Inês de Medeiros: «Se há na política cargo que me fica bem é um cargo autárquico»

Entrevista Alexandra Tavares­‑Teles | Fotografias Sara Matos/Global Imagens

A entrevista, marcada para a Casa da Cerca, em Almada Velha, começou às quatro da tarde de um sábado gélido.

Inês de Medeiros, desde manhã cedo à volta de tarefas orçamentais que lhe têm roubado os fins de­ semana, pede ao balcão do pequeno café uma fatia de tarte e um chá, almoço tardio. Não se queixa.

Há entusiasmo no rosto e nas palavras da atriz que os comunistas subestimaram, não reparando que se preparava há mais de um ano para a conquista do município.

A presidente garante que em conhecimento de terreno já quase se atreve a pedir meças aos almadenses de nascimento.

É verdade que o seu pai, António Victorino d’Almeida, lhe chama a «incrível almadense»?
[Risos] O meu pai tem, teve sempre, o dom da palavra e da fórmula. É imbatível nesse tipo de exercícios de criatividade que, neste caso, revelam naturalmente imenso carinho.

A vitória em Almada tem sido motivo de humor na família?
Na família rimo­‑nos muito. Devo aos meus avós (pais do meu pai) e ao meu pai a capacidade de rir. Há sempre uma dose de humor que nos acompanha, nos ajuda a criar um distanciamento salutar e a nunca nos levarmos demasiado a sério. Mas depois há também uma grande seriedade no trabalho. Neste momento, o maior desejo do meu pai é que tudo corra bem e que eu consiga encontrar o meu lugar. Preocupações de pai e de cidadão.

A expressão de espanto na noite eleitoral valeu­‑lhe algumas piadas. No fundo, apostava­‑se que estaria apavorada e questionava­‑se se a «parisiense» teria paciência para as «minudências» autárquicas. Como responde?
Ser atriz dá­‑nos a vantagem que é a capacidade de nos habituarmos desde muito cedo a que a imagem que as pessoas constroem de nós não corresponda àquilo que somos. E a sabermos viver com isso. A imagem da portuguesa­‑francesa e de uma certa snobeira que me acompanha há muito tempo é algo tão longe de mim que não merece sequer contestação. Há que encarar isto com naturalidade, consciente de que o essencial é que os nossos atos tentem espelhar da melhor forma aquilo que realmente somos, gostamos, defendemos. Essa, sim, é uma preo­cupação minha. Quem me conhece bem sabe que se há na política cargo que me fica bem é um cargo autárquico. É o melhor da política, concilia a possibillidade de agir segundo princípios com um lado muito prático e concreto.

«Quero reconhecê­‑lo muito claramente ­– a tão falada boa saúde financeira de Almada é a Maria Emília de Sousa que se deve, tendo enfrentado ao mesmo tempo os anos mais difíceis da crise. Fez obra, conseguiu mobilizar e criar espaços que são hoje em dia referências em Almada.»

Como está a ser recebida na câmara, onde há certamente muitos funcionários ligados ao PCP, o grande derrotado eleitoral?
De uma maneira geral, muito bem. Deve distinguir­‑se a filiação partidária, no livre exercício da democracia, da competência no trabalho. O problema deu­‑se em casos muito específicos e com a cúpula. Não vale a pena esconder: a transição correu muito mal, a roçar a caricatura. O ritual de transição de poder não foi cumprido, não tivemos ninguém à nossa espera­ (nem sequer a pessoa que havia sido designada para tal), o anterior chefe de gabinete desapareceu, nunca o vi, e o anterior presidente da câmara entregou­‑me a chave por ocasião de uma reunião com a FCT que tivemos em Lisboa. Resumindo, a única informação que recebemos do executivo anterior foi a de que havia uns tapetes de Arraiolos que podiam ser usados.

A que atribui essa atitude?
Gosto de dar o benefício da dúvida e por isso digo que foi talvez por desconhecimento dos procedimentos. Mas é evidente que essas atitudes criam um sentimento de mal­‑estar junto das equipas.

