Mulheres da luta: as portuguesas que dão nova vida ao desperdício

Tornam ideias simples em projetos com impacto. Plantam árvores, tiram plástico de praias, fazem roupa com desperdícios, transformam garrafas em lâmpadas. O Prémio Terre de Femmes deu-lhes visibilidade e dinheiro. E elas não param. Continuam a dar o corpo ao manifesto porque acreditam que têm uma missão em nome da natureza.

Cristiana Costa costura tecidos e malhas que ninguém quer

Cristiana Costa tem faro apurado para os desperdícios têxteis que pode reutilizar na Näz, a marca de roupa sustentável que criou há dois anos e meio na Covilhã. Milhares de metros de tecidos que iam para o lixo ou que apodreciam em fábricas. Panos que não cumpriram requisitos dos clientes e perderam utilidade. Tecidos com defeitos que uma máquina de costura consegue contornar. Malhas que se desviaram da cor combinada e que voltam a entrar no circuito da moda. Centenas de quilos de fibras e botões reciclados. Tudo comprado à indústria a preços justos.

Cristiana, 23 anos, designer de moda, anda agora em testes para tentar tingir roupa com corantes naturais feitos com desperdícios da indústria alimentar. “A roupa é uma peça que está em constante contacto connosco. Se for proveniente de exploração de trabalhadores, de escravatura, não me parece correto”, comenta. A sustentabilidade, a seu ver, não é apenas uma questão ambiental, também é social e económica. E um grande desafio para demonstrar que utilizar desperdícios na confeção tem um impacto ambiental incomparavelmente superior ao uso de qualquer fibra orgânica.

A roupa da Näz divide-se em três linhas (Desperdício, Reciclada e Ecológica) e é feita em duas pequenas fábricas em Leiria e Barcelos. “São empresas de confiança, com boas condições de trabalho. Mesmo que os ordenados não sejam milionários, que não são, são fábricas onde as pessoas se sentem bem, onde podem parar para beber um café ou comer um bolo.”

Começou com 500 euros, pediu dinheiro emprestado à família para comprar as máquinas, recorreu ao crowdfunding, a Câmara da Covilhã ajudou na renda no Parkubis, no Parque Industrial de Tortosendo, onde tem o seu ateliê. Ficou na Covilhã, não regressou a casa, a Sintra.

Näz é uma palavra de origem urdu que significa ter orgulho. O resultado é roupa minimalista, confortável e versátil para mulheres. “Reduzimos as costuras, minimizamos o trabalho para tornar o preço mais acessível.” Os preços vão dos 36 euros por uma t-shirt a 96 por um macacão. Além da venda online, a Näz está em 20 lojas de Lisboa e Aveiro e chega à Áustria, Bélgica, Holanda, Alemanha e Suíça. Da coleção de verão já vendeu perto de mil peças.

O Prémio Terre de Femmes trouxe-lhe visibilidade no mercado nacional e Cristiana acredita que muda o mundo. “É possível educar o consumidor. O que compramos tem impacto para exigirmos às marcas grandes que sejam mais sustentáveis.”

Inês Rodrigues transforma lixo das praias de Maputo em azulejos e piões

Quando põe o pé em África sente-se em casa. É uma sensação que não sabe explicar. Um dia há de ir ao Zimbabué conhecer a casa onde o avô viveu. Inês, professora de Inglês, 42 anos, da Maia, está a terminar o doutoramento. É professora contratada, para o ano não sabe onde estará a dar aulas. Em 2011 fundou a Educafrica, Organização Não Governamental, e começou a iluminar aldeias na Guiné-Bissau com a “gota de luz”, garrafas de plástico de litro e meio com água até cima, dez mililitros de lixívia para não criar fungos, uma chapa de zinco para não entrar chuva, silicone na tampa para que os macacos não as abram. É uma lâmpada sem fio elétrico do projeto Tabanca Solar que ilumina milhares de casas da Guiné e que funciona como uma claraboia: o sol incide na água e a luz reflete. Pode durar três anos e substitui as fogueiras, diminui o risco de doenças respiratórias, os acidentes domésticos, o perigo de incêndios. O projeto tem também fornos solares, sistemas fotovoltaicos que iluminam escolas e centros de saúde. Em 2016 ganhou o prémio Terre de Femmes e os 10 mil euros foram usados nos desidratadores solares para secar e conservar frutas e legumes.

O Tabanca Solar já caminha sozinho, a Educafrica vai monitorizando o projeto. Este ano, Inês decidiu pisar outro país africano, Moçambique, com o África 2Eco, projeto que tira plástico das praias e das ruas de Maputo para o transformar em azulejos, taças, puxadores, piões, chapéus, fios que podem ser usados como atilhos para a agricultura. “Será feito o que a necessidade dita”, adianta. As quatro máquinas construídas com sucata, uma para triturar o plástico, três para fazer objetos, não param de trabalhar em Maputo.

