No peito de Jorge Amado batia um grande coração

Texto Catarina Pires | Fotografias de Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens e arquivo pessoal de Jadelson Andrade

Era segunda-feira, 13 de maio de 1993, início da noite em Salvador da Bahia, quando o cardiologista Jadelson Andrade recebeu uma chamada telefónica. A aflição na voz de Zélia Gattai, escritora e mulher de Jorge Amado, levou­‑o a correr para casa do consagrado autor brasileiro.

A situação que encontrou era de alarme. Enfarte agudo do miocárdio com edema pulmonar. A ambulância de emergência já tinha sido chamada, mas não havia meio de chegar. Perante a insistência, veio a informação de que o motorista estava com dificuldades em localizar a casa, onde, além do médico, de Jorge e de Zélia, se encontravam apenas a empregada, idosa, e o neto, de 8 anos, que herdou do avô o nome e o cuidado com os outros, e que, ao aperceber­‑se do acontecido, saiu disparado de casa e voltou passados minutos dentro da ambulância, indicando o destino – o número 33 da Rua de Alagoinhas – e, quem sabe, moldando­‑o.

«Percebi a responsabilidade que tinha em mãos quando começaram a chegar faxes do mundo inteiro – François Mitterrand, Mário Soares, Helmut Kohl, Bill Clinton, todos os grandes estadistas a querer saber do estado de saúde de Jorge.»

No hospital, o diagnóstico inicial foi confirmado e o doente foi estabilizado. Jadelson Andrade ganhava uma enorme responsabilidade, mas também um enorme privilégio: passar a fazer parte do círculo mais íntimo de amigos de Jorge Amado e conviver com o autor maior da literatura brasileira durante os seus últimos 12 anos de vida. E que vida.

«Percebi a responsabilidade que tinha em mãos quando um doente, no hospital, me disse: “Doutor, você vai ter os olhos da Bahia, do Brasil e do mundo em cima.” E tinha. Tive a dimensão exata disso quando começaram a chegar faxes do mundo inteiro – François Mitterrand, Mário Soares, Helmut Kohl, Bill Clinton, todos os grandes estadistas do mundo mandando faxes a saber do estado de saúde de Jorge.»

Para o cardiologista, mais importante do que a responsabilidade de zelar pela saúde de Jorge Amado, foi conhecê­‑lo, conviver com ele e conquistar­‑lhe o afeto, que, uma vez ganho, era incondicional.

É com um sorriso aberto, entre as palavras que se atropelam, que o médico, que foi presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, conta como nasceu a amizade com o autor de Jubiabá, Capitães da Areia, Dona Flor e Seus Dois Maridos, Gabriela, Cravo e Canela e tantos outros títulos indispensáveis da literatura brasileira.

Para o cardiologista, mais importante do que a responsabilidade de zelar pela saúde de Jorge Amado, foi conhecê­‑lo, conviver com ele e conquistar­‑lhe o afeto, que, uma vez ganho, era incondicional.

«Fui presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, estive com o papa Francisco, conheci muita, muita gente. Mas nunca ninguém como Jorge Amado.» conta Jadelson Andrade.

«Traduzido em 54 línguas, adorado por todo o mundo (onde a gente ia era reconhecido e abordado), e, no entanto, um homem de uma simplicidade incrível. Olhe que eu ando pelo mundo inteiro, fui presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, estive com o papa Francisco, conheci muita, muita gente. Mas nunca ninguém como Jorge Amado.» conta Jadelson Andrade.

«É extraordinário como aquele homem era generoso com os amigos, como se incomodava para que quem o rodeava estivesse bem, a simplicidade com que conduzia a vida, o amor dele por Zélia… Eles andavam sempre de mãos dadas, eu costumava dizer que estava enxergando, neles, ao vivo, a juventude eterna. Nossa, foi realmente um privilégio.»

Tanto, que o privilégio virou livro, Crônicas do Coração, prefaciado pela filha de Jorge Amado e Zélia Gattai, Paloma, e publicado em setembro do ano passado, no Brasil, 16 anos depois da morte do escritor, em 2001.

«Em Crônicas do Coração conto a evolução da doença de Jorge Amado até à sua morte e relato muitas das aventuras por que passámos, fazendo uma revisita a alguns dos personagens e romances dele.»

«Já nos conhecíamos antes do episódio do enfarte, tínhamos em comum os amigos Calasans Neto (artista plástico) e sua mulher, Auta Rosa. Mas depois disso, intensificámos a amizade e as histórias que vivemos não podiam ficar guardadas só para mim. Foi assim que nasceu Crônicas do Coração, em que conto a evolução da doença de Jorge Amado até à sua morte e relato muitas das aventuras por que passámos, fazendo uma revisita a alguns dos personagens e romances dele.»

O médico, que leu todos os livros do seu paciente, tem um preferido: Quincas Berro d’Água. Mas gosta de todos. «Quando fiz o vestibular para medicina, a gente tinha de ler autores brasileiros e portugueses, e logo nessa altura me apaixonei pela literatura de Jorge Amado. Jamais, nos meus sonhos mais incontidos, imaginei que iria tornar-me médico de Jorge e, mais do que isso, criar uma relação de amizade e de bem-querer como essa.»

O cardiologista Jadelson Andrade foi presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, é diretor do Hospital da Bahia e foi médico de Jorge Amado nos últimos 12 anos de vida do escritor.

Jadelson Andrade, baiano como Jorge Amado, é filho de coronel do cacau, que o velho escritor comunista tantas vezes retratou como vilão da história, mas não foi isso que impediu o médico de passar a fazer parte da «cambada de fogueteiros», nome dado pelo escritor ao seu grupo de amigos.