«Não sou desconfiada mas sou atenta. Não sou dada a teorias da conspiração mas que las hay, las hay. O que se diz no corredor é­‑me um bocado indiferente. Só me interessa o resultado prático.»

Não notou então uma atitude hostil, desconfiada, nos funcionários da câmara?
É claro que havia e há desconfiança e expetativa. Perante uma alteração tão substancial como esta é normal que os serviços estejam expectantes. Mas não notei que fosse agressiva ou hostil. Penso até que havia uma vontade de renovação. Esta câmara nunca foi de outra força política, mas no poder local mais do que a questão partidária contam as pes­soas. E aí até tive o caminho facilitado pela presidente Maria Emília Neto de Sousa, que sendo do PCP está para além do PCP. Almada ficou muito marcada pelo seu trabalho que é, de facto, uma obra muito substancial. Quero reconhecê­‑lo muito claramente ­– a tão falada boa saúde financeira de Almada é a ela que se deve, tendo enfrentado ao mesmo tempo os anos mais difíceis da crise. Fez obra, conseguiu mobilizar e criar espaços que são hoje em dia referências em Almada. Mas foi ela. Por isso, por aqui, há quem diga que a CDU só ganhou efetivamente Almada em 2013.

Com um grupo de investidores macaenses no Parque Tecnológico da Mutela, na Cova da Piedade.

Quantas pessoas levou consigo?
Muito poucas. Apenas os núcleos muito próximos, grandes lugares de confiança. Para já, não fizemos nenhuma alteração substancial nem mexemos na orgânica da câmara. Não só porque o know­‑how das equipas instaladas é precioso para quem chega mas também porque as pessoas merecem uma avaliação.

Não teme caminhos minados?
Não sou desconfiada mas sou atenta. Não sou dada a teorias da conspiração mas que las hay, las hay. E se las hay, o melhor é encarar isso com naturalidade. As pes­soas são como são e têm total liberdade de ação. O que se diz no corredor é­‑me um bocado indiferente. Só me interessa o resultado prático.

O que será para si imperdoável, vindo de um funcionário da câmara?
Não ter como primeiríssima prioridade o interesse público. Depois, a deslealdade. Não para comigo mas para com a instituição. Não exijo a ninguém que goste de mim ou da minha equipa. Podem chegar a casa e dizer o pior que há. Mas neste momento ocupo uma função e exijo respeito pelo cargo que ocupo e que resulta da expressão do voto. E o voto é algo que qualquer democrata deveria valorizar muito.

«Andámos um ano no terreno. Andei muitos meses a estudar Almada, fizemos quilómetros e quilómetros. No conhecimento do terreno, já quase desafio os almadenses de nascença.»

Jerónimo de Sousa declarou que o povo rapidamente perceberá que ao votar em si cometeu um erro. O que tem a dizer­‑lhe?
Que um democrata deve valorizar e respeitar o voto democrático. Essa declaração cria mal-estar e é incompreensível. Só posso entender essas palavras por pressão dos militantes. Foi de facto uma noite dura.

Nestes três meses quais foram as maiores surpresas?
Tenho tido algumas. A total desestruturação e desorganização, algo recente, relativa ao anterior mandato. E a extrema informalidade, que em alguns casos pode chegar aos limites da legalidade. Quando excessiva, a burocracia pode ser um obstáctulo ao desenvolvimento mas não devemos esquecer que é também garante da transparência.

«A Câmara de Almada anunciava que não tinha precários quando o que fazia era contratar empresas que por sua vez contratavam precários. Ou seja, na prática a câmara subcontratava precários, num esquema que alimenta a precariedade.»

Quer dar alguns exemplos?
Por exemplo, a Câmara de Almada anunciava que não tinha precários quando o que fazia era contratar empresas que por sua vez contratavam precários. Ou seja, na prática a câmara subcontratava precários, num esquema que alimenta a precariedade. Isso chocou-me por ser daquelas práticas que dão jeito aos empregadores mas que a esquerda tem obrigação de combater.