Inês mantém o processo: aplicar ideias que melhoram a vida da comunidade e ensinar como podem ser executadas a quem lá vive. Levou uma turma de 75 alunos de Maputo para a recolha de lixo numa praia, 46 escolas participaram na ação junto ao mercado, envolveu escolas portuguesas na proteção da fauna bravia. E as autoridades moçambicanas aprovam o alargamento do projeto às restantes províncias. “A educação é o que faz mover o mundo. Se começarmos pelos mais novos é possível mudar o comportamento dos adultos. Se alterarmos a mentalidade de uma pessoa já é uma vitória. E percebo que fazemos a diferença quando vemos um miúdo a dizer a um adulto onde pôr o lixo.”

Marta Pinto planta árvores autóctones em jardins, quintais e bosques

O Viveiro Municipal do Porto tem dois lotes reservados às árvores que, logo que estejam preparadas, sairão dali para serem plantadas em quintais, jardins, bosques, áreas ardidas, campos abandonados, envolventes de castros, margens de rios, serras, terrenos públicos ou privados dos 17 municípios da Área Metropolitana do Porto (AMP). Há sobreiros, carvalhos, medronheiros, freixos, castanheiros – ao todo, 45 espécies.

No início, a ideia pareceu maluca. Criar e manter florestas urbanas nativas, enriquecer a biodiversidade, sequestrar carbono, proteger solos, abrir linhas de combate para arrancar plantas invasoras. Marta Pinto, bióloga, 45 anos, sabia que o projeto era ambicioso e seguiu em frente. A oportunidade de trabalhar num plano estratégico para a AMP na Universidade Católica do Porto foi o clique. “Tínhamos de envolver as pessoas no processo de melhoria do território e do ambiente e, ao mesmo tempo, aumentar a cooperação intermunicipal.” Conversar, procurar soluções. “Futuro – Projeto das 100 000 Árvores na Área Metropolitana do Porto” surgiu então para intervir em 100 hectares e plantar 100 mil árvores nativas. Objetivo cumprido, com 105 102 árvores plantadas até agora em 237 hectares, e com 25 proprietários privados envolvidos.

Coordenadora do Grupo de Estudos Ambientais da Universidade Católica do Porto e mestre em Ciências do Mar, Marta interessa-se pelo processo mais do que pelos números. “É um projeto ousado, viemos agitar o sistema”, admite. Para mostrar que se pode gerir de outra forma o território. “É possível aumentar os bosques com espécies nativas.” Com recurso a voluntários, com apoio da Católica e da Câmara do Porto.

Os cinco mil euros do Prémio Terre de Femmes foram aplicados na limpeza de matos. O galardão deu projeção, captou mais voluntários, consolidou parcerias. “O reconhecimento externo foi uma forma de confirmar que estávamos no bom caminho e dar um impulso na motivação.” O “Futuro” envolve 256 técnicos operacionais, já teve 15 mil participações voluntárias e mais de 300 organizações em atividades. E tem benefícios que não se veem, como a remoção de mil toneladas de dióxido de carbono por ano e um valor económico de quatro milhões de euros anuais em serviços ecológicos. E Marta é feliz a ver as plantas a ganhar vida.

Raquel Gaspar já tirou 37 toneladas de lixo do Sado

Transformar comportamentos, organizar campanhas de limpeza no Sado, planear projetos educativos, coordenar pescadoras. “O projeto é ambicioso, é um sonho que se tornou realidade.” A ligação de Raquel Gaspar ao mar é visceral. “Acho que nasci no mar, não sei explicar.” Ficava colada aos programas de Jacques Costeau e no 9.º ano sabia que queria ser bióloga marinha. Mais tarde, já estudante universitária, esteve a bordo de um veleiro nos Açores numa missão de uma organização internacional que queria mostrar aos açorianos que o fim da caça à baleia era uma oportunidade para proteger uma riqueza daquele mar. “Guardei isso em mim.” Fundou a Ocean Alive, a primeira cooperativa portuguesa dedicada à proteção do oceano, e avançou com o projeto “Guardiãs do Mar: Salvar o Ambiente, Preservar Empregos”, que envolve pescadoras na preservação das pradarias marinhas do estuário do Sado, retirando embalagens de sal deixadas pelos mariscadores, protegendo um cenário natural que tem o dom de eliminar o dióxido de carbono e selá-lo no fundo do oceano. “Mostramos como uma comunidade pode ser inspirada e mobilizada para proteger o habitat onde vive.” Raquel, bióloga, 48 anos, é uma mulher do mar. “Sinto que vivo para mudar o mundo e tenho a certeza que o mudo.”

O projeto olha em várias direções. As mulheres que guardam o mar têm a missão de mudar comportamentos nas suas comunidades. São guias marinhas no programa educativo que já chegou a mais de cinco mil estudantes e 1 150 professores. “A todas estas pessoas demos a conhecer as pradarias marinhas através da sabedoria e história de vida das guias marinhas.”