«Jorge era um homem da terra dos coronéis, terra do cacau, e eu era filho de um coronel do cacau. Havia os coronéis maus e os coronéis bons. O meu pai era dos bons, como Tonico Bastos, de Gabriela. Pelo menos, é essa a impressão que tenho. Jorge também tinha essa impressão», diz Jadelson, rindo.

O filho do coronel tinha um barco, um veleiro, e foi a bordo do Serenna que muitas das histórias que conta no livro se desenrolaram. Da ida ao aniversário de Dona Canô, mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, à passagem por Cairu, onde a cidade toda desceu ao porto para celebrar o escritor «quase afundando o barco, com tudo o que traziam para lhe dar de presente», ou à visita a Mangue Seco, onde Jorge Amado escreveu Tieta do Agreste e esta se perdeu de amores pelo sobrinho Cardo, assim como a passagem por Aracaju, onde Gabriela começou a ganhar forma.

A amizade entre o médico e o famoso paciente não se ficou por Salvador. Passou também por Portugal, «terra que Jorge amava», e Paris, onde o escritor passava temporadas.

Certa vez, durante uma viagem de carro para Ipiaú, cidade natal de Jadelson Andrade, onde este e Jorge Amado iriam ser homenageados, o médico resolveu contar a história da sua primeira vez na «casa de moças» da Tia Ló, que, qual Maria Machadão, no Bataclan, comandava um exército de meninas, e acabara de receber a ruiva e ingénua Sukita, por quem o então estudante de medicina de 17 anos se apaixonou.

Paixão breve e platónica que encantou Jorge Amado, que ia tirando notas, e Zélia, como encantou os leitores de Crônicas do Coração. «Sukita fez tanto sucesso que eu estou escrevendo um romance de ficção com ela como protagonista», conta Jadelson Andrade.

Mas a amizade entre o médico e o famoso paciente não se ficou por Salvador. Passou também por Portugal, «terra que Jorge amava», e Paris, onde o escritor passava temporadas. Foi nesta cidade que, além da experiência de ir ao Lido e ter as luzes todas viradas para a mesa que partilhava com o escritor ou de integrar, numa rua parisiense, um cortejo de uma escola de samba carioca com Zélia Gattai, uma de porta­‑bandeira, o outro de mestre-sala, aconteceu uma das histórias que mais o marcaram.

Quando recebeu o doutoramento honoris causa da Sorbonne, Jorge Amado decidiu à última hora fazer o discurso em português. «Aquilo emocionou a gente, eu chorava, Zélia chorava, todo o mundo chorava. Mas Jorge era assim, de uma frontalidade e de uma generosidade imensas.»

A Sorbonne, grande responsável pela expulsão de Jorge Amado de Paris em 1950, com Pablo Neruda, que levou ao exílio destes na Checoslováquia, decidiu em 1998 conceder­‑lhe o doutoramento honoris causa.

«Foi um reconhecimento e um pedido de desculpas. Jorge, que já estava doente, muito devido às suas dificuldades de visão, tinha escrito um discurso em francês, que colocou no bolso do paletó. E ali estava ele, parado, junto do microfone, naquela sala sumptuosa da Sorbonne, aquela coisa vestal, só olhando», lembra Jadelson, que conta que ele, Zélia e toda a família presente na cerimónia pensaram que Amado tinha esquecido onde pusera o discurso.

«Até que ele riu, zombou do nosso desespero e disse que não, não tinha esquecido o discurso, ia antes fazê­‑lo em português, porque toda a sua literatura tinha sido escrita na língua portuguesa e foi por ela que os doutores daquela casa haviam entendido que ele agredia os interesses da França e o haviam expulsado dali. Aquilo emocionou a gente, eu chorava, Zélia chorava, todo o mundo chorava. Mas Jorge era assim, de uma frontalidade e de uma generosidade imensas.»

«Talvez ele tivesse vivido mais se não fosse o problema de visão. Jorge era mandão, ele dizia que não, mas tudo girava em torno dele, e de repente ele perdeu o comando, porque não reconhecia as pessoas e isso o desesperava. Aí começou o fim.»

Os últimos anos não foram fáceis. Jorge Amado tinha perdido grande parte da visão e entrou numa apatia e depressão profundas. Zélia fazia tudo o que podia para trazer o seu homem de volta.

«Até uma vacina feita com secreções de um tipo de sapo da Amazónia, receita dos índios para curar a apatia e a depressão, ela tomou, para experimentar antes de lhe dar. Aquilo fê­‑la desmaiar. E, claro, desistir da ideia.»

O médico acredita que a dificuldade de visão do escritor pode ter acelerado a evolução da doença. «Talvez ele tivesse vivido mais se não fosse isso. Jorge era mandão, ele dizia que não, mas tudo girava em torno dele, e de repente ele perdeu o comando, porque não reconhecia as pessoas e isso o desesperava. Aí começou o fim.»

Mas, diz o médico Jadelson Andrade, no fim do livro e desta entrevista: «Na verdade, um homem como Jorge Amado não morre nunca, não é?»

A 6 de agosto de 2001, outra segunda­‑feira, morria, ao fim da tarde, dias antes de completar 89 anos, Jorge Amado, no hospital que ajudou a batizar: «­Ora, Jadelson, não sei por que você está tão aflito e fazendo essa confusão. O hospital não é na Bahia? Então, você já tem o nome. Hospital da Bahia não lhe parece um bom nome?»

Não foram precisas palavras para dar a notícia a Zélia Gattai e aos filhos, Paloma e João Jorge. Bastou o olhar. Mas, diz o médico Jadelson Andrade, no fim do livro e desta entrevista: «Na verdade, um homem como Jorge Amado não morre nunca, não é?»