A maneira correta de comer sushi

Notícias Magazine

Na semana passada, quando Lisboa era invadida por eurofãs, conheci uma japonesa que vivia em Londres e tinha vindo à capital portuguesa para assistir ao festival.
Foi ela que meteu conversa comigo.

Antes mesmo de apresentar o seu nome ou a nacionalidade, disse-me de caras que odiava a canção israelita – a favorita que acabaria por se sagrar vencedora –, mas apoiava de alma e coração a artista cipriota que pôs o palco em fogo. Da candidatura portuguesa, nem sim nem sopas. Era suave, admitiu, se calhar demasiado suave.

Esse encontro aconteceu num restaurante de sushi que considero um dos melhores segredos do meu bairro. Ninguém topa que ali se come peixe cru. Tem paredes cor-de-rosa-vivo, bandeiras com orações budistas, um certo caos decorativo que nos transporta a uma Ásia menos organizada, menos nipónica. No entanto, ali estávamos eu e uma japonesa a deliciarmo-nos com o sushi que um cozinheiro nepalês nos preparara.

«Está bastante bem feito», disse a rapariga, e eu contei-lhe da nacionalidade do chef. Riu-se, surpreendida. Depois expliquei-lhe que ele tinha aprendido a sua arte em Osaka, com um cozinheiro japonês reputado. «O arroz está muito bom e no sushi o arroz é que determina a qualidade do cozinheiro», disse-me, e eu acreditei. Nem que fosse por nascimento, aquela rapariga era uma óbvia especialista na matéria.

Entretanto, a minha encomenda tinha chegado. Vinte peças, e peço sempre para reforçarem o sashimi. Preparava-me para comer o primeiro nigiri quando a rapariga japonesa soltou um grito: «Não. Não faças isso.» E foi então que me explicou que, na preparação para o repasto, eu tinha acabado de cometer uma série imperdoável de crimes de lesa-majestade.

Logo para começar, tinha separado os pauzinhos e esfregando-os um no outro, como sempre costumo fazer. «Não deves fazer isso nunca», avisou-me com um ar que não admitia réplica. «Podes magoar-te se abrires uma lasca.» Então pediu outro par ao empregado de mesa, que assentiu com a cabeça, concordando com ela.

Os meus erros estavam longe de ter terminado e havia um que era particularmente grave. É que eu tinha pegado numa dose generosa de wasabi e misturado no molho de soja. E a minha interlocutora disse-me que um japonês jamais faria isso.

«Para já, vocês ocidentais abusam da soja. Nós só usamos umas gotas e apenas no peixe. Qual o sentido de ensopar o arroz?» Respirei fundo, um bocadinho envergonhado. «E o wasabi põe-se diretamente no peixe, não se mistura no molho. Assim vai tudo saber ao mesmo, não provas a particularidade de cada peixe.»

Cumpri o resto da refeição seguindo o protocolo correto. E a verdade é que ela tinha razão, cumprindo as regras a coisa corria melhor. Dias depois, quando voltei ao mesmo restaurante, a rapariga japonesa tinha desaparecido, mas eu cumpri a refeição seguindo as suas regras e senti-me francamente bem com isso.

Dei por mim a pensar que o sushi é o paralelo alimentar do pagamento de impostos, ou da condução no trânsito. Por mais habituados que estejamos a contornar as regras, no dia em que começamos a cumpri-las percebemos o que estávamos a perder. Ainda encharco o arroz na soja, admito. Mas há de chegar o dia em que hei de comer sushi como um japonês. E, aí, podem tratar-me por Ricardo-san.

NOTA: Esta é a minha última crónica na NOTÍCIAS MAGAZINE. Após três anos a escrever aqui, online ou em papel, despeço-me agradecido aos leitores que tiveram paciência para acompanhar uma coluna que começou com David Bowie, previu o heroísmo de Eder, falou de embondeiros carregados de telemóveis, preocupou-se com o transporte de cabras em carrinhas de caixa aberta. A todos, muito obrigado.