Mulheres na frente do pelotão

Sandra Costa, de Ponte da Barca, está há 23 anos na Força Aérea (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

As militares nunca se sentiram tão integradas nas Forças Armadas. Assumem postos de primeira linha na hierarquia, mas os números mostram, a exemplo do que acontece com os homens, uma diminuição nas fileiras. O Exército, a Marinha e a Força Aérea tentam fazer cumprir as diretrizes da NATO e da ONU. Seis histórias de portuguesas que vestem a farda.

Ana Sereno queria entrar na tropa desde tenra idade. O pai cumpriu o serviço militar obrigatório e incutiu-lhe os valores do Exército. “Acabou por me empurrar nesta direção”, diz. Após o ensino secundário, a atual primeiro-sargento no Regimento de Cavalaria N.º 6, em Braga, tentou o impossível para entrar nesse ramo das Forças Armadas Portuguesas.

Porém, a saúde trocou-lhe as voltas. A miopia acentuada não lhe permitiu ingressar de imediato nas fileiras. O sonho foi adiado e Ana seguiu para a faculdade. A militar, de 31 anos, faz parte de um conjunto de mulheres que vestiram a farda a partir de 2010, ano em que o sexo feminino atingiu o número mais elevado de efetivos nas Forças Armadas.

No total, nesse ano, 5 410 mulheres tinham uma vida militar, segundo dados do Ministério da Defesa Nacional. A partir daí, o número foi descendo e não recuperou. Em 2015, eram 3 260. “Homens e mulheres diminuíram na mesma proporção em números absolutos”, adianta Helena Carreiras, responsável pelo estudo “Desigualdades de género nas instituições militares: o caso português em perspetiva comparada”, publicado pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL em 2018. A diminuição do número de recrutados, especialmente na categoria de praças, em regime de contrato, poderá, contudo, ter penalizado mais o sexo feminino.

Ana Sereno entrou no ano que hoje representa a viragem do número de mulheres militares. Mas não por vontade própria. “A medicina foi avançando e eu consegui corrigir a miopia”, afirma à “Notícias Magazine”. Já depois de terminada a licenciatura em Serviço Social, concorreu diretamente ao curso de sargentos, teve um contrato de seis anos e, após esse regime, a possibilidade de entrar nos quadros do Exército. A 31 de maio de 2017, 932 mulheres estavam em regime de voluntariado e de contrato neste ramo, em oposição às 326 que faziam parte no quadro permanente.

A jovem, natural de Guimarães, comanda atualmente o pelotão da secção de canhão no regimento de Braga e tem sob a sua alçada um grupo maioritariamente masculino. “É como se fosse a mãe. Tenho de me preocupar se eles se alimentam bem, se estão bem ou se há algum problema.” Neste ano de 2018, o sexo feminino representa 15% dos incorporados no Exército, num total de 126 militares contra 712 homens.

“Não parece haver uma redução do número de candidatas no Exército”, esclarece a socióloga Helena Carreiras. O maior problema, segundo a investigadora, pode estar na menor atratividade que as Forças Armadas suscitam hoje junto das camadas mais jovens, onde se incluem as mulheres e os regimes de contrato. “Nas primeiras provas de seleção, e antes do fim do primeiro contrato, as mulheres saem do sistema. Não há retenção”.

Ana Sereno entrou no Exército em 2010, depois de corrigir a miopia acentuada que a impedia de ingressar (Foto: Gonçalo Delgado/Global Imagens)

Outra das hipóteses que a socióloga diz querer aprofundar é a crescente qualificação do sexo feminino, cuja tendência poderá retrair a entrada nas fileiras militares. “As expectativas profissionais não correspondem ao que acontece na realidade”, explica. Elas querem mais e os contratos das Forças Armadas ainda não encaixam nas suas ambições.

A mesma situação não se verifica a quem faz vida da carreira militar: há progressão e os salários são mais altos. Por isso, mais estáveis. Uma aspirante no 5.º ano da Escola Naval, na Marinha, pode ganhar até 892 euros por mês. No ano letivo 2017/18, 54 raparigas entraram na academia desse ramo das Forças Armadas Portuguesas.

Poucas escolhas para as primeiras militares

Em 1993, Carla Ramos precisou da autorização dos pais para entrar na Academia Militar do Exército. Tinha 17 anos. “A minha mãe quase pediu para me chumbarem”, ironiza a tenente-coronel, atual chefe de serviço de suporte no Hospital das Forças Armadas, no polo do Porto. “Tinham lá tantos homens saudáveis, por que precisam de ti?”, relembra as palavras da progenitora.