É dos livros autárquicos apresentar uma obra ao fim de noventa dias. O que vai apresentar?
Vamos lá ser francos: ou se apresenta obra que já estava lançada ou faz­‑se qualquer coisa à pressa, custe o que custar. Ou então, mostra­‑se uma obra de fachada. Considero isso uma inconsciência. Por isso, estes três meses muito intensos e vividos com muito empenho por todos têm servido para mergulhar profundamente nas grandes questões da câmara, nos grandes projetos em curso e trazer de forma consistente uma nova abordagem.

«O meu compromisso é tudo fazer para acabar com as barracas do Segundo Torrão e das Terras da Costa. Ou na lógica da reabilitação ou, se for preciso, recorrendo à construção.»

A extrema miséria é um dos flagelos de Almada e do distrito de Setúbal. Como tenciona combatê­‑lo?
É bom lembrar que o distrito de Setúbal e Almada são das zonas do país, senão a zona do país, com mais pobreza extrema. No último levantamento foram identificadas cerca de 2600 famílias, um dos números mais altos do país, a viver em situação de barraca. Há muitas razões para isso, porém não me satisfazem nem atenuam uma verdadeira desresponsabilização camarária em matéria de habitação, talvez até um pouco perversa. Causa­‑me alguma perplexidade que não tenha sido uma prioridade, sobretudo de uma câmara que até 2013 e 2014 tinha uma situação financeiramente confortável. Na CDU de Almada há de facto uma discrepância entre o discurso e a prática. O meu compromisso é tudo fazer para acabar com as barracas do Segundo Torrão e das Terras da Costa. Ou na lógica da reabilitação ou, se for preciso, recorrendo à construção.

O próximo orçamento já reflete esse compromisso?
Dou por mim a usar expressões como transição ou arrumar a casa [risos] mas é verdade: este orçamento é ainda de transição. Temos imensos compromissos do ano transato e portanto não traduz já e como gostaríamos as nossas prioridades.

A câmara continua a ter uma situação financeira confortável. Vinte e dois milhões de euros de saldo de gerência.
A presidente Maria Emília tinha deixado um saldo de gerência confortável, à volta dos 35 milhões de euros, muito bom se pensarmos que se viviam os piores anos da crise. Quatro anos depois, com o meu antecessor, o saldo de gerência está nos 22 milhões, dos quais cerca de 17 milhões em compromissos até porque temos desde 2016 um saldo operacional negativo muito substancial de oito milhões negativos. No ano de 2017, ficará nos 5, 5 negativos mas com o que transitou para 2018 poderia chegar aos dez milhões. Nos últimos quatro anos houve opções de gestão que considero desastrosas.

Segundo elogio à ex­‑presidente. Já se encontraram?
Ainda não, mas terei todo o gosto nisso. Haveremos de nos cruzar, um encontro que gostaria que fosse pessoal e não político. Cada vez percebo melhor o trabalho que ela fez e também do ponto de vista do feminismo. Almada confia nas mulheres e isso deve­‑se a ela. Sabemos que por vezes não basta estar no cargo para ter autoridade e é frequente ver que as ordens vindas de um homem são mais facilmente cumpridas. Em Almada, não tenho a certeza de que seja assim e esse caminho foi feito pela presidente Maria Emília.

«A vida de autarca, já sabemos, é de 24 horas sobre 24 horas, mas tenciono voltar a ter vida Não aguentaria este ritmo durante quatro anos. A minha família não me tem visto. A minha filha passou praticamente a viver sozinha de um dia para o outro.»

Prefere presidente a presidenta?
Defendo que o «e» é neutro.

