A nova vida dos filhos da droga

Têm entre 14 e 18 anos. Foram institucionalizados, a maioria por ordem do Tribunal, porque desenvolveram comportamentos de risco. O consumo de estupefacientes é um denominador comum. Beber e roubar está também em quase todos os currículos. Mas encontraram um lugar onde os ajudam a ultrapassar os vícios e a criar objetivos de vida. Todas as manhãs, no habitual grito de guerra, pés bem assentes na relva, pedem sempre o mesmo: mudança.

Tinha 11 anos quando começou a faltar às aulas. Aos 12, bebia álcool e consumia haxixe. Com 14, já estava na cocaína e no MD. Foi nessa altura que fugiu de casa. E, como não tinha dinheiro para a dose, roubava. Dormia na rua ou onde dava. Tiago – vamos chamar-lhe Tiago – era um carro sem travões. Aos 16 anos, conta algumas das experiências de vida que não deseja a ninguém: “Vi um amigo a levar uma tareia por causa de dinheiro que estava a dever. Nunca mais me esqueci. Estávamos na rua, íamos ao café e, de repente, apareceram quatro ou cinco pessoas e começaram a bater-lhe. Tentei separá-los… Abriram-lhe a cabeça. Senti-me muito mal por não conseguir fazer nada por ele”.

Dessa vez, ninguém salvou ninguém, mas, algum tempo depois, tudo mudou. Faz agora um ano e dois meses. Após muitas tentativas, a mãe de Tiago conseguiu que o filho fosse acolhido na ART – Associação de Respostas Terapêuticas de Magrelos, a Quinta do Sol, no Marco de Canaveses. Entrou contrariado. Hoje, a conversa é outra. “Foi um grande plano de viragem. Se não tivesse vindo aqui parar, nem sabia o que seria de mim.”

A ART é a primeira resposta do país criada exclusivamente para adolescentes com problemas de uso e abuso de substâncias. Nasceu em 2009, depois do êxito de um projeto-piloto iniciado três anos antes, no polo da Quinta do Horizonte (Paredes de Viadores, Marco de Canaveses).

Os responsáveis começaram por inserir alguns jovens no grupo que já existia. Curiosamente, a comunidade percebeu que também fazia sentido estender a terapia aos jovens. Os adultos, que tinham problemas familiares graves, viam nos mais novos os próprios filhos. Porém, pouco a pouco, a equipa percebeu que os adolescentes tinham características muito próprias e foi necessário tomar opções.

Deste então, a ART só recebe miúdos em risco, dos 14 aos 18 anos. “É a última linha do acolhimento”, explica Diogo Soares, psicólogo na instituição. No ano passado, a associação foi certificada com o selo de Inovação e Empreendedorismo Social pelo IES – Social Business School. O conjunto das três unidades que existem em Portugal (duas no Marco e outra em Castro Verde, no Alentejo) corresponde a 50% da resposta nacional em programa para menores. O número de jovens que regressa à escola e se torna quadro de honra é o coroar de um conjunto sucessivo de vitórias.

Tiago acabou o ano com nota máxima a todas as disciplinas. Há de deixar a ART depois do verão. Quando concluir uma formação em agricultura, iniciada neste ano. O mundo lá fora poderia causar-lhe algum receio. Maiores são os sonhos. “Tenho muitos. Quero continuar a fazer desporto e ter um trabalho de que goste. Já pensei em ser serralheiro ou algo na área do desporto.”

Regresso ao passado. É ele quem faz a viagem, sem lhe pedirem. São sempre abismos de onde às vezes não se sai. “Hoje, sou outra pessoa. Era mentiroso, manipulador. Fazia de tudo para ter o que queria. Era muito agressivo e agora já me controlo. Não queria fazer nada, tudo me era indiferente. Só não queria que me chateassem.” A ART revirou-o do avesso. “Agora já falo com o meu pai e tenho objetivos.” E há uma certa ordem nos desejos: “Quero ter uma casa, um carro, uma família e ajudar os meus. Só por estar bem já os estou a ajudar, porque não dou dores de cabeça, nem trabalhos.” São sete irmãos. Todos mais novos. “Já não vou dar um mau exemplo.”

