Rui Cardoso Martins

A mãe não estava em casa

João Vasco Correia

O guarda vestia à civil, t-shirt e calças de ganga, e estava a ser filmado um pouco de cima, em plano picado como se diz no cinema, cabelo solto num cenário um pouco escurecido atrás de si, de maneira que parecia um actor a dar uma entrevista sobre o seu último papel num filme. Seria, nesse caso, um filme de acção com preocupações sociais:

– Ele estava a destruir a casa, havia móveis partidos. Já batera nas duas mulheres…

O tribunal perguntou-lhe, continuando a videoconferência, se o homem chegara a bater na filha por esta “se pôr à frente do pai”. E se ele e o colega, concretamente, tinham usado os cassetetes.

– Não me recordo. Acho que não foram usados cassetetes.

A voz saia com eco do ecrã. O que o polícia queria dizer é que estava à vontade para falar. Os dois polícias deslocaram-se ao prédio camarário depois de um alerta rádio sobre “desacato numa habitação”. Tinham sido chamados a acabar com uma rixa doméstica. O homem chegara bêbedo e com raiva, a mulher estava em casa e pronto.

– Ela estava bastante alterada… Chorosa, nervosa.

– Chegou a comunicar consigo sobre a violência do marido?

– Sim, por isso mesmo é que foi feito um auto de notícia por violência doméstica. Já tinha acontecido mais vezes. Ele chegara ébrio a casa.

Há bons pormenores da acção: a porta da rua partida, por exemplo, e o instante em que o bêbedo, à maneira de um cruzado apeado – ou ninja dos bonecos animados -, rodopiou a vassoura da cozinha no ar para atacar os polícias.

Mas quem estava a ser julgado neste dia não era o culpado, eram as vítimas. Mãe e filha acabaram acusadas de crime de falsidade de testemunho. As mulheres disseram que os polícias invadiram a casa sem necessidade por queixa contra “música alta” e começaram a bater no homem. Basicamente, na opinião dos guardas, o contrário do que se passou, e puseram as mulheres em tribunal.

A mãe já uma vez tinha sido condenada por detenção de arma proibida. Vive com o marido e uma filha menor, de 17 anos. A outra filha, agora acusada, tem três filhos pequenos e vive noutro apartamento do mesmo prédio. Nunca foi condenada, “graças a Deus”. Recebem as duas rendimento social de inserção, trezentos e tal euros. Disse a filha, numa voz bonita de clara em castelo:

– Vivo ilegalmente numa casa da câmara.

– Ocupada?

– Estou a resolver com a câmara, para um dia ter água e luz, que assim não posso. E para não pensarem que uma pessoa está lá e não quer dar nada.

O estar lá ou não estar lá foi, aliás, o principal argumento de defesa das duas mulheres. A versão dos polícias, a que as duas assistiram pela televisão, sentadas no banco dos réus, estaria errada desde o princípio. Começou a mãe:

– Eu só quero dizer uma coisa. Eu não estava em casa. Juro por Deus, eu não estava em casa. Estavam os meus netinhos e o meu marido. Juro perante Deus. Custa-me, juro perante Deus, juro pelos meus netinhos, eu não estava em casa. É isto que me custa.

Depois a filha:

– Estou muito chocada com o depoimento dos agentes. É uma porta que continua igual, intacta, continua a ser a mesma. É uma porta blindada, como é que estava partida se estava inteira e continua a ser a mesma? E a minha mãe não estava lá dentro. Eu juro pela minha verdade verídica: a minha mãe não estava lá dentro!

Uma mulher grande de trança a falar com calma:

– Entrei eu, entrou o meu vizinho, entrou o pai dos meus filhos que conseguiu acalmar o meu pai, e depois entrei eu e consegui acalmar os dois agentes, que estavam muito nervosos. Eu estou a ser condenada a pena de multa só por ter dito umas palavras: a minha mãe não estava lá dentro.

Não havendo mais a dizer sobre este assunto, as duas saíram veridicamente.

 

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.