Entretanto, o que mudou no seu dia­‑a­‑dia?
Tanto. Vai para lá de mudança de vida, tem sido quase a não vida. Mas temos de ter a noção de que estamos em início de mandato e que o orçamento exige um esforço imenso. A vida de autarca, já sabemos, é de 24 horas sobre 24 horas, mas tenciono voltar a ter vida Não aguentaria este ritmo durante quatro anos. A minha família não me tem visto. O meu filho já está na universidade, não vive em Portugal, mas a minha filha passou praticamente a viver sozinha de um dia para o outro. Tem 16 anos, estou sempre a ligar-lhe, mas é verdade que tem tido uma coragem e uma maturidade fantásticas. Ainda vivo em Lisboa mas tenho de arranjar um espaço em Almada porque hoje a minha vida é em Almada.

A que horas se levanta?
Seis e meia, sete. Mas já antes essa era a minha hora. Seguem­‑se quinze horas na câmara.

Nunca desliga o telemóvel?
Nunca. Tenho sempre medo de que me telefo­nem da Proteção Civil. Acho até que nem o posso desligar. Mas tento não levar trabalho para casa.

Quarenta anos no poder é muito tempo e pode ter falhado a real perceção do descontentamento que existia e que eu senti durante a campanha. Lembro­‑me de dizer ao presidente da distrital que se tivéssemos dinheiro para uma campanha a sério ganharíamos [risos].

Ao longo dos anos, o PS apostou forte em Almada. Não sendo filiada, a sua candidatura vai além do partido?
Ainda que o fator «independente» possa ter tido um papel favorável ­– não sei contabilizar, pode ter tido ou não ­–, não me apresentei como candidata independente. Fui, plenamente, a candidata do Partido Socialista. E fui candidata porque o Partido Socialista local me elegeu, na sequência da minha candidatura como deputada pelo distrito de Setúbal. Não fui imposta por ninguém, não fui uma decisão vinda do Rato ou do governo. Pelo contrário, surpreendemos a direção nacional. Foi uma vitória do partido porque fui e sou uma candidata do Partido Socialista. A noite eleitoral foi de facto uma noite emocionante. Tive o Partido Socialista de Almada a chorar de alegria, vi à minha volta dezenas de pessoas em lágrimas, algumas compulsivamente, pessoas que andaram anos a lutar por aquilo.

Que quota-parte de demérito cabe ao PCP?
Quarenta anos no poder é muito tempo e pode ter falhado a real perceção do descontentamento que existia e que eu senti durante a campanha. Lembro­‑me de dizer ao presidente da distrital que se tivéssemos dinheiro para uma campanha a sério ganharíamos [risos]. Porém, andámos um ano no terreno. Andei muitos meses a estudar Almada, a ver Almada, fizemos quilómetros e quilómetros. E esta antecipação deu­‑me muita segurança e tempo para identificar e estudar os problemas maiores de Almada. No conhecimento do terreno, já quase desafio os almadenses de nascença.

Está na hora de se tornar militante do PS?
Os militantes têm obrigações específicas que exigem uma dedicação por vezes pouco reconhecida. O que acontece é que, quando estou, estou mesmo, por vezes até obsessivamente. Entrei tarde na política e, confesso, a organização partidária não é a coisa que mais me estimula. E também ainda não senti essa necessidade. O Partido Socialista sempre me acolheu, convidou, deu espaço e liberdade.

«Nunca fiz grandes planos na minha vida. Nunca. Talvez por viver muito intensamente o presente nunca tive muito jeito para planos a médio e longo prazo.»

A conquista histórica em Almada permite novas ambições e abre a porta a uma carreira política nacional?
Nunca fiz grandes planos na minha vida. Nunca. Talvez por viver muito intensamente o presente nunca tive muito jeito para planos a médio e longo prazo. O que não é forçosamente uma qualidade. Mas a verdade é que a vida nunca corresponde às grandes planificações.

A partir de agora as ambições são outras ou não?
Como canta a Doris Day, que sera sera. Quando aceitei ser deputada não fazia ideia se seria por um ou mais mandatos. O que sei é que quando assumo um compromisso levo­‑o até ao fim. Por muito que o início seja doloroso ou duro, vou até ao fim, doa a quem doer.

Este mandato é, portanto, para cumprir?
Absolutamente.

