Maio de 68, há cinquenta anos

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Último dia do ano, apetece olhar para o que vem – e a melhor maneira é olhar para trás. Como não falar de Maio de 68, que vai fazer meio século, data redonda? Para a entender melhor, há que recuar outro meio século, quando a Europa acabava a sua Grande Guerra. Ao começar, em 1914, ela fora saudada como salvadora por quase todos os intelectuais dos dois lados.

O francês Henri Bergson e o alemão Thomas Mann (que serão Nobel da Literatura mais tarde) ficaram empolgados pela causa da «civilização» (mas cada um com a sua). Só o pacifista Romain Rolland (já Nobel em 1914) denunciou o que todos reconheceriam – no fim, em 1918 – o matadouro e a lama onde a Europa mergulhara. Esse mundo feio e mau será resgatado cinquenta anos depois, num mês e em Paris, por uma utopia generosa.

Em Maio de 68, Paris era a capital dos portugueses exilados. Terra de exílio, fora sempre. Do exótico goês abade de Faria, logo após a Revolução Francesa, que fez Paris descobrir o hipnotismo e inspirou Chateaubriand (Memórias de além-Túmulo) e Alexandre Dumas (O Conde de Monte Cristo), ao Aquilino Ribeiro, por se ter metido numa história de anarquistas, na morte do rei D. Carlos. No fim da década de 1960, Paris, além dos imigrantes económicos, albergava uma pequena multidão de jovens portugueses que, por causa da guerra colonial, foram «a salto», isto é, sem passaporte

Os governos gaullistas promoviam o boom da habitação social e os camponeses portugueses reciclaram-se em pedreiros. Viviam nos bidonvilles, bairros de lata dos arredores da capital. Os estudantes politizados – desertores e refratários –, esses, viviam na cidade, nos quartos de bonne (mansarda das criadas), exíguos e baratos, sem direito a elevador, nos últimos andares dos prédios Haussmann.

As autoridades eram liberais a dar o récépissé, autorização de permanência, e o trabalho não faltava, de guard-noturno nos hotéis a docker nos cais de camionagem. Como eles esperavam notícias de mudança em Portugal, dava jeito a rotação fácil do trabalho precário. Alguns até estudavam.

Mas o verdadeiro curso era Paris. E, em 1968, curso intensivo. A revolução começou na Universidade de Nanterre, nos arredores de Paris, e a reivindicação mais popular foi acabar com a divisão entre eles e elas, nos quartos dos estudantes. Não foi pequena conquista, foi funda: na secular progressão da luta de libertação das mulheres o Maio de 68 foi um momento fundamental e a sua principal arma, a pílula.

O líder da revolta estudantil era um estrangeiro, o judeu alemão Cohn-Bendit (comparem com o primeiro parágrafo desta crónica). A palavra libertou-se, «o que queremos: tudo!», «sob as pedras da calçada, a praia», «é proibido proibir»… O Estado foi só abalado por algumas semanas, mas a ideia era colher por séculos e séculos…

Na Casa de Portugal, na Cité Universitaire, batizaram-se as salas de «Marx-Engels» e «Bento Gonçalves», o operário-intelectual comunista morto no Tarrafal… Numa parede, um cartaz irónico, «Merci Gulbenkian», debruado de foices e martelos – numa casa paga por uma fundação milionária e ocupada por revolucionários.

Por toda a Paris, até naquele nicho português se procurava, sob a calçada, a praia. Alguns estudantes foram trabalhar para fábricas, Renault, em Billancourt, Citroën, no cais Javel, para conhecer o proletariado de que tanto enchiam a boca.

Seis anos passados, no primeiro fim de semana depois do 25 de Abril, os exilados foram aos mercados de rua com um panfleto comum, de quase todas as organizações de esquerda e esquerdistas. Os que distribuíam o panfleto estavam eufóricos, regressavam. Os que recebiam, ficavam calados, como quem paga para ver. Um povo, duas comunidades e a Cidade da Luz. Temos um ano para falar disso.