Isabel Galriça Neto: «A eutanásia não confere dignidade à morte. Isso é uma tentativa de a branquear»

Entrevista Sara Dias Oliveira

É contra a eutanásia e explica porquê. Porque a proteção da vida é a base dos direitos humanos. Porque uma sociedade evoluída não banaliza a morte. Para Isabel Galriça Neto, médica de cuidados paliativos e deputada do CDS-PP, este é um debate sobre valores. Sobre liberdade e dignidade.

Os defensores da eutanásia invocam o direito a morrer com dignidade. É um argumento plausível? Um equívoco? Um eufemismo?
A eutanásia, por si só, não confere dignidade à morte. Que dizer então das outras mortes, seriam indignas? Essa é uma forma de tentar branquear a morte antecipada a pedido – que será sempre retirar a vida – e de lhe dar uma qualificação superior, o que não nos parece que corresponda à realidade e, por isso mesmo, é incorreto explorar esse equívoco. A dignidade é um valor intrínseco do ser humano, que muito prezamos, e a vida é que deve ser digna.

Pedir para morrer é pedir para matar? Matar por misericórdia não faz sentido?
A chamada expressão do «desejo de morrer», que ocorre em múltiplas situações de desespero e sofrimento (e não necessariamente no fim de vida), não é por si só um pedido de eutanásia, mas é sobretudo um pedido de ajuda para viver de forma diferente. Pedir para morrer é diferente de pedir para ser morto. Sejamos claros.

Como médica, que trabalha com pessoas em fim de vida, não vê no sofrimento intolerável e devastador uma forma de a vida perder o sentido?
Convém clarificar que, como médica de Cuidados Paliativos e tendo seguido já mais de 5000 doentes em fim de vida, não tive doentes em sofrimento intolerável e devastador. Não se pode enviesar este debate e achar que a opção é entre estar em sofrimento ou escolher eutanásia. Isso é uma forma distorcida de colocar as ideias, pois o sofrimento destrutivo não é uma opção. Como médica de Cuidados Paliativos intervenho ativamente no sofrimento de um doente para que ele saia dessa situação e temos inclusivamente terapias e meios para promover a busca de sentido.

«Oferecer a morte provocada como forma de resolver a dor é, a meu ver, uma solução pobre e pouco dignificante»

Por que não respeitar o pedido e direito de uma pessoa que não quer viver por estar numa condição e situação irreversíveis e dolorosas física e emocionalmente?
Porque entendemos que, numa sociedade moderna, solidária e avançada como a nossa, um problema deste tipo não se resolve eliminando aquele que o tem. Resolve-se intervindo ativamente no sofrimento. Oferecer a morte provocada como forma de resolver a dor é, a meu ver, uma solução pobre e pouco dignificante. Que fazemos com os suicidas e deprimidos? Oferecemos ajuda para que possam reencontrar-se e reencontrar sentido na vida que resta viver, sem a encurtar ou prolongar. Oferecemos os bons cuidados médicos a que todos os doentes com essas situações deveriam ter direito (e aos quais, infelizmente, mais de 80% não tem acesso!).

A eutanásia pode ser um ato de amor?
Alguém disse que o maior erro do século XX foi pensarmos que o amor é apenas um sentimento, quando na realidade ele é, sobretudo, um ato de vontade e de inteligência. Numa situação dolorosa e penosa, em que a nossa liberdade está tão capturada e o bom senso se perde, vale a pena pôr a inteligência ao serviço das emoções, ponderar, pedir ajuda dos serviços competentes de saúde e saber que acabar com a vida de alguém não pode ser invocado como ato de amor.

«Que fazemos com os suicidas e deprimidos? Oferecemos ajuda para que possam reencontrar-se e reencontrar sentido na vida que resta viver, sem a encurtar ou prolongar»

Quais os maiores riscos de aprovar a legalização da morte assistida? Teme que a eutanásia abra graves precedentes?
A morte por eutanásia não é morte assistida, é morte antecipada e vida abreviada. A morte assistida com cuidados médicos devidos, que não encurtam nem prolongam a vida, que impedem o sofrimento destrutivo, é certamente a que todos pretendem. A legalização da eutanásia tem provado que, uma vez aceite o sofrimento como razão para matar alguém, então vão aumentando as razões para essa prática, que se banaliza. É por isso que na Holanda, em 2016, se registou uma eutanásia a cada 1h30, em pessoas que não pediram para ser mortas, em dementes, em deprimidos, em deficientes, em crianças. Casos excecionais? Em fim de vida? Não, não é isso que a realidade nos mostra e estas são razões de sobra para perceber que este não será seguramente o caminho.

A eutanásia contraria a missão de um médico de ajudar a viver até à morte quando a morte pode, em algumas situações, fazer sentido?
A missão do médico é acompanhar um doente quer ele se cure, quer não se cure, mas não temos que manter vivo à custa de mais sofrimento um doente que se apresenta numa situação avançada e irreversível. É errado ocultar que o código deontológico dos médicos, a lei em geral, proíbe a obstinação terapêutica. O que defendemos é que os doentes possam recusar tratamentos que não lhes tragam benefícios. Isso é que deve fazer sentido, lutar contra a lamentável distanásia (encarniçamento terapêutico) que ainda se pratica.

Promover a vida e combater uma cultura de morte são as principais bases para não concordar com a eutanásia?
Saber – de experiencia feito! – que tenho forma de não deixar pessoas com doenças graves e avançadas em sofrimento dito intolerável, saber que a proteção da vida é a base dos direitos humanos, saber que quero deixar aos meus filhos uma sociedade mais evoluída, que não banaliza a morte e que procura apoiar os mais vulneráveis, saber que posso promover a dignidade e a liberdade das pessoas que trato sem as matar, essas são algumas das principais razões para não concordar com a eutanásia.

«este não é um debate religioso, nem sequer matéria de esquerda ou direita. É um debate sobre valores, sobre os Direitos Humanos»

Acredita que é possível um debate sem equívocos numa matéria tão delicada?
Mais do que uma crença, é uma necessidade, pela complexidade e gravidade do tema em debate. Temos todos, e sobretudo a nível mediático, que não usar linguagem enviesada ou esconder a realidade do que se passa em países que aplicam leis como a que agora se pretende aplicar no nosso país. A última proposta apresentada no parlamento, se analisada com objetividade, permite ver que não se fala de doença terminal e fim de vida, que os pedidos não serão uma excecionalidade.

Faz sentido invocar a religião, a ética e a moral, nesta discussão?
Este tema é complexo e envolve todas essas áreas e mais algumas, mas é preciso notar que este não é um debate religioso, nem sequer matéria de esquerda ou direita. É um debate sobre valores, sobre os Direitos Humanos.

Seria importante realizar um referendo para auscultar a vontade da população? Devemos lembrar que, à exceção do PAN, nenhum partido submeteu a proposta de eutanásia aos eleitores nas últimas eleições. Existe pouca legitimidade em, por existir uma maioria circunstancial, pretender votar esta matéria, ainda mais quando se constata ausência de esclarecimento da população. Não entendo o referendo como uma medida de primeira linha a propor mas, se ele surgir, não deixaremos de participar.

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