Entrevista Paulo Moura, em Berlim | Fotografias cedidas pela Editora Objectiva
Nadia tinha 21 anos quando, no verão de 2014, os combatentes do Estado Islâmico (EI) atacaram a sua aldeia, no Norte do Iraque. Após um cerco de duas semanas, o EI reuniu os habitantes de Kocho na escola primária. As mulheres foram separadas dos homens, levados em carrinhas e assassinados. Mulheres jovens foram vendidas como escravas.
Nadia teve vários proprietários. Foi violada e espancada. Quando se fartavam dela, vendiam‑na ou ofereciam‑na a outro ou entregavam‑na para entretenimento dos guardas. Em vários meses de cativeiro, foi serva doméstica, mercadoria em feira de escravos de Mossul, brinquedo sexual nos postos fronteiriços, para combatentes de passagem.
Quando conseguiu fugir, com a ajuda de uma família muçulmana, descobriu que lhe tinham assassinado os pais, familiares e amigos. Decidiu contar a sua história, denunciando o genocídio planeado e perpetrado pelo EI sobre os yazidis. Foi nomeada pela ONU embaixadora da Boa Vontade para a Dignidade dos Sobreviventes de Tráfico de Seres Humanos, escreveu um livro, Eu Serei a Última, acabado de editar em Portugal pela Objectiva. Falámos com Nadia Murad em Berlim, onde vive.
Quando chegou a Mossul, para ser vendida num mercado de escravas, constatou que a vida na cidade decorria com normalidade. Isso foi um choque para si?
Quando o EI chegou a Mossul, havia cerca de dois milhões de pessoas na cidade. E a maioria não saiu de lá. Continuaram as suas vidas normais todos os dias. Podiam ter deixado o território do EI, mas decidiram ficar. Muitos cristãos e xiitas conseguiram fugir dessas áreas. Para os muçulmanos sunitas teria sido muito mais fácil, o caminho estava aberto. Mas eles optaram por não o fazer.
No seu livro, conta que as pessoas viam as mulheres yazidis serem levadas em camiões, amontoadas como animais, gritando por socorro, e não faziam nada. Estariam paralisadas pelo medo?
Não era por medo. Mesmo aqueles que não estavam a combater, nem participaram nas violações de mulheres, tiravam proveito da situação, porque saquearam as propriedades dos yazidis e dos cristãos. Ou simplesmente não quiseram ter problemas. Mas, na minha opinião, alguém que assiste a um crime e não denuncia, nem ajuda a vítima, é cúmplice do crime. As pessoas poderiam ter agido. Poderiam ter‑se revoltado. Ou pelo menos ter abandonado a cidade.
«A maior parte das famílias que ajudaram raparigas yazidis a escapar fizeram‑no para receber as recompensas pagas pelas famílias delas, que chegavam a ser de 10 mil dólares.»
Que consequências teria isso tido?
A desculpa da coligação internacional para não ter bombardeado mais cedo as posições do EI foi de que havia demasiados civis na cidade. Se tivessem saído, quando podiam, a libertação teria acontecido mais cedo. Por outro lado, esses civis poderiam ter ajudado as raparigas yazidis a fugir. Mesmo hoje, poderiam testemunhar em tribunal contra os vizinhos que tiveram mulheres ou crianças como escravas. Mas não o fazem.
Na altura, algumas famílias ajudaram raparigas a fugir, como aconteceu consigo.
A maior parte das famílias que ajudaram raparigas yazidis a escapar fizeram‑no para receber as recompensas pagas pelas famílias dessas raparigas, que chegavam a ser de 10 mil dólares por cada uma. Não ajudaram desinteressadamente.
«As crianças foram submetidas a lavagens ao cérebro. Ainda hoje há muitas em Mossul, a viver com as famílias que as compraram há três anos. Esses meninos não sabem quem são os seus verdadeiros pais.»
Havia toda uma rede de tráfico, com muitos intermediários e muito dinheiro envolvido, que permitiu resgatar várias mulheres raptadas e escravizadas. Foi possível, da mesma forma, salvar as crianças capturadas?
É muito mais difícil, porque as crianças foram submetidas a lavagens ao cérebro. Ainda hoje há muitas em Mossul, a viver com as famílias que as compraram há três anos. Esses meninos não sabem quem são os seus verdadeiros pais, e também não apareceu ninguém, em Mossul ou outras zonas que estiveram sob o controlo do EI, a dizer que essas crianças não lhe pertencem e que deveriam ser devolvidas às famílias de origem. De vez em quando recebo informações sobre famílias em Mossul que têm crianças que não são delas.
Outras crianças, como aconteceu com o seu sobrinho Malik, foram transformadas em combatentes e não querem voltar.
