Nos bastidores do concurso “O Preço Certo”

É um fenómeno de audiências e de resistência da televisão portuguesa, um caso de estudo internacional. Vive do improviso, dos concorrentes, da plateia, de uma equipa que é uma máquina oleada atrás das câmaras, das brincadeiras e do à-vontade de Fernando Mendes. Estivemos nos bastidores de “O Preço Certo”, no ar há mais de 15 anos. Não há texto, não há teleponto, tudo pode acontecer. E é um “espetáculo”, pois claro.

João Paulo Gonçalves entra pela primeira vez no estúdio da RTP. É terça-feira, saiu de São Vicente da Beira, Castelo Branco, às oito e meia da manhã, mais de 200 quilómetros de estrada, família e amigos no carro, duas horas e meia de caminho, uma paragem para esticar as pernas, encontro marcado com mais amigos em Lisboa, mais um bocadinho até à RTP, almoço rápido. Uma aventura.

João Paulo, 37 anos, é vendedor ambulante de peixe pelas aldeias da sua região. Há três anos, depois de jantar em casa dos sogros, com a televisão n’ “O Preço Certo”, inscreveu-se. Agora, não tarda nada e está no programa com uma mão cheia de presentes e Fernando Mendes à sua frente.

Traz bolos, pão caseiro, mel, guarda-chuva de um hotel, livros da câmara e associações da terra. E partilha uma lembrança especial. “O meu avô serviu o pai do Fernando Mendes no café Águia D’Ouro quando trabalhava no Parque Mayer.” O apresentador agradece as ofertas e sobretudo a lembrança.

O concurso está no ar. João Paulo ganha um bacalhau de cerâmica, passa à roda, vai à montra com uma margem de 1 500 euros. Eletrodomésticos, um automóvel, estadia de fim de semana, azeite rosmaninho para arredondar. A claque começa a atirar preços, a plateia vai lançando valores, fica nos 14 500 euros. E aquela frase à Mendes dita em uníssono: “Minhas senhoras e meus senhores, qual o preço certo desta montra final? Ééée……”

Eram 16.540 euros. João não acerta, mas há festa no final, abraços da claque, música, selfies. O vendedor de peixe sai do estúdio e liga à mulher. O programa é gravado. Valeu a pena? “Sim, gostei, é muito animado. Todas as pessoas que trazem tristeza, fica tudo aqui, saem daqui alegres”, responde. A tarde está quase a terminar, dois programas gravados, segue-se o direto às sete, depois de um lanche oferecido pela produção, antes do telejornal.

Às terças e quartas-feiras à tarde, o estúdio Luiz Andrade não tem sossego. São os concorrentes de norte a sul do país, do litoral ao interior, para sentar em oito filas de cadeiras – 150 lugares. São os elementos da produção que andam de um lado para o outro, papéis na mão, indicações a cumprir, orientações a dar. São os homens das câmaras e os técnicos que supervisionam a maquinaria. Há cabos no chão e holofotes no teto que nunca irão aparecer no televisor lá de casa.

Os prémios, comprados ou patrocinados, entram por uma porta gigante numa lateral do estúdio, são levados para as traseiras das três montras, onde está também a roda gigante. A régie fica em cima, onde Ana Azinheira, a realizadora, coordena os testes para ver se está tudo bem, se todos se ouvem. “Em 3, 2, 1, avança”, diz e a gravação começa. Os concorrentes estão na mira das câmaras e a equipa já sabe como se movimentar.

Luís Justo é a voz de comando no estúdio, assistente de realização. É o elo de ligação entre a parte técnica e a parte artística. Dá ordens, ri-se das piadas de Fernando Mendes, dança nos bailaricos e, de vez em quando, aparece na televisão. Por volta do meio-dia, tem nas mãos uma folha com todos os prémios e jogos. Faz-se o guião do programa, há uma reunião com quem sabe os preços, lê-se o texto da voz-off, distribuem-se os assistentes pelos jogos e a equipa recebe uma folha com as indicações. “A informação é distribuída pela equipa e toda a gente sabe o que tem de fazer.” “O programa vive muito do apresentador, é o maior no meio disto tudo”, acrescenta.

O ar simpático e alegre não passa despercebido. “Não me importo de me divertir a trabalhar”, comenta. E isso vê-se quando dança num momento musical a meio do programa. Hoje é dia de inauguração do mini palco atrás do balcão dos concorrentes. A cantora Rebeca e suas partners estão sentadas na assistência para entrarem em cena na hora certa. A cantoria começa, o bailarico também, e Justo dança.