«Não podemos confundir os dois planos. Sou uma defensora absoluta da geringonça, sou­‑o há anos e não mudo uma vírgula. Mas a questão autárquica é diferente.»

Fez todo o caminho pela esquerda, rodeada de pessoas de esquerda. Como é dialogar e governar com a direita?
Das coisas de que mais gostei no Parlamento foi da negociação, no sentido nobre da palavra, com todos. E de aprendermos a valorizar um certo pragmatismo. Nestes três primeiros meses, ao contrário de tantas especulações, os vereadores do PSD têm demonstrado uma disponibilidade total, que quero agradecer publicamente. Até agora, sabemos exatamente as diferenças mesmo em termos programáticos. Nunca houve qualquer tipo de ambiguidade.

Contrariando em Almada a geringonça nacional.
Não podemos confundir os dois planos. Sou uma defensora absoluta da geringonça, sou­‑o há anos e não mudo uma vírgula. Mas a questão autárquica é diferente.

O PCP diz que recebeu uma proposta inaceitável; a Inês diz o mesmo da contraproposta do PCP. Quem é que pode provar o que diz?
Tenho comigo o e­‑mail que o PCP me enviou na véspera da tomada de posse, à noite, quando não havia sequer possibilidade de reunir. E o que exigem chega a ser tão cómico que se podia resumir na expressão francesa sois belle et tais­‑toi. Ou seja, «vocês fazem de jarrão e nós tratamos do resto». Ficavam com todos os pelouros estruturantes remetendo­‑nos para o papel de rainha de Inglaterra. Foi de facto uma proposta tão absurda e descabida que nem sei o que pensar.

«Volta e meia até tenho tido mau feitio. Gosto muito de política mas não gosto de meias-palavras, de jogos pequeninos que não dignificam a política. Temos tido reuniões de câmara e de assembleia municipal acesas, muito acesas.»

Em contrapartida, o PSD relevou a «gentileza» da presidente nas negociações. Foi um elogio?
Entendi­‑o assim. Devemos ser gentis.

Sempre?
Não, não, volta e meia até tenho tido mau feitio. Gosto muito de política mas não gosto de meias-palavras, de jogos pequeninos que não dignificam a política. Não obrigo ninguém a fazer mea culpa mas não venham alimentar ilusões. Reajo sempre muito mal a afirmações que não correspondem à verdade. Posso ser muito expansiva e calorosa e também posso reagir rispidamente. Temos tido reuniões de câmara e de assembleia municipal acesas, muito acesas.

Os acordos com o PSD preveem a privatização de alguns serviços municipalizados?
Não há acordos nenhuns. Nem o PSD defendeu isso. Ofereci ao PCP a presidência dos serviços municipalizados de água. Se estavam tão preocupados com a privatização das águas podiam ter aceitado. Não quiseram. A lei eleitoral é o que é, e faz que esta câmara possa ter 11 vereadores, sendo que queria um executivo à imagem da expressão eleitoral. Não foi possível.

Entrou tarde na política [legislativas de 2009] a convite de José Sócrates. Começou por recusar. O que a levou a reponderar?
Recusei três vezes. A insistência levou­‑me a uma reflexão. Era minha intenção voltar a ter uma presença cada vez maior em Lisboa ­– porque tinha saudades do país, dos amigos, da família, saudades da vida portuguesa cívica ­–, estava cada vez mais implicada em causas e começava a lidar mal com o «protesto de café». Por isso, porque não tentar?

Com que ideia ficou de Sócrates?
Alguém com uma energia muito particular, uma convicção muito particular, até na forma como não aceitou as minhas recusas. Nesse sentido, acabava por ser contagiante.

E hoje, o que pensa dele?
Nunca tivemos uma relação suficientemente próxima para ter grandes convicções ou dúvidas. É um processo do qual para já ninguém sai bem, pela morosidade e pela complexidade. Devemos ter sobre este tema algum recato. E ainda bem que ao nível das forças partidárias há a consciência de que um risco maior de um descrédito de instituições, pilares da democracia, obriga a esse recato. Deixemos que a justiça faça o seu trabalho.