A comunidade terapêutica é apoiada pelo Ministério da Saúde e também pelo Ministério da Educação. Todos esses jovens têm algo em comum: uso ou consumo aditivo de substâncias. Mas as questões de fundo nunca ficam por aí. “À partida, quase todos os que têm problemas aditivos têm também medidas de promoção, proteção e problemas comportamentais graves. Além disso, há alguns com patologias do foro psicológico e psiquiátrico”, revela Diogo Soares.

Uma comunidade diversificada e heterogénea. Uma microssociedade, que se organiza dentro do próprio espaço. Com a particularidade de serem um grupo misto, de rapazes e de raparigas. “Essa é a novidade. Aqui convivem diariamente, com regras muito definidas de controlo e de respeito mútuo.” Um caminho que culmina na reinserção e do qual a escola, que abandonaram, é parte fundamental. Ficam na casa por um ano e meio, o tempo necessário para realizar as diversas fases do tratamento.

Sara está no início – Sara também não é o seu nome, como acontece com todos os outros jovens que dão a voz nesta reportagem. Entrou na ART há pouco mais de dois meses. “Ainda estou de pé atrás.” Com 15 anos, é a terceira vez que é institucionalizada: “Na primeira comunidade, fazia tudo bem para sair de lá. Na segunda, portava-me pior do que em casa. Aqui não. Demonstro quem sou porque já percebi que só assim me vão poder ajudar. A princípio não queria reabilitar-me, não queria mudar. Mas, depois, comecei a confiar na equipa, a falar, e fizeram-me chegar à conclusão de que a vida que levava não tinha muitas saídas”.

Segundo Sara, os problemas começaram com o nascimento da sobrinha. A situação afastou-a dos pais e fez revoltar-se com a família. Aos 12 anos, os amigos eram tudo. Companhias que a levaram a faltar à escola e a consumir pólen, erva, MD. Todos os dias. “Não respeitava os meus pais e eles começaram a não ter mão em mim.” Foi parar a uma instituição em Vila Real. Ficou lá um ano e dois meses.

Quando voltou a casa, andou três ou quatro meses bem e recaiu. Tinha 14 anos quando tornou a ser institucionalizada, dessa vez na Régua. Aí, foi o descalabro. “Fugi de lá para regressar à mesma vida, até que a minha mãe pediu ajuda para que eu fosse para uma comunidade de reabilitação.” Quando entrou na ART, era ela contra o Mundo. Passados dois meses, diz que ainda não mudou muita coisa. “É um processo longo, mas sinto diferenças. Já consigo controlar a minha raiva e a impulsividade. Estou a aprender a ter respeito pelos outros e a confiar nas pessoas, que é uma coisa que me custa muito.”

O número de pedidos de acolhimento que chegam à ART tem vindo a aumentar, principalmente do sexo feminino, segundo os responsáveis da instituição. Nos últimos três anos, as 27 vagas da unidade estiveram sempre 100% preenchidas. Os jovens chegam às três unidades por ordem do Tribunal ou da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Mas também através das Estruturas da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências e por via particular. Contudo, a maioria é encaminhada por decisão judicial. Vêm de todo o país. Sendo que grande parte já tinha sido institucionalizada antes de ser admitida.

O bom hábito de subir ao quadro de honra

Tiago Pinto é diretor da Quinta do Sol há seis anos, mas já ali trabalha há 12. O responsável garante que todos os dias há novos desafios para a equipa. “A nossa referência é o espírito de missão. Mais do que um ordenado, é percebermos que do outro lado há pessoas que precisam de apoio. Se estivéssemos no lugar deles, também gostaríamos de ter ajuda. Por isso, há uma entrega muito forte.”

Os números falam por si: desde 2009, houve 980 internamentos. “Obviamente ficamos tristes e desiludidos quando há insucesso, mas perceber que os sucessos estão a aumentar faz com que tenhamos um oxigénio muito maior”, sublinha Tiago. Em 2016, em 16 jovens, 11 deles foram quadro de honra na EB 2,3 de Sande. No ano passado, 11 em 19. E, neste ano, dos 16 inscritos na escola, metade atingiu o mesmo patamar.

É possível que, no próximo ano letivo, Kinder também comece a frequentar as aulas. A jovem, de 15 anos, iniciou uma dupla aprendizagem. A que a vai permitir integrar plenamente a sociedade e a que a vai levar a viver em paz consigo mesma. Desde pequena que salta de um lugar para o outro. Aos 11 anos, uma liberdade inesperada tirou-a do caminho que a família queria.

