Maria Madalena: A Bíblia em versão feminista

Texto Rui Pedro Tendinha

A ironia tem destas coisas: Maria Madalena, de Garth Davis, filme feminista sobre a sua relação com Jesus, foi um dos últimos com o dedo de Harvey Weinstein, o produtor caído em desgraça pelas acusações de assédio sexual.

Agora, nos EUA, já com novos produtores, está à espera de que a maldição termine e que surja quem o lance nas salas. Rooney Mara, a atriz de 32 anos que dá vida a esta mulher que a Igreja Católica finalmente reconheceu como legítima apóstola de Cristo, também sorri com a bizarria da situação.

Este será um dos últimos filmes do Harvey Weinstein e, por isso mesmo, arrisca-se a não ser visto na América.

«Há um ano estávamos a filmar e nunca imaginámos como seria importante lançar este filme agora, com esta mensagem tão feminina. Este será um dos últimos filmes do Harvey Weinstein e, por isso mesmo, arrisca-se a não ser visto na América. Um filme sobre a história verdadeira de uma mulher que durante milhares de anos foi difamada, produzido pelo homem que é exposto por aquilo que fez…»

O filme, escrito e dirigido por pessoas «espirituais e não católicas», diz o realizador australiano Garth Davis, pretende dar uma visão mais ou menos realista do percurso de Maria Madalena com Jesus. Conhecemo-la como mulher já madura a ajudar a família de pescadores de Magdala e percebemos a vocação altruísta, alguém que nunca esteve fadada para casar e constituir família, apesar da pressão familiar.

Depois de conhecer Jesus e os apóstolos, Maria Madalena fica tocada pela busca do profeta em encontrar um novo reino e, contra tudo e contra todos, aceita o convite para se juntar ao grupo. A princípio é olhada com desdém pelos apóstolos, em especial Pedro, mas aos poucos é aceite por todos, mantendo com Jesus uma relação de cumplicidade espiritual.

«Também pensei que ela era a prostituta, mas essa foi sempre uma grande mentira! A Igreja já afastou esse equívoco», diz Rooney Mara.

O guião nunca sugere qualquer tipo de envolvimento emocional, apenas um respeito enorme de Jesus perante a fé de Maria Madalena. Aqui está posta de parte a teoria mitificada de que Maria Madalena era prostituta. A agenda deste projeto é muito simples: mostrar o empoderamento feminino num dos capítulos fundamentais da religião católica.

«Pensei que conhecia Maria Madalena, porque fui criada como católica e até andei na catequese, mas depois de saber mais coisas sobre a vida dela fiquei chocada», diz Rooney Mara. «Também pensei que ela era a prostituta, mas essa foi sempre uma grande mentira! A Igreja já afastou esse equívoco, mas muita gente ainda tem essa ideia errada na cabeça. Maria Madalena foi tão importante como Pedro e Paulo, os apóstolos mais falados. Eles têm igrejas com o nome deles pelo mundo inteiro, enquanto ela é conhecida como uma prostituta.»

E mesmo depois de a Igreja deixar claro que essa ideia era errada, muitos católicos passaram a procurar outro contexto para aquela mulher. «Não era prostituta?! Então era amante ou mulher de Jesus! Se o era de facto? Não sei… O que sei é que se tornou numa líder espiritual importante. Em 2018, uma mulher ter sido uma líder espiritual é algo que ainda incomoda. Estou convencida de que se tratou de uma feminista profunda, mesmo não tendo sido seguramente a primeira!»

Philippa Goslett, a argumentista, diz que «A única coisa controversa que este filme tem é contar a vida e morte de Jesus segundo um ponto de vista feminino»

Joaquin Phoenix, que interpreta um Jesus muito desgrenhado e de poucos sorrisos, fica sem saber muito bem como responder quando lhe perguntamos se há aqui cartilha católica: «Diria que é um filme espiritual. Gosto desta ideia que passamos, que o reino não era uma coisa física, mas algo a que todos temos acesso e que está dentro de nós. Para mim, essa é uma noção muito radical. Tem muito que ver com a minha própria filosofia espiritual que renega aquela moda de as pessoas irem para a Índia meditar durante uma temporada, julgando que depois disso vão ficar iluminadas e bondosas.» Uma resposta própria de quem foi criado por pais hippies e que durante a juventude se declarou ateu.