Tremoços, galinhas, cuecas, peças das Caldas, comida no tacho

Lá fora, o parque de estacionamento nas traseiras da RTP tem vários autocarros, carrinhas com nomes de juntas de freguesia, de câmaras, de associações. Há quem traga o almoço de casa. Eleutério Ferreira e Deonilde Traquina, marido e mulher, chegam com panados, pão de Alcobaça, maçãs, bolachas, água, que colocam no muro ao lado da entrada da RTP para um almoço rápido, de pé.

Chegam num grupo de dez amigos numa carrinha da Junta de Freguesia de Évora de Alcobaça. “Estou muito contente, é mais uma experiência. Gosto de tudo, acho piada, é divertido”, diz Deonilde, de 61 anos. “Fernando Mendes é uma máquina, gosto muito dele, é um espetáculo e não cansa”, reforça Eleutério, 67 anos, reformado. Levantaram-se às oito da manhã, encontraram-se com o resto do grupo no café da aldeia e partiram.

Do outro lado da rua, um grupo com cachecóis acaba de chegar do Porto. São 19 investigadores e estudantes de doutoramento do LEPABE – Laboratório de Engenharia de Processos, Ambiente, Biotecnologia e Energia da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, de cinco distritos, duas regiões autónomas, e um estudante iraniano. A viagem foi divertida, anedotas, sandes de salpicão, panados, piquenique no autocarro, piadas.

A ida ao concurso partiu de uma brincadeira que se tornou séria. O laboratório precisa de um aspirador, inscrição no concurso, diversão garantida. O telefonema chegou, patrocínios para ajudar, alugar um miniautocarro de 23 lugares. O investigador Jeffrey Capitão é chamado, oferece cachecóis e t-shirts do laboratório e uma célula fotovoltaica com o símbolo do LEPABE que dá para carregar uma pilha ao sol. Jeffrey não ganha nada.

Isabel Mesquita, estudante de doutoramento, é fã do programa e vai concorrer. “Este concurso junta toda a gente à hora do jantar, é o programa de eleição lá em casa. É divertido, dá para a toda a família, está há tanto tempo no ar, realmente é um fenómeno”, refere. O grupo não ganha o aspirador, leva uma máquina de sumos e uma arca frigorífica. E, já de noite, tem mais uma viagem de 300 quilómetros pela frente.

Os concorrentes chegam, faz-se a chamada, é feita uma triagem às ofertas – atenção, já não entram animais vivos e bebidas alcoólicas – e avança mais uma tarde de gravações. Instala-se uma mesa no estúdio para verificar identificações, assinar papelada, ler regras de participação. Escrevem-se os nomes em autocolantes amarelos, colam-se os autocolantes, há uma curta reunião com cada grupo para relembrar as regras do jogo, anotar quem não quer ser chamado para participar, informar que os carros e as viagens têm de ser levantados depois, que a distribuição dos prémios é da responsabilidade dos concorrentes.

Betão Ferreira, o brasileiro alto e bem-disposto, entra em ação antes da primeira gravação. É o animador do programa, faz piadas, adapta anedotas às circunstâncias, brinca com quem passa, dá uma ajuda a quem precisa de se levantar. “Não sei de onde é, mas sei para onde vai”, atira a uma senhora que vai à casa de banho. Ouve-se um barulho técnico e mais uma graça. “Eles estão a querer comunicar com a gente.”

Piada atrás de piada, brinca que a Segurança Social está de olho nos concorrentes para ver quem está de baixa, boa disposição. Betão aquece os motores e se for preciso canta e dança. A sua tarefa é perceber o público e manter a animação. Não é difícil, na verdade. A emoção de estar na televisão e a oportunidade de ver Fernando Mendes ao vivo e a cores ajudam. Betão tem liberdade total.

“Liberdade para fazer o público feliz, é um dia diferente e a função acaba por ficar facilitada. É um programa tão autêntico, tão autêntico.” Fica com o coração cheio durante as duas tardes da semana, quando anda pelo país e lhe falam do concurso, quando alguém ganha a montra e há abraços apertados e lágrimas de alegria. Antes de Fernando Mendes entrar, Betão avisa o público que é preciso escolher um nome para dar as boas-vindas ao apresentador: jeitinho, sensual, peixe-espada, eloquente. Vale tudo.

E o homem que se confunde com o concurso entra em palco, o público chama-lhe pela alcunha temporária, as assistentes colocam-se a seu lado, dançam um pouco. Há alegria, há animação, as câmaras movimentam-se pelo estúdio. Os primeiros quatro concorrentes são chamados, começam as apresentações e os agradecimentos sem fim – às juntas de freguesia, às câmaras, ao senhor do café, à senhora da pastelaria, à associação recreativa lá da terra, aos artesãos da aldeia, às coletividades, à família que está lá fora, aos netos, aos filhos, aos amigos… Seguem-se as ofertas. E são tantas.