“A minha avó estava junta com um senhor. Ela pedia-me para não sair, ele incentivava-me a fazer o contrário. Eu fazia o que ele dizia, porque era o que eu queria.” Foi mais ou menos a partir daí que as coisas entortaram. “Comecei a fumar, a fazer mais porcaria, como grafitis no meio da rua e nos carros.” A mãe muito ausente – “estava sempre a trabalhar, saía às três da manhã e não tinha folgas”. A tenra vida já sem direção.

“Mandaram-me para Espanha morar com o meu pai. As coisas correram bem durante um tempo. Não faltava às aulas.” Contudo, passado alguns meses, “as parvoíces” voltaram. Bebia, fumava e foi recambiada para Portugal. “A minha mãe já estava a viver noutra cidade e isso ainda foi pior. Meti-me nas drogas, bebia, saía muito, tratava mal a minha família. Só parei quando entrei na ART, há pouco mais de dois meses.”

Tinha noção de que precisava de ajuda, mas não queria. “Era só para não ir para um sítio pior, em regime fechado.” Além dos consumos, a jovem passava ainda por problemas de autoestima. “Quando cheguei, tinha alopecia, que causa muitas falhas no cabelo. Parecia um pintainho. Andava sempre de ‘cap’ e nunca o queria tirar. Mas o doutor Diogo ajudou-me e comecei a sentir-me mais livre e melhor.”

A questão da identidade sexual também deixou de ser um bicho-de-sete-cabeças. “Gosto de ser tratada por Kinder porque esse nome não tem género. Nunca soube bem o que era a identidade sexual. Sei que sinto atração por mulheres, mas não me sinto homossexual. Sinto que sou um homem. Não é por eu achar que o meu corpo é feio. É porque, quando eu me olho ao espelho, sei que me sentia melhor se fosse do outro sexo, são coisas que não dão para explicar.”

Ainda que esse seja um ponto importante a ser trabalhado, de momento, prefere focar-se noutros aspetos: “Vou-me deixar levar. Primeiro, preciso ocupar a cabeça com coisas boas, enfrentar e superar os meus problemas e esquecer as coisas más do passado. Tornar-me numa pessoa melhor para depois descobrir quem realmente sou.” E, quando chegar a hora, se for isso que realmente quer, vai “seguir em frente e não desistir”.

De acordo com o último “Relatório Anual sobre a Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências”, divulgado neste ano, o número de toxicodependentes em tratamento está a crescer. Em 2016, estiveram em tratamento 27 834 utentes, o que representa um aumento de 841 doentes em relação ao ano anterior, invertendo a tendência de diminuição registada desde 2010. Na ART, essa subida também foi sentida. Os 313 miúdos admitidos em 2014 passaram para 576 em 2016. Sendo que cresceram também os pedidos de internamento femininos.

A institucionalização continua a ter o objetivo de os ajudar, tentando protegê-los das situações de conflito, degradantes e violentas, proporcionando um contexto de equilíbrio, que promova o desenvolvimento integral. Para isso, conta muito quem os orienta, no melhor e no pior dos dias.

Na ART, há educadores que são criminólogos, e que compreendem as razões de muitos terem chegado ao ponto onde estão ou estiveram. Mestres de kickboxing, que levam os jovens a perceberem que a força, a energia, a raiva, a agressividade e a impulsividade podem ser transformadas num jogo com hora de começar e de acabar. Monitores que vêm das Forças Armadas e que fazem com que muitos jovens, que não tinham projetos de vida, tenham enfim objetivos. E monitores que já passaram por estes mesmos tratamentos há duas décadas.

Pavlo Stepanov, 37 anos, é o melhor exemplo. Monitor na associação há quase quatro anos. “A minha vida começou com os problemas que os jovens daqui têm: comportamentos de risco, consumo de estupefacientes e tudo o que isso trazia.” Até que ficou agarrado às drogas pesadas. Daí ao crime foi um passo de formiga: “Estive preso, mas, felizmente, a minha família nunca me abandonou. Na Ucrânia, a estrutura para casos como o meu é muito fraca. Quase inexistente. Para ter algum tratamento, tens de ir para o privado e não havia dinheiro para isso. Um dia, o médico disse abertamente à minha mãe. ‘Você tem mais uma filha? Então trate dela que este está perdido’. Houve um clique. Perdido? Vão encostar-me para o canto?”.

