no CENJOR e na rádio), e percebemos que a forma de elas trabalharem um texto era diferente da dos homens. Havia conflitos de funcionamento atribuídos ao facto de haver mulheres a trabalhar ali. Tivemos de aprender a pôr alguns mecanismos a funcionar. Hoje em dia já é mais natural, mas em Portugal continua a ser um ofício bastante masculino. Há coisas extremamente difíceis de desentranhar, e é algo em que vale sempre a pena refletir. Não lhe sei dizer, a esta distância, porque é que havia essa estranheza, mas acho que na cabeça dos homens criou-se a ideia de que o humor é uma coisa tão deles que as mulheres não o sabem fazer bem. Mas é algo que vem desaparecendo.

Qual foi o pedaço de “fake news” mais tonto que já leu a seu respeito?
O incidente mais bizarro que tive com a imprensa foi quando se tornou público que eu e a Ana Galvão estávamos a namorar, e houve uma revista que me ligou. A conversa foi: “Já sei que você e a Ana estão juntos. Se eventualmente for para durar, e a Ana engravidar, acha que podemos ser os primeiros a saber?” Fiquei em choque. “Acho que primeiro tenho de dizer aos meus pais.” [risos] Inicialmente, pensei que era uma piada, mas depois percebi que havia ali uma tentativa de marcar terreno.

É um espantoso planeamento a longo prazo.
Aconteceu outra coisa bastante surreal. Alguém, que até hoje não faço ideia quem foi mas que obviamente não devia gostar de mim, deu-se ao trabalho de criar um “fake email” meu, dirigido a um suposto fã, e o texto era eu a aconselhar um gajo anónimo a roubar piadas. “Esta daqui foi inspirada nisto daqui…”, etc. Só pensava: “Se eu roubasse piadas, coisa com que embirro e que tento que não aconteça, a não ser por acidente, a última coisa que faria era dizer a um estranho, ‘Olha, o segredo é roubar’.” Aquilo assustou-me verdadeiramente.

Era caso para tanto?
Foi uma altura muito intensa. Em simultâneo com a tentativa de pôr isso a circular, a Ana estava grávida e andávamos a receber mensagens pela noite fora, nos nossos blogues, a dizer coisas do género, “Tomara que abortem essa criança”, ou “Vi-os hoje no supermercado. Tinham isto e isto no carrinho”. Comecei a juntar tudo e fui à Polícia Judiciária, e foram dados primeiros passos para descobrir donde aquilo estava a partir. O pessoal dos blogues do Sapo também colaborou. Disseram-me, “Nós temos aqui um IP mas não podemos dar-to a não ser que venhas cá com a polícia, porque senão… Tu não, que és pacato, mas um dos teus amigos ainda vai lá com um pau…” Acho que estavam a pensar no João Quadros [risos]. Na altura, falei disto numa entrevista e tudo parou. Foi sinistro, mexeu-me um bocadinho com a cabeça e fiquei a sentir o que era o Mal: um gajo que se dá ao trabalho de construir um texto o mais parecido possível com os meus para tentar criar um acontecimento.

Foi uma situação que, ainda assim, se resolveu com relativa discrição.
Hoje em dia, nesta sede de vários órgãos de informação – não o vosso! [risos] -, tenho a sensação que há pessoas em algumas redações cujo trabalho deve ser apenas carregar no botão do “refresh”. Um email daqueles, em 2018, teria possivelmente outro impacto. Algum site pegaria naquilo: “Anónimo acusa Nuno Markl de roubar piadas”. Hoje em dia, sinto que é mais fácil lixar a vida a alguém. Porque as pessoas estão mais crédulas. Dispara-se primeiro e pensa-se depois. E isso é terrível.

Que talento gostaria de ter?
Há vários. Andar de bicicleta é uma coisa que tenho de aprender antes de morrer.

Isso é fácil de resolver.
Sim. Nem chega a ser bem um talento. Lembro-me de partilhar isto na rádio e de várias pessoas responderem que também não sabiam. Criou-se uma onda de solidariedade.

E um talento-talento?
Adorava saber tocar qualquer instrumento musical. Ser o tipo que pega numa guitarra e toca coisas numa festa. Até teria ajudado a minha vida sentimental. Gosto imenso de música mas não consigo arrancar nada a nenhum instrumento. A não ser, talvez, a um reco-reco; ou a um kazoo, em que só se tem de falar lá para dentro. A razão pela qual sou amigo de tantos músicos é porque quero entrar naquele universo sem ter qualquer talento.