Em 15 anos, houve de tudo um pouco. Bolos, folhetos e livros de aldeias, vilas e cidades, tremoços, comida em tacho, cuecas, lingerie para as meninas, carapins para os netos de Fernando Mendes, bustos do apresentador, objetos de artesanato únicos, peças das Caldas de todos os tamanhos, enchidos, brinquedos, panos da louça. Muitos bonés e cachecóis. Já houve galinhas e galos vivos e uma sapateira gigante dentro de uma caixa de esferovite. Os presentes comestíveis vão sendo distribuídos pela produção e há peças de artesanato que Fernando Mendes guarda em casa de um amigo em Massamá.

Sem filtros: um povo de artistas, um cheirinho de Portugal

Tudo pode acontecer em “O Preço Certo”, o concurso produzido pela Fremantle Media para a RTP. Não há teleponto, nem texto combinado entre Fernando Mendes e Miguel Vital, a voz radiofónica do concurso. Mais do que uma voz-off, uma presença permanente, sem uma única falta. Miguel Vital chegou a “O Preço Certo” em 2002, ainda com Jorge Gabriel.

Trabalhou na rádio, foi DJ (e ainda vai matando saudades), agora é chef de cozinha num restaurante em Oeiras e duas vezes por semana senta-se no alto do estúdio. Não lhe é difícil perceber tanto carinho. “É um programa de entretenimento misturado com concurso, é uma hora para descontrair. Somos muito vistos lá fora, o português que está no estrangeiro consegue ter um cheirinho de Portugal a ver ‘O Preço Certo’.”

“Não me lembro de um programa 15 anos no ar e em que as audiências estão a subir.” (Miguel Vital, voz radiofónica do concurso)

“Não me lembro de um programa 15 anos no ar e em que as audiências estão a subir.” Um verdadeiro fenómeno. “O Fernando Mendes é o ingrediente principal e, depois, temos um povo português que é um povo de artistas. Neste concurso, não há ninguém que seja personagem.” Miguel Vital entra nos camarins, pouca coisa a fazer em termos de maquilhagem e está pronto para quase cinco horas de gravações.

Filipe, 19 anos, estudante de Informática no 12.º ano, de Abrantes, entra em cena e não ganha a montra final. A margem era curta para um prémio suculento com carro e trotineta, eletrodomésticos, fim de semana num empreendimento turístico. Apostou 16 mil euros, a montra passava os 20 mil. A tristeza ali não dura muito. A claque levanta-se e vai para o palco, trocam-se impressões, falam com Fernando Mendes que anima qualquer um.

“Foi a minha mãe que me inscreveu. Estava muito nervoso, nunca tinha participado num programa destes, mas é muito fixe e o Fernando Mendes sempre a brincar com as coisas.” O grupo de Filipe saiu de Abrantes pouco antes das dez da manhã, hora e meia de viagem, uma paragem pelo caminho, e levou para casa uma cataplana, um conjunto de facas e um grelhador.

Patrícia Remualdo, animadora sociocultural do Lar da Vermiosa, Figueira de Castelo Rodrigo, é chamada a participar. Não contava e fica nervosa. Na plateia, está a sua equipa de sete idosos do lar e uma funcionária com uma lista de preços de vários objetos. Os utentes do lar veem religiosamente o programa à hora de jantar. Inscrição feita, participação garantida, viagem marcada, autocarro da câmara, mais de 700 quilómetros ida e volta, levantar às seis da manhã, partida antes das sete.

Patrícia não disfarça o nervosismo e Fernando Mendes pergunta-lhe, a brincar, se quer ir embora. Passa a primeira fase, ganha um medidor da tensão arterial e, no jogo seguinte, arrecada um computador. Nada mau. A roda gira e não passa à montra. “Estava muito ansiosa. A instituição fica com mais um computador.”

Numa coluna do estúdio, à altura dos olhos, está um papel com as indicações para os três assistentes, em que montra estar, que prémios mostrar. É a base, os passos não estão marcados no chão, nunca se sabe se é preciso ajudar alguém a descer as escadas, responder a uma chamada de Fernando Mendes.

Lenka da Silva é a assistente mais antiga do concurso. Entrou em 2002, com Jorge Gabriel. Fez um casting e ficou. “Foi a melhor coisa que me podia ter acontecido.” Um trabalho que é também uma diversão com um companheiro de peso. “O Fernando consegue transmitir uma energia muito positiva sempre com muita alegria.” Mário Andrade está há dez anos no concurso e tornou-se o provador oficial dos bolos trazidos pelos concorrentes, uma brincadeira que provoca gargalhadas.