«Vivo com os meus filhos em Portugal desde 2010 mas ainda há quem ache que vou a Paris todos os fins de semana.»

Como dizia há pouco, a prova de fogo na Assembleia foi dura. Foi acusada de viajar para Paris a expensas indevidas da Assembleia da República. Nem nessa altura pensou desistir?
Alguns familiares incentivaram­‑me a fazê­‑lo. Não o faria e por várias razões: porque estava comprometida, porque sabia que 99,99 por cento de tudo aquilo era falso (os únicos dados verdadeiros é que os meus filhos viviam em Paris e que eu ia lá aos fins de­ semana), nunca pedi coisa alguma nem nunca me passou pela cabeça que a Assembleia pudesse pagar­‑me qualquer viagem e, por último, porque achava, talvez com alguma ingenuidade, que a verdade vem sempre ao de cima. E vem, mas demora tempo. Vivo com os meus filhos em Portugal desde 2010 mas ainda há quem ache que vou a Paris todos os fins de semana.

Nesse processo, o que mais a magoou?
Colocarem em causa a minha boa fé e honestidade. Mas tenho uma extraordinária capacidade para esquecer o que é desagradável. É um assunto de que nunca me lembro.

«Percebi que quando se está na política é­‑se sempre mais do que nós próprios. Qualquer afirmação minha, por mais pessoal que seja, é sempre mais de que eu própria. E isso é algo que aprendi.»

Da deputada de 2009, que afirmou publicamente não considerar assim tão grave um primeiro­‑ministro mentir, à política de hoje, o que mudou?
Mudou bastante. Não tem que ver com menos espontaneidade mas com a perceção de que quando se está na política é­‑se sempre mais do que nós próprios. Qualquer afirmação minha, por mais pessoal que seja a entrevista, é sempre mais de que eu própria. E isso é algo que se tem aprendido.

As gaffes, famosas entre amigos, são um reduto de espontaneidade que mantém?
Sobretudo nos nomes. Sou um bocadinho disléxica nos nomes.

A última foi a troca de Benite por Benites [Teatro Municipal Joaquim Benite].
Sempre disse Benites, não é de agora.

VEJA O VÍDEO DA ENTREVISTA COM INÊS DE MEDEIROS AQUI.

Qual foi a que mais a embaraçou?
Quando estava a fazer entrevistas para um dos meus filmes. Uma senhora a quem fui chamando Maria. Maria para cá, Maria para lá, até que a minha assistente se coloca por detrás dela com uma folha A4 na mão onde escreveu o nome correto: Marta. Dei­ indicação de que tinha percebido. E passei a tratar a senhora por D. Margarida. Nesse momento a própria reagiu. Fiquei tão envergonhada…

Vai tentar corrigir­‑se?
Devia mas não tenho a certeza de conseguir. Também porque apesar de tudo nunca me aconteceu uma coisa muito grave. Muitas vezes levo cábulas, mas se me entusiasmo muito nem assim.

Já a referência a Mário Soares em Almada, no discurso de tomada de posse, foi deliberada?
O mais possível. Era o que faltava haver territórios onde não se pudesse falar abertamente e dedicar a Mário Soares o que quiséssemos. Também não aceitaria que noutra terra qualquer não se pudesse pronunciar o nome de Cunhal. Palavras, nomes e menções proibidas era o que faltava. O 25 de Abril fez­‑se para que acabar com isso.

«A Maria, menina modelo, que todos consideravam muito precoce, era arrumadíssima. Eu, a rebelde na adolescência. Mas tinha a vantagem de ter um ar muito doce. A Maria, com os seus grandes olhos, assustava os adultos. A Maria foi sempre muito inglesa, eu era a latina, a “queridinha”…»

De deputada foi para diretora do Teatro da Trindade, onde os seus pais se conheceram.
A minha mãe estava a fazer de Anne Frank, numa encenação do Ribeirinho. Conta a lenda familiar que foi aí que o meu pai a viu primeira vez. A história tem graça por isso mas também porque a minha mãe teria 14, 15 anos e o espetáculo, por ordem do Estado Novo, estava proibido a menores de 16 ou 18 anos.

