Jorge Amado e seus muitos amores

Notícias Magazine

O escritor Jorge Amado tinha a pecaminosa mania de tratar em tom suave os prostíbulos da sua cidade, Salvador. Na verdade, o nome da cidade é São Salvador da Bahia de Todos os Santos, fundada em 1549. Mas como sempre disse Jorge Amado, «o povo continua chamando sua cidade pelo doce nome de Bahia.» Um dia mudaram‑lhe o nome para Salvador, por arrevesados critérios dos filólogos.

Nos meus 12, 13 anos, depois do jantar, apanhava o maximbombo 4 para a Mutamba, para aproveitar as duas horas que me restavam na biblioteca da Câmara de Luanda. Já me tinha passeado por Suor, Capitães da Areia, Mar Morto e, uma noite, preenchi nova ficha: «Livro: O Cavaleiro da Esperança. Autor: Jorge Amado».

O bibliotecário disse‑me: «Sabes que há uns senhores que passam cá a perguntar quem pede livros destes, não sabes?» Ele foi à estante dos fundos, voltou, baixou as lentes, mais um aviso, e entregou‑me o volume.

Era, como sabem, uma hagiografia do santo Luís Carlos Prestes, em vésperas de se tornar comunista, e ao comando de uma coluna revolucionária pelas matas do Rio Grande do Sul.
Ao ser ameaçado de ser denunciado à polícia secreta, eu pensei menos em estar a meter‑me em política e mais em assuntos pecaminosas.

No que já sabia do baiano – e depois confirmaria em Jubiabá, Tieta do Agreste, Teresa Batista Cansada da Guerra, A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água, quase todos… –, eu estaria mais à vontade a confessar à PIDE os meus interesses de leitura do que à minha mãe. Malandros e prostitutas eram heróis recorrentes do meu herói escritor e isso era atraente.

Malandros como Quincas, funcionário farto de o ser, que abandonou a família e o emprego para se dedicar à cachaça e à vida devassa ou como o primeiro marido de Dona Flor que pelo vício do jogo chega a bater na mulher. Só bandidos? O escritor conta‑lhes o falar engraçado, são malandros de coração mole, solidários com os ainda mais abaixo… Também os bordéis são lugares de lealdades e as cafetinas, as donas, são mão que se estende às suas prostitutas e não só para receber a devida percentagem.

Vargas Llosa escreveu sobre a vontade constante de Jorge Amado mostrar o lado bom e redentor, mesmo entre os desapossados de tudo e, aparentemente, sem vontade de ter lado bom: «Todas as desventuras do mundo não são capazes de perder a vontade de sobrevivência, a alegria de viver, a capacidade de superar as adversidades.» É uma boa mensagem para garotos como eu que liam por gosto e, de caminho, iam tendo lições de vida.

Dir‑se‑à: mas crimes – a montante, meninas violadas e vendidas por pais ao coronel da fazenda – serem contados, a jusante, quando as vítimas acabam em bordéis, onde encontram um amor, que não é bem um como das outras, e onde se ri e até se declamam sonetos, não nos desarma sobre a realidade, mais seca e feia?

Dou o meu testemunho: a mim, tirou‑me vontade de alguma vez ser cliente. Igualzinho ao que Dickens me ensinou: nunca seria capaz de organizar uma quadrilha de órfãos para assaltar casas. Entretanto, um e outro, Jorge Amado e Dickens, como diz um terceiro, Vargas Llosa, são campeões da redenção. Por exemplo, Glória, tida e mantida pelo coronel Coriolano (Gabriela, Cravo e Canela), acaba por ter o professor Josué… Sempre admirei quem dá a volta por cima, embora (e talvez também por causa de leituras juvenis) nunca tenha sido ingénuo sobre ser essa a regra.

Em guia que fez sobre a Bahia, Jorge Amado, que teve em vida nome de avenida, lembra que esta se encheu de motéis e castelos e quartos de alta rotatividade. E ele não se importava quando surgiam na cidade placards publicitários, assim: «Leve sua Gabriela à Avenida Jorge Amado, ao Motel Volúpia!» Ou: «Flor, leve seus dois maridos, à Avenida Jorge Amado, ao Motel Fantasy!»