Philippa Goslett, a argumentista, não professa qualquer religião. Está convencida de que o filme pode mesmo mudar a perceção do mundo sobre Maria Madalena e não acredita que cause desconforto junto dos católicos. «Quando comecei a escrever o argumento reuni-me com muitos conselheiros religiosos, seja da Igreja Católica ou judeus. Todos concordam que Maria Madalena foi discípula de Cristo. A única coisa controversa que este filme tem é contar a vida e morte de Jesus segundo um ponto de vista feminino.»

E reforça a ideia da homenagem igualitária: «Este filme chega num momento importante, onde as mulheres, depois de serem silenciadas, começaram a ter uma plataforma para serem ouvidas. Nesse sentido, Maria Madalena tem uma ressonância forte com estes dias.»

O realizador faz questão de reforçar que também não é católico nem tem nenhuma religião. «Sou, isso, sim, fascinado pela religião», diz Garth Davis. «Esta história convenceu-me pelo lado espiritual. Se calhar, convém mesmo não ser católico para a contar melhor. Quis fazer um filme sobre amar incondicionalmente e isso, creio, é estar perto de Deus ou de alguém especial. Maria Madalena é sobre estar em sintonia com as minhas próprias crenças. Espero que as pessoas não nos associem a Harvey Weinstein! Ele foi julgado pela sociedade e afastado, fico feliz! Mas nós precisamos de seguir em frente!»

Diz o realizador australiano que foi descoberto no cinema americano precisamente por Weinstein, em Lion – A Longa Estrada para Casa, que esteve na corrida dos Óscares. As coincidências em Hollywood são perversas.

E antes deste Jesus e desta Maria Madalena?

  • A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese (1988)

O filme de Scorsese foi talvez o relato da vida de Jesus mais controverso de sempre. Quando foi lançado, no final da década de 1980, houve ferozes protestos por parte da comunidade católica. Nesta adaptação ao livro de 1951 de Nikos Kazantzakis temos um Cristo a imaginar as suas tentações (uma das quais passa por descer da cruz e viver uma vida tranquila com Maria Madalena como companheira…), um Cristo bem mais humano.

Trata-se de uma das grandes obras de Scorsese, com um fabuloso Willem Dafoe como Jesus. Quanto à Maria Madalena de Barbara Hershey, o máximo que se pode dizer é que não foge à visão generalista de a retratarem como prostituta. Há ainda a curiosidade de aparecer com tatuagens. Hershey chegou mesmo a ser nomeada para um globo de Ouro.

  • A Paixão de Cristo, de Mel Gibson (2004)

Acusado de ser gráfico demais e de algum antissemitismo, o filme realizado por Mel Gibson foi um grande sucesso de bilheteiras, focando-se na morte de Jesus Cristo, interpretado com paixão pelo católico Jim Caviezel (depois desse papel nunca mais foi chamado para grandes produções em Hollywood).

Falado em hebraico, latim e aramaico, o filme dá-nos uma Monica Bellucci na pele de uma discreta Maria Madalena – aos olhos de Gibson, uma adúltera salva por Jesus antes de ser apedrejada.

  • Filho de Deus, de Christopher Spencer (2014)

Um dos piores filmes de sempre a juntar Jesus e Maria Madalena. O grande problema do filme que deu a Diogo Morgado o grande momento de fama em Hollywood é ser uma montagem bruta e retalhada de uma versão maior de uma série com cinco episódios.

Um Jesus sem alma que encontra uma Maria Madalena com pouco carisma (interpretada por Amber Rose Revah) e que nem tem direito a estar presente na última ceia, mas que já então era vista como um dos apóstolos – antes de a Igreja a reconhecer como tal.