Uma família de personalidades fortes. Como era a relação com a irmã Maria?
Andávamos sempre juntas (em miúdas éramos conhecidas pelas vitorinas). Mas éramos muito diferentes e com muitas embirrações. Conseguíamos ficar zangadas durante semanas [risos]. A arrumação do quarto era um foco de conflito. A Maria, menina modelo, que todos consideravam muito precoce, era arrumadíssima. Eu, a rebelde na adolescência. Mas tinha a vantagem de ter um ar muito doce. A Maria, com os seus grandes olhos, assustava os adultos. A Maria foi sempre muito inglesa, eu era a latina, a «queridinha»…

O que as distingue?
A Maria é uma mulher do mundo, gosta e precisa de viajar, de cruzar, sente­‑se bem na circulação permanente. Sou o oposto. Não gosto de viajar, na véspera da partida tenho angústias terríveis. Sei que a minha vida não foi isso mas, se puder, sou supercaseira, não gosto de mudar de casa. Gosto de ir sempre aos mesmos restaurantes e aos mesmos bares. Sou muito sedentária. Essa é sem dúvida a nossa maior diferença.

«Certamente os meus amigos de direita não vão concordar, mas para mim esse pensamento é a esquerda que o tem. E essa a grande diferença entre direita e esquerda.»

Regressaram a Portugal no 25 de Abril, uma época de efervescência revolucionária. Um grande contraste com a vida em Viena, a cidade onde nasceu e onde viveu até aos 6 anos.
Lembro­‑me de irmos para a rua, no primeiro 1º de Maio, muito austríacas, habituadas a fazer vénias quando nos cumprimentavam, de pensar que não tinha tempo para tanta vénia e descobrir que muito melhor do que as vénias era partilhar aquela alegria. Foram tempos que nos marcaram muito, a mim e à Maria. Os meus pais não foram resistentes, nós estivemos muito protegidas. Basta dizer que, nas férias, vínhamos da Áustria para a linha de Cascais mas apanhámos com aquele vento extraordinário de alegria e da libertação da palavra e foi uma sensação extraordinária. Mais tarde, lembro­‑me de os meus pais me perguntarem se queria ter nacionalidade austríaca. Foi a pergunta mais absurda que algum dia me fizeram. Porque haveria de ser austríaca?

Na vossa família nem todos gostaram do 25 de Abril. Porém só podia ser de esquerda?
De facto, a minha avó Odete de Saint­‑Maurice nunca foi propiamente uma mulher de esquerda. Não sei como pensa a direita, não percebo [risos]. Acho que o dito pensamento de direita, seja pelo ultraliberalismo seja pelo conservadorismo, é sempre tão circunstancial que dificilmente produz qualquer pensamento de projeção de futuro. Certamente os meus amigos de direita não vão concordar, mas para mim esse pensamento é a esquerda que o tem. E essa a grande diferença entre direita e esquerda.

Ao lado de Henry Kissinger

Em 2014 foi convidada por Pinto Balsemão para assistir à conferência do Grupo Bilderberg, que reúne alguns dos mais poderosos do mundo. Fale­‑me dessa experiência.
Desde logo, estranhei o convite. Mas aquilo que me disse Francisco Balsemão foi que queria levar dois independentes (convidou­‑me a mim e a Paulo Macedo) e foi, de facto, um convite irresistível. Devo dizer que não dei conta do secretismo que se associa a essa reunião nem assisti a conspirações. Há o pedido expresso de que as ideias saídas da reunião não sejam atribuídas especificamente a este ou aquele participante, mas essa é uma condição que me parece natural. Trata­‑se de um espaço de debate, onde de resto estavam jornalistas e nessa condição.

