A melhor defesa está na mente (mas uns golpes de Kung Fu também ajudam)

Texto de Rita Neves Costa e Fotos de Pedro Granadeiro/Global Imagens

Todas as terças e sextas-feiras, a Escola Secundária Aurélia de Sousa, no Porto, acolhe no ginásio, ao final do dia, aulas de defesa pessoal. O treino orientado por Manuel Tavares faz parte das 50 academias credenciadas pela Associação de Defesa Pessoal de Portugal (ADPP), instituição sem fins lucrativos que existe desde 1982 e se tem dedicado à prática da defesa pessoal, segurança e prevenção dos cidadãos.

Em 2008, começou também a dar formação policial. Este treino é religioso no cumprimento da hora marcada e quando o relógio marca as 20 horas começa o aquecimento. À voz do treinador Manuel Tavares, todos os alunos se alinham à sua frente. Após breves indicações, inicia-se um “jogo de basquetebol” que em nada se assemelha às regras e dinâmicas deste desporto de equipa. “Decoraram os vossos parceiros?”, pergunta o treinador. “Não podem dar mais de três passos com a bola”, recorda. “Não podem falar uns com os outros.” Mais: pode-se agarrar o adversário com a bola e usar o confronto físico (moderado e sem magoar).

E tudo se complica. Todos usam camisolas brancas, o que baralha no momento de distinguir o colega de equipa do adversário. Não se ouve nada senão o bater da pesada bola de basquetebol no chão. E depois as palmas. Alguns alunos batem com as duas mãos para alertarem o colega de que estão perto e prontos a receber a bola. “Outros fazem-no para enganar o adversário, principalmente os alunos mais velhos”, diz Manuel Tavares.

Na primeira aula de defesa pessoal, há sete anos, Henrique Leal não se atreveu a tocar na bola durante o aquecimento. “Vinha com tanto medo que nem a bola conseguia agarrar. Era falta de confiança”, explica. Hoje, com 38 anos, o professor do ensino básico e secundário não só participa enquanto aluno como é igualmente treinador de defesa pessoal. Henrique abriu em novembro uma academia de defesa pessoal em Santo Tirso e, na explicação dos exercícios do treino, é ele quem auxilia Manuel Tavares: um fazendo de vítima, outro de agressor.

Os traumas físicos são piores do que os psicológicos
As razões para frequentar aulas de defesa pessoal são várias. Para Henrique Leal houve um episódio que espoletou tudo: no primeiro dia de aulas numa escola do Grande Porto, o professor foi agredido por três estudantes. “Não chegaram à agressão física, mas verbal, mais cadeiras no ar e outras coisas desse género.” A defesa pessoal pareceu-lhe uma boa opção para “gerir a sala” com confiança e para, em situações limite, conseguir defender-se. “Tive casos de pessoas que foram assaltadas durante o fim de semana e na terça-feira estavam cá. Vieram, mas não ficaram. É uma coisa que me admira”, acrescenta Manuel Tavares.

Ambos fazem parte de um grupo de alunos da Associação de Defesa Pessoal em Portugal que pretendeu evoluir na atividade e dar o passo seguinte. “Os docentes têm de obter formação específica, no mínimo cinco anos, depois de terem sido simples alunos por outros cinco anos”, esclarece Hugo Silva, responsável pelo departamento de formação da ADPP. A partir de uma formação base que os qualifica para serem treinadores, os que quiserem podem acumular outros tipos de valências ao longo dos anos e assim reforçar os conhecimentos de defesa pessoal. Tanto Manuel Tavares como Henrique Leal tiveram assim oportunidade de lecionar em locais de treino credenciados pela associação.

O treinador da aula no Porto acredita que dois anos serão suficientes para um aluno ter as técnicas necessárias para saber defender-se e ganhar confiança. “Não se aprende defesa pessoal num curso de fim de semana. A única coisa que se faz num curso é a sensibilização do que se pode vir a aprender e da fragilidade em que a pessoa está face a uma situação de perigo”, explica.

A postura assertiva e a conjugação de corpo e mente são dos objetivos mais associados à defesa pessoal, por quem a ensina. Entre os que encararam a defesa pessoal como uma atividade a longo prazo, Manuel Tavares diz haver casos de sucesso. Como a de alguém que procurou ter uma vida mais saudável – “Deixou de fumar, está mais magro e evita sair tanto à noite” -, ou de alunos que sofreram bullying. “Uma das coisas que a rua faz, não são os traumas físicos, são os traumas psicológicos. Diria que os psicológicos são piores do que os físicos”, afirma o treinador.

O conceito de “rua” é muitas vezes utilizado nas aulas como uma referência daquilo que poderá acontecer lá fora, longe das indicações e dos exercícios dos treinos de defesa pessoal. Manuel Tavares reconhece que, há cerca de dois anos, as pessoas se tornaram mais sensíveis a questões relacionadas com a segurança. “Eu arrisco dizer que a insegurança está muito camuflada em Portugal. Pensamos que vivemos num jardim, mas não vivemos”, sublinha.