Quando entrou nas Forças Armadas, a “escolha era limitada” para as mulheres. Iam para a Força Aérea ou para o Exército. Na Marinha, ainda não havia elementos do sexo feminino a fazer carreira. “Nunca hesitei”, reforça Carla Ramos. Apesar das restrições à entrada, vestir a farda camuflada da tropa pareceu-lhe a decisão mais acertada. As primeiras provas de aptidão militar vieram provar isso mesmo: no Exército sentia-se bem, integrada e completa.

A história das mulheres nas Forças Armadas Portuguesas foi feita mais de avanços do que de recuos. Em 1961, Portugal deu um passo pioneiro: um grupo de enfermeiras paraquedistas da Força Aérea foi destacado para a Guerra do Ultramar. Desempenhavam sobretudo funções de apoio aos soldados e auxílio aos feridos. Tiveram preparação física e instrução militar para superar a guerra sangrenta que assolava as antigas colónias portuguesas de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Porém, após a revolução de 1974, quase uma década passou sem grande alteração no processo de integração feminino. Apenas em 1990, a academia da Força Aérea começou a admitir mulheres em áreas como a engenharia e a administração. Seguiu-se, em 1992, o Exército, com a admissão de cadetes femininos. No mesmo ano, a Marinha abriu o recrutamento a um contingente de 80 jovens. Em 1994, entrou o primeiro grupo de mulheres oficiais para a Escola Naval.

As portas abriram-se gradualmente à entrada do sexo feminino, assim como as funções que desempenhavam dentro de cada ramo das Forças Armadas. “Quando entrámos, também não estava aberto qualquer curso às mulheres”, destaca a tenente-coronel Carla Ramos, de 42 anos, que escolheu administração militar – as restantes opções eram os serviços e as transmissões.

Talvez tenha sido essa limitação que, em 1994, terá levado a comandante Mónica Martins, de 41 anos, à Escola Naval. “Concorri à Força Aérea para piloto-aviadora e nos testes psicométricos chumbei. Fiquei apta para Engenharia Aeronáutica e concorri à Marinha. Só não fui para o Exército porque o que havia para mulheres ainda era muito na parte da logística. Não estava interessada na área.” Hoje, comanda o Navio Patrulha Oceânico NPR Sines e é a segunda senhora a comandar um navio patrulha oceânico da Marinha Portuguesa. A primeira foi a capitão-tenente Vânia Guerreiro com o NPR Viana do Castelo.

A tenente-coronel Carla Ramos entrou em 1993, aos 17 anos, no Exército (Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Forças especiais sem presença feminina

Em 1995, ver uma mulher vestida de militar não era algo comum na vila de Ponte da Barca, em Viana do Castelo. Sandra Costa, então com 19 anos, ouvia algumas bocas. “Naquela zona só se viam homens fardados. Eu esperava pelo meu pai dentro do carro e alguns diziam-lhe: ‘O polícia está dentro do teu carro’”, recorda a atual sargento-ajudante da Força Aérea Portuguesa.

Passados quase 23 anos, a chefe do setor de assistência e socorro no Aeródromo de Manobra Nº1, em Maceda, Ovar, sabe bem que aquele não era o sonho que a família inicialmente idealizava para si. “No início, o meu pai não gostou muito da ideia, até ao dia em que viu o meu juramento de bandeira. Conheceu as instalações, o que fazíamos no dia-a-dia e ficou mais seguro”, sublinha Sandra Costa, hoje com 44 anos, à NM.

Os treinos físicos durante e após a recruta nunca foram impeditivos de nada. Sandra vinha da área do desporto, sabia o que o corpo exigia e permitia e o seu aguentou. Atualmente, não há registo de mulheres em forças especiais, incluindo os Comandos, nas Forças Armadas Portuguesas. A exigência física poderá ser uma das razões que explica a ausência feminina, já que o acesso não lhes é negado.

“Por exemplo, os fuzileiros (Marinha) são uma tropa de elite, que vai para o terreno. Não podemos baixar os padrões de testes físicos, que é a grande dificuldade, pelo facto de serem mulheres”, explica a comandante Mónica Martins. Apenas as tropas paraquedistas, do Exército, têm elementos femininos: a sargento-ajudante Alexandra Serrano Rosa é a única instrutora de paraquedismo militar.