Qual é a ideia errada mais frequente que têm a seu respeito?
Que sou o Nilton [gargalhadas]. A grande e clássica confusão. Ambos temos óculos, estamos grisalhos, temos uma barba não muito convicta e fazemos rádio à mesma hora. Admito que possa causar confusão, mas já aprendi a viver com isso. Há tempos, estava no Porto com o Miguel Araújo, vem um tipo na nossa direção, e já começo a reconhecê-los pela cara: este gajo vai confundir-me com o Nilton. Incrivelmente, o tipo dirige-se a mim dizendo, “Ganda Markl!”. Ok, boa. Depois, virou-se para o Miguel Araújo: “Salvador Martinha!” [risos]

Qual é a sua maior extravagância?
Não é grande coisa, mas talvez tenha sido comprar uma máquina de flippers d’“Os Sopranos”. E continuar, com esta idade, a colecionar brinquedos e “action figures”. Não ambiciono mansões nem iates, até porque não tenho dinheiro para isso. Acima de tudo, continuo a gostar de viver no meio desta “geekness” e deste mundo da cultura pop.

Arranjar assunto é, na raiz, a sua verdadeira profissão?
Nunca tinha posto isso dessa maneira mas sim. No fundo, sou um arranjador de assuntos.

É uma ferramenta indispensável quando se fazem rubricas diárias há tantos anos.
“O homem que mordeu o cão” fez 20 anos em outubro do ano passado e é uma coisa que me obriga a fazer pesquisa todos os dias. De todo o humor que faço, é o mais próximo do jornalismo. Vou às agências ver que notícias há, aos sites de jornais, pego nas que acho mais engraçadas e sirvo-as à minha maneira, com os meus comentários. Sinto sempre que sou uma espécie de funcionário público da comédia. Adoraria fazer comédia só quando tenho inspiração para ela. Conseguir estar dias ou semanas a pensar em coisas e a escrevê-las até ficarem boas. Gostei muito de fazer o “1986” porque tive um pequeno vislumbre disso.

Está cansado da rádio?
Continuo a adorar fazer rádio, e continuo meio resignado com esta coisa de ter de acordar todos os dias às 6.30, mas custa-me cada vez mais com a idade. Começo a pensar até quando vou fazer isto. Lembro-me do António Sala retirar-se do “Despertar” a dada altura porque estava cansado.

Pode montar o equipamento em casa e fazer a rubrica em direto sem sair da cama.
Sim, por exemplo. Quero fazer rádio sempre, é algo de que gosto, e a Rádio Comercial tem essa coisa maravilhosa de chegar a muita gente e dar-me espaço para ser eu próprio. Tenho só de arranjar maneira de isso não me matar por privação de sono [risos].

Um arranjador de assuntos é uma pessoa que vive em partes iguais da inspiração e da disciplina?
Sem dúvida. E depois crio os meus rituais. Faço uma pré-pesquisa, na véspera, das histórias que acho mais interessantes, e levo-as em bruto para o meu escritório, a Cafetaria Martins, ao pé do Liceu Maria Amália e da Rua Sampaio e Pina [a rua da Comercial]. Há lá uma mesinha no canto para onde vou quase todas as manhãs e construo os textos até à hora de ir para a rádio. Arranjei esse sistema que funciona e é confortável.

Até que idade pensa divertir-se?
Penso que neste momento estou a atravessar uma crise de meia-idade. Costumo dizer que o “1986” é uma crise de meia-idade transformada numa série televisiva. Faz-me muita confusão ter 47 anos porque continuo a sentir-me como há 20. Estou a tentar lidar com isso, e uma das formas que encontrei é arranjar sempre lenha para me queimar. Agora estou com a ideia de, havendo ou não segunda temporada da série, fazer esta maratona em setembro [“1986 – A maratona”, a 15 de setembro na Aula Magna, em Lisboa, com transmissão dos 13 episódios, a banda sonora tocada ao vivo e outras atividades]. Preparar isto está a dar-me um gozo quase infantil, e enquanto estiver às voltas com estas coisas não penso no drama dos 47 anos.