“Divirto-me sempre, há bom ambiente, bom astral, seriedade, ideias novas e frescas. O Fernando Mendes é a pessoa que injeta matéria para brincarmos no programa”, adianta o assistente, formado em Desporto e Educação Física, representante da Segurança Social na comissão de proteção de crianças e jovens em risco de Lisboa Oriental. Sai de um emprego, entra noutro, troca de roupa, entra no estúdio.

Teresa Medeiros, de Matosinhos, é a assistente mais recente, está há um ano no concurso. O pai viu o anúncio, inscreveu-a, ficou nas cinco finalistas entre mais de 500 candidatas, acabou por ser escolhida. Todas as semanas, uma viagem até Lisboa e o regresso a casa e às consultas que dá como podologista. “Este programa é feito de improviso, o Fernando Mendes é um grande apresentador, um grande ator e é fantástico poder assistir a isto tudo na primeira fila. É um concurso original, as pessoas não têm filtro, são puras e o Fernando é uma excelente pessoa, tem um coração enorme. As pessoas percebem isso e retribuem”, conta.

O homem certo no programa certo (à hora certa)

Margarida Dias gere as redes sociais do programa há ano e meio. Nos diretos, sente-se um polvo com máquina fotográfica e telemóveis nas mãos para alimentar o Facebook com mais de 152 mil seguidores e o Instagram com mais de 10 mil. Criar um canal de Youtube está em cima da mesa.

“Tiro notas das montras mais importantes, o que vai resultar no digital, um concorrente mais engraçado, uma peripécia do Mendes, um momento diferente do que está a dar em direto.” O feedback é positivo, chegam mensagens de várias partes do Mundo, comentários sobre a roupa e sapatos do apresentador, que emagreceu 33 quilos, olhos postos na roda e na montra. Nada escapa.

Fernando Mendes é o homem dos sete instrumentos. Dança, salta para cima do balcão, brinca, diz piadas, dá beijinhos, tira selfies, emociona-se também. Mexe nas orelhas e nos suspensórios, puxa as calças. Coloca bonés, cachecóis e tampas de cerâmica na cabeça. Diz “espetáculo” várias vezes, a palavra que se tornou imagem de marca.

É um ator, que não gosta muito que lhe chamem apresentador, foi convidado para um casting para o concurso. Era para ficar três meses, está há 15 anos no ar. Não está cansado, nem farto. “É um tempo que me dá muito prazer e muito gozo em fazer”. Chega depois do almoço, vai para a sala junto aos camarins onde tem uma televisão que lhe mostra o que se passa no estúdio, não tem briefing, troca de roupa e os suspensórios são o acessório obrigatório, não põe pó na cara – aprendeu com o amigo Nicolau Breyner que pôr pó na cara faz mal aos poros -, desce no elevador até às traseiras do estúdio, um tempinho para sentir o público, entra na montra do meio e está no ar.

“Isto é o país real e sinto-me muito bem em trabalhar para estas pessoas. É uma amostra do que somos, da nossa cultura.” (Fernando Mendes)

“Isto é o país real e sinto-me muito bem em trabalhar para estas pessoas. É uma amostra do que somos, da nossa cultura. Adoro quando tocam acordeão, gaita-de-beiços. Se calhar, antigamente, era quase impossível alguém da província vir à televisão e hoje ter este programa – como há outros, claro – e eu ter o prazer que toquem, que cheguem às suas terras, aos cafés, é muito bom”, realça. O carinho é recíproco. “É a grande companhia de muita gente, muitos idosos, logicamente, mas também apanhamos a outra camada, a dos netos, dos três aos 100 anos.”

Fernando Mendes não faz ideia de quanto custa um eletrodoméstico, um televisor, quantos cavalos tem um carro. Jogo é jogo, mas quase sempre há uma dica. “Custa-me pensar que há concorrentes que fazem 400 quilómetros e que vão de mãos a abanar para casa. Tento ajudar o máximo possível.”

No final, há sempre uma lembrança, habitualmente doces e carteiras, para os concorrentes. É o público que faz o programa. “A contracena, além de mim e do Miguel, é muito importante com o público, se forem pessoas mais castiças ajudam muito mais a mim e ao programa, a estarmos ali a brincar. Não a gozar, a brincar.” A boa disposição continua depois de o estúdio ficar às escuras. “É muito engraçado, quando se sai, ver as camionetas lá fora, mesas montadas, às vezes com tacho e tudo. É muito engraçado.” É um espetáculo, não haja dúvidas.