Rui Cardoso Martins

A louca fuga de um chefe de mesa

Notícias Magazine

Talvez escolha mal o seu próprio cardápio. Mistura, por assim dizer, sobremesa com a sopa, champanhe com couratos. No tribunal, Orlando tentava a fusão de dois crimes diferentes e o juiz abanava a cabeça.

– O senhor não está preventivo a este processo, mas a outro…

– Senhor doutor… Eu sei que neste momento estou só a ser julgado pela falta de habilitação para conduzir. O que eu gostava, e pensei que com o meu advogado… se ele tivesse vindo… que as testemunhas poderiam reforçar o que aconteceu dentro de casa.

– Acho que não falei cambojano ou uma língua hebraica, cortou o juiz, num suspiro.

Orlando chegara de algemas e com dois guardas armados. É uma figura a meio caminho de coisas contraditórias. Bem vestido, atlético, delicado de voz, óculos pensativos, unhas polidas, mas lá dentro está uma força negra, um animal fugitivo, e podemos imaginá-lo a saltar muros, arrasar hortas, subir ao Aqueduto de Lisboa e descer como um fantasma do Bairro da Serafina.

– Senhor doutor. Nessa noite tinha saído com o proprietário do carro e uma senhora que ia com ele. Também ia uma amiga comigo. Fomos jantar e depois a uma discoteca. A uma certa altura, eram quatro da manhã, tivemos que ir levar a rapariga a casa. Estavam os dois mesmo muito… alcoolismo. Estava mesmo muito caótico.

O amigo nem conseguia ligar o carro, mas queria conduzir. Orlando bateu no vidro e disse que ele é que os levava.

– E estava em condições de conduzir?

– Eu vou ser honesto. Era ou decidir ver três amigos no hospital, ou mortos, ou prejudicando pessoas. Eu na altura fumava haxixe. Entrei em pânico. Fugi a pé… consegui fugir da polícia. Ainda estive escondido três horas. Mas caí na minha consciência e entreguei-me. Depois foi pistola à cabeça, pontapés, uma valente sova. Ainda me levaram a pé para a esquadra. Fui um quilómetro algemado a levar pontapés, “por que é que fugiste, o que é que foste esconder?”

O juiz olhava Orlando, cansado. Rapaz novo com “dois filhos de mulheres separadas”, profissional de um dos melhores hotéis do país, em plena explosão do turismo. De súbito, asneiras, prisão, desemprego.

– Estou num programa de desintoxicação de estupefacientes.

– Só haxixe?

– Era mais coisas, mas mesmo, mesmo, era haxixe.

– Snifava coca, era?

– Snifei coca, mas era esporádico. Em toda a minha vida, pode-se dizer que experimentei umas quatro vezes.

E disse isto como se acreditasse. Orlando tem três condenações por falta de carta, mas são muito antigas, com mais de 15 anos. O juiz mandou ligar a videoconferência ao guarda que o prendeu, agora em Tondela.

– Está a fazer um ano. Foi no Bairro da Serafina, ali junto da Rotunda. Nós fiscalizámos uma viatura e o senhor, na hora da abordagem, disse que precisava de ir urinar. Fez gestos de que ia urinar, nós deixámos. Mal chegou ao pé do muro, desatou a fugir. Já não o apanhámos. Passámos uma hora à procura, ali nos prédios. Depois veio ver se ainda lá estávamos. Avistei-o e descobrimo-lo num terceiro andar…

E quanto ao casal de amigos?

– Quando foram questionados sobre ele, disseram que mal o conheciam e que pouco sabiam dele.

Orlando é mais um caso a estudar no espantoso universo da alta cozinha e hotelaria internacionais: homens com sentidos refinados que mergulham em buracos negros de droga e autodestruição.

– Eu estou arrependido, obviamente. Eu tinha uma vida constituída. Obviamente que estou arrependido.

Mesmo antes de o algemarem, Orlando, virou-se para a assistência:

– O resto de um bom dia para todos os demais presentes.

Não era cambojano ou língua hebraica, mas português de chefe de mesa de cinco estrelas.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)