Sim, Malik foi capturado com 11 anos, quando o EI chegou à nossa aldeia. Foi levado para um campo de treino. Falei com ele uma vez, disse‑me que é muçulmano e que pretende continuar a combater pelo EI. Estava completamente dominado mentalmente por aqueles que lhe assassinaram a maior parte da família e do seu próprio povo.
Segundo as leis estabelecidas pelo próprio EI, as mulheres «infiéis» podem ser raptadas e escravizadas, mas não separadas dos filhos pequenos. Porque não cumpriam eles esta sua regra?
Deverão ter percebido que as mulheres tentariam ensinar os filhos a manterem a sua identidade. Por isso acharam melhor leva‑los, para os submeterem a lavagens ao cérebro.
«Sim, o genocídio foi planeado, não aconteceu por acaso, porque o que eles fizeram aos yazidis não fizeram a mais ninguém. Nem aos muçulmanos, nem aos curdos muçulmanos nem aos cristãos.»
Quando os combatentes do EI chegaram à sua aldeia, de Kocho, não atacaram logo. Mantiveram um cerco de duas semanas, enquanto executavam massacres noutros lugares. Porquê?
Estavam ocupados tentando apanhar os que tinham fugido para a montanha, e roubando as propriedades das pessoas noutras regiões, porque sabiam que nós estávamos cercados e dali não podíamos fugir. Voltariam mais tarde para tratar de nós.
Tudo isto mostra que os crimes cometidos contra os yazidis não foram apenas resultado de abusos generalizados dos combatentes, mas sim de um genocídio planeado superiormente?
Sim, o genocídio foi planeado, não aconteceu por acaso, porque o que eles fizeram aos yazidis não fizeram a mais ninguém. Não fizeram aos muçulmanos, nem aos curdos muçulmanos nem aos cristãos. Quando mandavam parar as pessoas perguntavam se eram yazidis. Se sim, matavam os homens e raptavam as mulheres. Aos outros deixavam‑nos ir. O EI sabia exatamente o que queria fazer.
«Nenhuma sobrevivente me contou ter alguma vez sido ajudada por uma mulher. Pelo contrário, acusam‑nas de serem ainda mais brutais do que os maridos»
Entre todos os elementos do EI com quem contactou de forma intensa e prolongada, desde os líderes até aos captores, os familiares, os funcionários mais subalternos, não houve ninguém com um comportamento mais humano? Ninguém que tivesse em nenhum momento questionado a legitimidade da barbárie?
Pela minha experiência e pelas de todas as vítimas com quem falei, posso dizer que todos os elementos do EI, desde os líderes ao guardas, se comportavam da mesma maneira. Abusavam de nós sem culpa, como se fosse uma coisa natural.
Nem as mulheres, esposas e filhas desses elementos do EI, mostraram alguma vez solidariedade, piedade ou compreensão pelas mulheres escravizadas?
Elas aceitaram estas raparigas que foram levadas para as suas casas como escravas. Nenhuma sobrevivente me contou ter alguma vez sido ajudada por uma mulher. Pelo contrário, acusam‑nas de serem ainda mais brutais do que os maridos. Os crimes foram cometidos à sua frente, ou foram mesmo da sua responsabilidade. Estas mulheres poderiam ter abandonado os maridos, que eram criminosos. Mas, quase sempre, ficaram com eles.
«Houve 6500 mulheres escravizadas pelo EI. Depois de libertadas, foram respeitadas pela comunidade, aceites pelos maridos.Todos perceberam que elas são vítimas, não culpadas.»
A sociedade yazidi é igualmente conservadora e discriminadora das mulheres. Temeu que, depois de ter fugido do cativeiro, fosse repudiada pelos seus, por ter sido violada e convertida à força?
Os meus captores diziam‑me que não valia a pena tentar fugir, porque a minha comunidade nunca me aceitaria de volta. Isso era uma tática que eles usavam, principalmente com as mulheres mais jovens, para as intimidarem. Mas houve 6500 mulheres escravizadas pelo EI. Depois de libertadas, foram respeitadas pela comunidade, aceites pelos maridos. Porque os líderes da comunidade perceberam que elas são vítimas, não culpadas.
Depois de tudo o que aconteceu, alterou a sua visão sobre o papel da mulher? Nasceu alguma espécie de movimento pela libertação das mulheres na sociedade yazidi?
Os yazidis são muito conservadores quanto ao papel das mulheres, mas nisso não somos diferentes do resto do país. A nossa situação no Iraque já é muito difícil, com a hostilidade e violência entre os vários grupos étnicos e religiosos. Criarmos um movimento para dar mais direitos às mulheres colocar‑nos‑ia numa posição ainda mais desfavorável. Só serviria para trazer mais problemas à região.