Jon Kabat-Zinn: «Os filhos fazem-nos sentir velhos e vulneráveis, mas são uma espécie de mestres zen»

Entrevista Ana Pago | Fotografia Getty Images

Formado em Medicina, concluiu em 1971 um doutoramento em Biologia Molecular no MIT, onde estudou com o prémio Nobel da Medicina Salvador Luria.

Apercebendo‑se dos limites da prática médica convencional no tratamento de diversas patologias – nomeadamente ansiedade e depressão –, desenvolveu em 1979 uma clínica pioneira para redução do stress no seio da Universidade de Massachusetts, começando a pôr em prática um programa de oito semanas de mindfulness.

Desde então tornou‑se o principal responsável pela crescente popularidade da prática da atenção plena, alargando o mindfulness ao contexto de hospitais, escolas, prisões, corporações e desportos profissionais.

O que significa realmente ser‑se um pai mindful?
A parentalidade consciente é um processo de aprofundamento, não um objetivo ou um estado final. Na verdade, não existem pais mindful: umas vezes somos mais mindful, outras menos, mas o simples facto de trabalharmos com consciência já nos vai permitir reparar se ficamos enredados em pensamentos ou somos levados por emoções reativas. E esta atenção é o mais importante, porque então poderemos escolher recuar e sermos presentes e abertos ao que quer que esteja a acontecer à nossa volta, com uma maior clareza como pais. Mais equilibrados.

Ainda assim, apesar das boas intenções e de amarmos os nossos filhos, damos frequentemente connosco a funcionar em piloto automático…
Distraídos e indisponíveis, sim. Gastamos muito do nosso tempo de pais justamente por não nos apercebermos onde estamos, presos ao passado, preocupados com o futuro, em todo o lado menos no presente. Ao trazermos nem que seja um bocadinho mais de consciência para a forma como criamos os filhos, recorrendo à prática da atenção plena, isso leva‑nos a um conhecimento aprofundado deles e nosso, mantendo‑nos em contacto com o que é importante para lhes darmos aquilo de que precisam para crescer.

«Com o mindfulness não deixamos de ser pais stressados ou preocupados ou atolados em trabalho. Teremos é mais consciência disso e essa consciência ensina‑nos que entre o estímulo e as reações existe um espaço que não tem de ser automático.»

Na prática, como se conjuga essa consciência momento a momento com o facto de andarmos sempre em stress e a correr pela vida, assoberbados?
Atenção: maior perceção não significa que vamos deixar de ser pais stressados ou preocupados ou atolados em trabalho. Teremos é mais noção de quão stressados, preocupados ou sobrecarregados estamos e essa consciência, que conhecemos como mindfulness, ensina‑nos que entre o estímulo e as minhas reações existe um espaço que não tem de ser automático. Quando aterramos no presente, sintonizados com a respiração, a totalidade do corpo, podemos então avaliar melhor o que importa. E depois trazer isso para as nossas reações, mesmo estando stressados ou sob pressão.

No fundo, esse é um dos princípios que estruturam o seu programa de Redução de Stress Baseado em Mindfulness (Mindfulness‑Based Stress Reduction ou MBSR), considerado a primeira abordagem sistematizada a ser introduzida no Ocidente…
É, sendo que diversos estudos científicos já provaram ser bastante eficazes para lidar com o stress e os desafios da vida. Se formos capazes de manter presente esta noção de parentalidade como responsabilidade sagrada, e trouxermos ao processo um certo grau de mindfulness à medida que ele se desenrola, as nossas escolhas resultarão de uma maior consciência daquilo que este filho nos pede agora, nesta etapa exata da sua vida. Além de nos permitir, a nós, descobrir o que temos de melhor como pais.

Parece que às vezes a sociedade também conspira para desrespeitar a parentalidade de diversas maneiras. Porque é tão difícil ser‑se pai hoje?
Nunca foi fácil, não é de agora. Os governos e a sociedade em geral raramente deram prioridade às necessidades das famílias: aceita‑se que alguém se dedique à carreira, mas não aos filhos. Ainda assim, há pais que descobrem formas criativas de contornar as dificuldades para cuidarem das suas crianças – pais para quem a parentalidade é sagrada –, o que nos diz que temos sempre a opção de escolher, consciente e intencionalmente, como vamos relacionar‑nos com as circunstâncias, sobretudo com os nossos filhos. O facto de não andarmos em piloto automático permite‑nos desde logo perceber se o caminho que seguimos reflete aquilo com que mais nos importamos e por que ansiamos.