Quando a mãe chegou a casa com um visto para Portugal e a possibilidade de uma reabilitação, Pavlo nem sabia onde o país ficava, mas aceitou. Uma vez cá, após várias intervenções e recaídas, acabou por perceber que não se podia afastar muito das casas onde lhe era estendida a mão. Foi assim que ficou a trabalhar como monitor numa comunidade terapêutica, em Torres Vedras. Endireitou a vida. Casou e foi parar ao norte do país.

Tornou-se profissional de kickboxing. Foi o treinador que o levou à ART. “O Luís Rasquinho, que sabia mais ou menos a minha história, telefonou-me e disse: ‘Estou a trabalhar numa instituição e acho que devias vir cá.’” Mal viu a casa, sentiu logo que era um ambiente familiar. “A estrutura destes centros é sempre muito parecida. Mas havia uma diferença em relação às que eu conhecia, aqui eram só jovens. Isso fez-me sentido.” Rebobinou a vida, lembrou-se do passado complicado e pensou: “É isto, vai ser esta a missão.”

Trabalhar com os miúdos, ensinar-lhes a usar no kickboxing o sexto sentido, que só quem passa por estes problemas tem, é o “vício bom” de Pavlo. Ele sabe, e os miúdos também, que sair da casa é a parte mais complicada. “Deixar de consumir é fácil, mas manter-se fora disso é pior. Infelizmente, não temos estruturas suficientes para a reinserção dos jovens. Quando voltam para o mesmo sítio, é muito difícil manterem-se fora dos consumos.”

Contudo, a ligação a quem lhes deu referências é tão grande que os pedidos de ajuda são constantes. Muitos dos que se veem em situações de risco contactam-no. “Às vezes, estou em casa a dormir, ao lado da minha mulher, e toca o telemóvel. Tenho de atender. Não posso ignorar porque sei o quanto a chamada é importante.” Do outro lado, um miúdo está com os amigos que o picam para fumar ganza. “O que é que eu faço?”, pergunta. E responde: “Esse telefonema faz diferença. Na maioria dos casos, basta dizer uma tontice qualquer, só para desviar a atenção dessa vontade.”

A importância das referências e dos objetivos

Quando acabar o tratamento, José, 17 anos, quer completar o secundário para depois poder tirar o curso de Ranger. Objetivo: ir para as operações especiais de Lamego, chegar a furriel, subir até sargento e fazer missões de paz no estrangeiro.
Foi preciso um ano e meio para que o jovem ganhasse referências, coisa que perdeu aos nove anos, quando o pai foi trabalhar para o estrangeiro. “Ele era o meu principal apoio. De um momento para o outro, passou a estar ausente e eu comecei a ser uma criança mais isolada e deprimida.” Piorou quando, aos 12 anos, deixou de fazer desporto, devido a uma operação.

“Tinha de ficar no meu canto para evitar que me aleijasse e sentia-me diferente dos outros”. Chumbou a primeira vez. Os amigos com quem andava eram todos mais velhos. Saía à noite. Estava descontrolado. “Queria afirmar-me de alguma maneira. Comecei a consumir drogas, a beber, a roubar em casa. Mais tarde, a roubar aos vizinhos.” Tudo que desse uns trocos para comprar a dose. Os dias já só tinham um sentido – consumir. Foi então que, quando “já estava no red line”, apareceu a ART.

A serenidade com que desfia as lembranças denota que já deu muitos passos em direção ao sucesso. De inseguro e tímido a destemido. “Agora, quando surge uma oportunidade, agarro-a, sigo em frente. Mesmo que às vezes possa não ter tanto jeito. Vou sem medo e dou sempre o meu melhor.” Enquanto trabalha a força interior escreve um livro sobre a sua história. E fez uma jura de fidelidade. “Pratico kickboxing, uma modalidade que descobri cá dentro. E quero continuar. O desporto foi muito importante na minha reabilitação e vai acompanhar-me sempre.”

No ginásio, agarra o haltere com a mesma força de quem não quer voltar a deixar escapar a vida. Na camisola, duas frases são como um lema de guerra: “Everything can change. Nothing is forever”. Tudo pode mudar. Nada é para sempre. Nem mesmo os pesadelos.