Todos os meses, Raquel organiza pelo menos uma ação com voluntários para limpar o plástico e outros lixos marinhos do estuário. Já foram retiradas mais de 37 toneladas de lixo e acima de 47 mil embalagens de sal. Nesta campanha, 2 512 mariscadores foram alertados para os males das embalagens de sal enterradas na areia.

Em março do ano passado eram seis guardiãs, hoje são 15. O Terre de Femmes deu mais voz à bióloga marinha que nasceu numa aldeia de Leiria e hoje vive em Azeitão. Os 10 mil euros foram investidos no recrutamento e capacitação de mais mulheres da comunidade piscatória. “Hoje tenho uma voz na proteção do oceano, que dá brilho à liderança da mulher e inspira o envolvimento das comunidades”, refere a mulher do mar.

Milene Matos contrariou a força de um ciclone no Buçaco

Milene Matos mantém-se ligada ao ambiente. É uma ligação umbilical. Há dois anos criou a Bioliving, associação sem fins lucrativos, com sede em Albergaria-a-Velha e polo em Lousada, para prestar serviços na área da conservação da natureza, desenvolver projetos educativos, organizar campos de trabalho. Milene, bióloga, 35 anos, leva a natureza muito a sério. Em 2015 venceu o Terre de Femmes e foi a primeira portuguesa a conquistar o prémio internacional e o prémio do público. Ao todo, recebeu 20 mil euros que foi distribuindo pelas ideias do seu projeto “Bio Somos Todos” na Mata do Buçaco, a semente da Bioliving, o local onde tudo começou, em 2004.

Milene andou em várias frentes de trabalho. “Era um projeto muito abrangente mas com um fio condutor: aproximar as pessoas da natureza. As pessoas da comunidade local não tinham noção da riqueza que tinham entre mãos.” Traçou planos para levar crianças, reclusos, idosos, deficientes mentais e físicos à mata, para recolherem sementes, semearem, replantarem, participarem em workshops. Em nome da proteção da natureza e da inclusão social. Produziu informação para dar a conhecer a biodiversidade de 105 hectares de património natural. Controlou espécies invasoras.

Em 2013, o ciclone Gong devastou 40% da Mata do Buçaco e Milene arregaçou as mangas. “Tentei fazer dessa calamidade uma oportunidade.” Usou dinheiro do prémio para comprar sementes de árvores únicas que o Gong tinha arrancado. “Desenvolvemos estratégias de recuperação da mata com poucos recursos e boa vontade.” Parte do dinheiro do prémio foi para a exposição fotográfica “Amor Natura”, com retratos e frases dos voluntários; e para patrocinar bolsas de estudo para crianças dos 1.º e 2.º ciclos e estudantes universitários. Depois, Milene saiu da Mata do Buçaco quando achou que já não era bem-vinda. Com algum dinheiro do prémio abriu a Bioliving, que replica o modelo que estava a usar. Milene é voluntária na Bioliving e consultora para a área de sustentabilidade na Câmara de Lousada. O Terre de Femmes deu-lhe reconhecimento, um selo de garantia do que faz. Doutorada em Biologia, pós-doutorada em Comunicação da Ciência pela Universidade de Aveiro, sabe que muda o mundo. Tal como as suas colegas. “Estas mulheres estão a fazer a diferença. Pode ser num bairro, numa cidade ou numa única floresta.”

Catarina Grilo criou cabaz de peixe fresco e amanhado

A ideia era simples mas demoraria cinco anos a ser concretizada, com muitas reuniões, leituras de documentos, pesquisas legislativas, idas à Assembleia da República. Implicou sentar à mesma mesa gente que não estava habituada a conversar. A ideia era poupar caminho na venda do peixe, eliminar intermediários no processo, para que os pescadores vendessem por um valor justo e os clientes comprassem por melhor preço. “Tínhamos de passar sempre pela lota, não podíamos contornar esse circuito. Tocávamos em várias partes, na pesca artesanal, nos pescadores, nos comerciantes de pescado. Havia a oportunidade de mudar esta narrativa, que o valor ficasse com os pescadores sem prejudicar os consumidores”, explica Catarina Grilo, bióloga, 39 anos, funcionária da Gulbenkian, que acreditou ser possível criar o cabaz do peixe. E mudar o mundo. “É mudar, é uma forma de pôr pessoas que habitualmente não trabalhavam umas com as outras a trabalhar para uma causa comum.”

Mudar a narrativa deu trabalho. A Associação dos Armadores de Pesca Local e Artesanal do Centro e Sul, de Sesimbra, constituiu-se como compradora na lota; apresentou uma candidatura ao Promar, programa operacional da pesca, para comprar uma carrinha para distribuir o peixe; alugou um armazém. Agora trata das encomendas e organiza os cabazes. São três quilos de peixe fresco, amanhado e pronto a cozinhar, que custam 22 euros e são entregues semanalmente em pontos específicos em Sesimbra, Palmela, Seixal e Lisboa. Sobretudo peixe da pesca de anzol que garante mais frescura e qualidade. Besugo, carapau, cavala, faneca, pata-roxa, pescada-branca, sarda, xaputa, chicharro, entre outros.