«A infância molda a visão que temos do mundo. Só quando tomarmos consciência disso seremos capazes de abraçar o que foi positivo no modo como fomos criados e crescer, como pais, para lá dos aspetos que possam ter sido destrutivos ou limitadores.»

Não estarão os media, em parte, a criar as nossas crianças em vez de nós?
Claro que sim. Vivemos numa era digital comandada pelos media em que os miúdos estão expostos, como nunca antes, a todo o género de informação, influências e redes sociais. Entre tablets e smartphones, as oportunidades para nos distrairmos e sermos absorvidos pelo mundo digital são ilimitadas. A velocidade está sempre a aumentar. É muito fácil ficarmos viciados, distraídos das nossas vidas e das dos nossos filhos.

E isto quando mais precisamos de estar presentes para enfrentar os desafios emocionais da parentalidade…
Por isso é que temos de inventar soluções novas e radicais que equilibrem estas forças – um desafio à imaginação dos pais, a quem cabe regular o uso e os conteúdos a que os filhos são expostos. Podem começar por moderar o seu próprio vício, para eles não sentirem que estão a competir com os dispositivos eletrónicos por atenção. Ou passar tempo na natureza com as crianças. É muito diferente dizer‑lhes o que devem fazer ou darmos, nós mesmos, o exemplo.

Quais são os erros mais comuns que cometemos como pais? Sobretudo se andamos mais cansados ou stressados?
Em alturas assim pode ser difícil vermos além das nossas necessidades: tornamo‑nos impacientes, irritáveis, nada empáticos. Por outro lado, termos essa consciência permite‑nos ser honestos com os miúdos de modo a que eles percebam que os pais também se enervam, deixam de funcionar e é normal, afinal são humanos. Isso só se torna um problema se negarmos as emoções e fingirmos que está tudo bem quando as crianças percebem que é mentira. A melhor maneira de não as sobrecarregarmos é sermos verdadeiros com elas.

«Reconhecer que os filhos nascem com uma natureza e uma plenitude intrínsecas que não nos cabe mudar é muito diferente de prerrogativas sem limites. Por vezes, agir segundo o melhor interesse dos filhos significa estabelecer limites claros e mantê-los com bondade e firmeza.»

Como pode essa nossa inconsciência repercutir‑se no futuro dos nossos filhos?
Quando estávamos a crescer, todos nós experimentámos os efeitos desastrosos da inconsciência na família, em maior ou menor medida. Basta termos presente o que sentíamos em crianças para entendermos o quanto isso é capaz de afetar o nosso comportamento agora, com os nossos filhos, e até trazermos esse entendimento para a parentalidade, agindo mais por amor e menos por mágoa ou medo. A infância molda significativamente a visão que temos do mundo. Só quando nos tornamos cientes disso seremos capazes de abraçar o que foi positivo no modo como fomos criados e crescer, como pais, para lá dos aspetos que possam ter sido destrutivos ou limitadores.

Podemos ver os miúdos mais difíceis como uma espécie de mestres zen? Na medida em que nos põem o dedo nas feridas como mais ninguém.
Sem dúvida. E mestres zen residentes, todos eles! Os filhos pedem‑nos coisas que mais ninguém pediria, de formas que só eles podem fazer. Desafiam cada ponto sobre o qual possamos ter expetativas ou ideias fixas como pais, e daí resulta uma aprendizagem recíproca, com eles a funcionarem como espelhos onde nos vemos – e aos pontos em que somos mais resistentes –, vezes e vezes sem conta, de maneiras sempre novas. Não se perdem em contemplações teóricas. Não são sempre consistentes. Ao ensinarem‑nos a sintonizarmo‑nos com eles, ajudam‑nos a fazer escolhas melhores, que sustentam o crescimento deles e o nosso. Tornam‑nos mais tolerantes.

Mesmo quando se atiram para o chão a espernear?
E quando berram, batem em tudo e parecem loucos, sim. A partir do momento em que conseguimos pôr de lado o nosso modo habitualmente crítico de ver um comportamento perturbador, começamos a perceber que aquilo que achávamos que era mau pode ser só uma forma de os miúdos recuperarem o equilíbrio por se sentirem frustrados, descontrolados ou cheios de energia. Uma expressão passageira do seu estado interior. Quanto mais espaço abrimos em nós para os amarmos tal como são, sem querermos que mudem para nos agradar, mais se aprofunda a nossa capacidade de presença e compaixão.

«Sermos pais faz-nos sentir velhos, pouco importantes, vulneráveis como não éramos antes, e é óbvio que às vezes iremos perder a cabeça e gritar com os miúdos. Mas nunca é tarde para nos libertarmos da mágoa que estamos a sentir e avançarmos para um momento novo com os nossos filhos.»