“Basta abrirmos um jornal para tomarmos consciência dos vários perigos que existem. E surge cada vez mais a necessidade de nos defendermos com inteligência e não pela brutalidade”, sustenta Hugo Silva. Exemplos como o das agressões a dois jovens à porta da discoteca lisboeta Urban Beach em novembro do ano passado, que lançaram a discussão sobre a violência no espaço público, não ficam de fora destas aulas. Muitas das chamadas “situações de rua” são recriadas.

Em grupos de dois, três ou mais pessoas, os alunos tentam defender-se de confrontos físicos. “Aproximem-se do que acham que é o elemento mais fraco ou do que está mais próximo”, aconselha Manuel Tavares aos alunos. A partir daí são utilizadas técnicas para neutralizar o agressor e sair da situação de perigo. “Nós temos 72 pontos frágeis no corpo, fáceis de manipular. Andamos com eles todos os dias. Não os conseguimos deixar em casa. É preciso conhecer bem o corpo humano”, especifica o treinador.

As aulas de defesa pessoal da ADDP seguem o princípio da não-violência. Ou seja, apesar de juntarem desportos de combate como taekwondo, kickboxing, jiu-jitsu brasileiro e japonês, as técnicas estão centradas na defesa e nunca na agressão e, dentro da lei portuguesa, confinadas à legítima defesa. “Há a ideia de que para se defender tem de se andar à pancada. É a forma mais rápida de se empolar o perigo para o elo mais fraco”, alerta Hugo Silva, reafirmando que a associação não se revê nessa atitude. “Defesa pessoal terá de ser um treino de educação mental para reagir de forma adaptada ao perigo apresentado.”

As mulheres ainda aderem pouco à defesa pessoal
Algumas experiências no estrangeiro mostram como o sexo feminino tem apostado nas aulas de defesa pessoal para fazer face a atos de violência. Segundo a agência de notícias Reuters, freiras budistas na Índia estão a ensinar outras mulheres a usar técnicas de kung fu para se defenderem de predadores sexuais. Estima-se que neste país terão ocorrido 34 651 violações em 2015, mais de 43% face a 2011. Também no Quénia, algumas escolas ensinam jovens raparigas a protegerem-se de agressões sexuais através de aulas de defesa pessoal; ao mesmo tempo, sensibilizam-se os colegas rapazes a auxiliá-las e a intervir perante estas situações.

Em Portugal, de acordo com o relatório do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo de 2017, registou-se um aumento da criminalidade geral em 3,3% e uma diminuição da criminalidade violenta em 8,7% face a 2016. No entanto, não discriminando o género, a violência doméstica diminuiu em 0,8%, tendo-se registado 22 599 participações em 2017. Houve ainda mais 73 participações por crimes de violação relativamente a 2016: o número passou de 335 para 408 casos.

Nas aulas de defesa pessoal da ADDP, os alunos são maioritariamente homens. A faixa etária mais assídua está entre os 30 e os 50 anos, segundo Hugo Silva. No Porto, numa aula com mais de 20 alunos, apenas dois eram mulheres. Margarida Almeida, de 19 anos, era uma delas. “A minha primeira opção foi procurar algum tipo de atividade física e então pensei aliar este pragmatismo de saber algumas regras básicas de segurança própria”, refere.

A estudante de Artes Plásticas confessa que a violência contra as mulheres não foi a razão pela qual decidiu frequentar aulas de defesa pessoal. Porém, admite ser “uma preocupação cada vez mais recorrente na sociedade”. Manuel Tavares acredita que a defesa pessoal é para todos e a falta de mulheres nas aulas pode ser explicada, segundo o treinador, pelos muitos “cadeados” e traumas guardados de situações de perigo.

Apesar das técnicas de defesa serem importantes, a ADDP não pretende substituir as entidades que possam apoiar as vítimas de crimes de vária ordem, sejam homens ou mulheres. Por isso, no website da associação está uma lista das instituições adequadas para o efeito, como a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género e o Portal da Juventude.

Carolina Marcello, do movimento feminista Slutwalk Porto, que já organizou algumas manifestações contra a “cultura da violação e do assédio da mulher no espaço público ou privado”, afirma ter recebido alguns pedidos de informação sobre aulas de defesa pessoal, registando um interesse maior por esta atividade. “É o sentimento de insegurança e vulnerabilidade face ao assédio que leva cada vez mais pessoas a procurar este tipo de aulas. Acreditamos que grande parte das mulheres que querem participar procuram mecanismos de autodefesa para terem o mínimo de confiança e segurança no espaço público”, considera.

Para Margarida Almeida, as aulas de defesa pessoal têm sido uma “mini incubadora da sociedade”, onde estão reunidas pessoas de cenários culturais, sociais e profissionais muito diferentes. Há engenheiros, enfermeiros, médicos, estudantes e até crianças que só frequentam as aulas na presença de um familiar. “Cria-se uma tolerância e um respeito muito grandes”, resume a aluna, numa atividade em que o contacto físico é constante. Antes e no final de cada aula, todos se cumprimentam.