Sandra Costa

A síndrome de ser pioneira na tropa

Olhar para as portas fechadas do passado, segundo as militares portuguesas, é ver uma instituição tradicional e maioritariamente masculina encontrar gradualmente o seu rumo no processo da integração da igualdade de género. “É como um casal: há a primeira fase de namoro, o casamento e, depois, a evolução com os filhos e com a família. Hoje, já ninguém olha para trás para ver uma mulher nas Forças Armadas”, garante a tenente-coronel Carla Ramos.

“Não posso dizer que, em 1994, a Marinha estivesse preparada para receber mulheres. Até aí, os navios estavam pensados para que todos os elementos da guarnição fossem homens”, defende a comandante Mónica Martins. Atualmente, será inconcebível imaginar as Forças Armadas sem mulheres e ainda pouco preparadas, psicológica e logisticamente, para atender às necessidades das militares portuguesas – elas comandam e combatem sem restrições.

Exemplo disso é a crescente chegada a postos superiores na hierarquia militar. O ano de 2018 é um marco desse trajeto da igualdade de género. Regina Mateus assumiu, a 23 de julho, a Direção do Hospital das Forças Armadas, tornando-se na primeira mulher general portuguesa. Em tantos outros setores e funções, as mulheres militares sobressaem por serem as primeiras. Uma síndrome que é um motivo de orgulho, mas que pode acarretar situações menos positivas.

“É natural que haja mais foco sobre aquela que é a primeira mulher, porque é pioneira e está a desbravar caminho. No entanto, temos de pensar na pressão que é feita sobre elas, caso algo corra mal”, considera a comandante Marta Gabriel, representante do Estado-Maior General das Forças Armadas para a Perspetiva de Género.

Cada ramo das Forças Armadas Portuguesas tem atualmente pessoal dedicado à integração da perspetiva de género, um conceito que entrou na vida militar e em outras esferas da sociedade, para garantir o acesso de oportunidades, direitos e responsabilidades a homens e mulheres. “Quando vamos numa operação militar e queremos garantir proteção de uma população, temos de verificar as diferentes necessidades de homens e mulheres, rapazes e raparigas”, esclarece a major Diana Morais, uma das vice-presidentes do Comité Executivo da NATO para a Perspetiva de Género.

A organização transatlântica estabelece como prioridade a integração de mulheres nas fileiras militares: a média está nos 11%. Em 2017, Portugal situava-se nos 10,5%, mas há sete anos a percentagem era de 13,6 %, segundo dados revelados pelo estudo de Helena Carreiras. “É uma descida surpreendente já que há a adesão do país a esta agenda internacional”, realça a socióloga. O Comité Executivo da NATO para a Perspetiva de Género elabora atualmente recomendações para o comité militar da NATO e funciona como órgão consultivo.

A “mãe de todas as resoluções”, nas palavras da major Diana Morais, está, todavia, nas Nações Unidas. E a resolução 1325 (Mulheres, Paz e Segurança) do Conselho de Segurança, adotada a partir de 2000, tem como objetivo envolver indivíduos do sexo feminino nos processos de paz e segurança nos mais diversos contextos e países. “É mais fácil para uma mulher perceber as necessidades de outra mulher do que ser um homem a lembrar-se disso”, relembra a major. “Por isso, é tão importante haver homens e mulheres nas Forças Armadas”, sublinha.

Mónica Martins é a segunda militar a comandar um navio patrulha oceânico da Marinha, o NPR Sines (Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

A sensibilização das Forças Armadas Portuguesas para o aumento da representação feminina não reside apenas em parâmetros nacionais e internacionais. Para a comandante Marta Gabriel, há uma preocupação real para que a vida militar seja também a vida delas: “Os nossos chefes ainda são homens, mas há um crescimento de consciencialização das chefias para a questão do género.”

Não é, portanto, por acaso que o Estado-Maior General das Forças Armadas, à semelhança de outras instituições do Estado, faça parte da equipa interdepartamental do Ministério da Defesa Nacional para a Igualdade de Género e Cidadania e esteja também vinculado à Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030, publicada em Diário da República a 21 de maio. A igualdade entre homens e mulheres e o combate à violência de género e à discriminação de qualquer tipo são velhas máximas que os militares têm de cumprir, todos os dias, nas fileiras.