Esse autoconfronto de que falávamos é o mais difícil na parentalidade consciente? Pelo que revela das nossas próprias angústias e dúvidas no processo?
Eu não lhe chamaria bem um autoconfronto:é mais um reconciliarmo‑nos com certas mágoas profundas que transportámos ao longo da vida sem termos noção. Tenho estado em grupos, durante formações intensivas de mindfulness, em que uma imensa tristeza pessoal proveniente da infância fluiu de homens e mulheres. Da perspetiva do mindfulness, isto são apenas medos e dúvidas, não a derradeira verdade das coisas. Mas cada pai tem de descobrir como criar em si espaço para notar esse sofrimento, recuperar sem se precipitar e aceitar‑se com amor incondicional, para então conseguir ver e aceitar os filhos como eles são também.

O que podemos aprender com as crianças a partir do momento em que estamos totalmente presentes para elas?
Em primeiro lugar, temos a possibilidade de vê-las mais claramente e de apreciar a sua beleza única e os instantes de prazer e riqueza que passamos com elas. Depois, somos constantemente lembrados de que temos de viver as nossas vidas como se importassem, porque importam, e de que não podemos dar‑nos ao luxo de não prestar atenção à nossa verdadeira natureza ou de não aprendermos a viver de acordo com ela. Se o fizermos, no final, não saberemos quem somos, nem quem fomos, nem sequer quem são os nossos filhos, por mais que pensássemos que sabíamos.

Fala muito do poder transformador da aceitação. Isso significa não traçar limites aos nossos filhos…
De forma nenhuma. Reconhecer que os filhos nascem com uma natureza e uma plenitude intrínsecas que não nos cabe mudar – como pais compete‑nos possibilitar que se mostrem na sua verdadeira aparência e encontrem o seu próprio caminho – é muito diferente de prerrogativas sem limites. As crianças não podem achar que o que quer que façam está bem, independentemente dos efeitos. Fazemos todos parte de um conjunto maior em que nos afetamos uns aos outros. Por vezes, agir segundo o melhor interesse dos filhos significa estabelecer limites claros e mantê-los com bondade e firmeza.

«Às vezes, pedir desculpa é extremamente curativo, embora mais poderoso ainda seja eu arrepender‑me das minhas ações e preocupar‑me com os sentimentos das crianças, em vez de deixar o sucedido por examinar»

Quais são as regras de ouro para construir uma relação sólida com os filhos?
Primeira regra: respeitar a soberania de cada filho enquanto ser único, com os seus atributos, temperamento, natureza e génio (inclusive se colidem com os nossos). Segunda: cultivar a empatia que nos permite tentar perceber o que experienciam e que engloba, também, uma noção dos nossos próprios sentimentos. E a terceira: encontrar formas de restaurar continuamente a nossa relação com eles, mostrando‑lhes que os amamos mesmo que discordemos ou receemos pelo futuro. Isto é algo que ninguém nos ensina. Temos de aprender por nós, através de uma escuta interior, para que sintam a tal presença empática e não rejeição.

Ainda assim, não vamos conseguir ser sempre calmos, presentes ou gentis com os nossos filhos…
Sermos pais é a catástrofe total. Faz‑nos sentir velhos, pouco importantes, vulneráveis como não éramos antes, e é óbvio que às vezes iremos perder a cabeça e gritar com os miúdos, até dizer‑lhes coisas mesquinhas. Qualquer que seja a razão do nosso descontrolo é sempre doloroso, porém nunca é tarde para nos libertarmos da mágoa que estamos a sentir e avançarmos para um momento novo com os nossos filhos. Todos temos arrependimentos: somos humanos. Entretanto, é de esperar que com cada incidente eu aprenda algo que torne menos provável voltar a acontecer.

Devemos sempre pedir desculpas quando erramos?
Às vezes é extremamente curativo, embora mais poderoso ainda seja eu arrepender‑me das minhas ações e preocupar‑me com os sentimentos das crianças, em vez de deixar o sucedido por examinar. Se eu vejo, aceito e trabalho conscientemente a minha própria gama de respostas emocionais (algumas delas muito turbulentas), a minha falibilidade, isso reforça a confiança dos meus filhos em mim. O nosso amor está na qualidade das relações momento a momento: podendo nós escolher ser bondosos e não cruéis, compreender e não julgar, aceitar e não rejeitar, eles saem fortalecidos. O passado não pode ser desfeito, é um facto. Mas só no presente existem novas possibilidades.