O que mais a impressionou?
Estar algum dia lado a lado com Kissinger não era coisa que esperasse. E devo dizer que vieram ao de cima alguns sentimentos contraditórios de esquerdista [risos]. Ou estar numa fila de cantina com a rainha Sofia de Espanha, ambas com o pratinho na mão. Mas o que conta mesmo é que foram dois dias de debate muito interessantes.

As prioridades

  • Quais são as prioridades agora?
    Duas prioridades estão a dar os primeiros passos. A limpeza e uma nova atitude na assunção de responsabilidades. Fico muito feliz quando temos ecos que a nível da limpeza já se notam melhorias, resultado de equipas que, sei, estão muito mobilizadas. Era uma prioridade absoluta. Não chega, falta muito caminho, mas já o iniciámos. De facto, nas questões autárquicas, a conceção dos projetos é muito importante mas mais importante ainda é a vida quotidiana das pessoas. Temos portanto de saber dosear a planificação futura com a gestão do quotidiano. A disponibilidade para assumir novas responsabilidades surge em contraste com a que existia no anterior executivo e que foi de desresponsabilização relativamente ao governo xentral. Nós, ao contrário, queremos assumir mais responsabilidades.
  • Estão garantidos os fundos necessários?
    Claro. Temos de discutir e analisar os termos em que será feita a descentralização de competências. É evidente que ninguém quer assumir responsabilidades que não pode cumprir. Mas é uma posição essencial na defesa de uma política de proximidade. Da mesma forma que acredito e defendo que há matérias que, no interesse público, ultrapassam o âmbito local, estou absolutamente convicta da importância de assumir mais responsabilidades a nível local.
  • Um exemplo de descentralização.
    Os transportes públicos. A mobilidade é um problema em Almada. Havia estudos gerais mas nada de concreto, definido, que pudesse fazer parte de um caderno de encargos. Porque esse descartar de responsabilidades do município? Porque a negociação desses contratos, e o lançamento de concursos, está a cargo da Área Metropolitana de Lisboa. Ora o que eu digo muito claramente é que o facto de fazermos parte de uma associação não nos pode impedir de ouvir a voz dos que representamos. É bom pensar maior do que o nosso concelho mas isso não pode impedir que façamos, em simultâneo, uma reflexão mais centrada no concelho. E quem fala em transportes fala da Costa de Caparica, que está ao abandono há muitos anos sob o argumento de que a responsabilidade é de outros. Há responsabilidades inalienáveis e a planificação futura do município não deve ser delegável.

«No final do caminho voltarei ao cinema»

  • Em criança quis ser cantora de ópera. Mais tarde, quis dedicar­‑se ao restauro de arte.
    Quando surgiu a ideia da ópera era muito pequena. Desisti dela quando a Maria, numa maldade de irmã, me mostrou uma fotografia da Montserrat Caballé, gordíssima. E acrescentou: « Vai, vai para ópera e ficas assim.» O restauro de arte apareceu já depois do Liceu Francês. Queria muito fazer alguma coisa com as mãos e ainda hoje tenho imensa pena de não ter conseguido. Agrada­‑me a ideia de arranjar e reabilitar. Não vou fazer análises psicológicas mas a ideia era fazer alguma coisa de manual.
  • Entretanto, como gosta de dizer, o cinema encontrou­‑a.
    Comecei trabalhar em cinema aos 17, 18 anos, intensamente. O meu grande fascínio pelo cinema sempre teve que ver com a sua globalidade, com a conjugação de vontades para tornar real uma ideia abstrata. Nunca foi apenas ser atriz. A certa altura fiquei tão fascinada que quis passar por todos os setores.
  • Até maquilhadora foi.
    Até maquilhadora. Da Isabel de Castro, coitadinha, mas ela era tão bonita que só podia ter corrido bem. O somatório dessas experiências foi um filme fantástico do Joaquim Pinto, Pedra no Bolso, em que fui atriz, assistente, trabalhei no argumento, nos décors, no guarda­‑roupa, na maquilhagem, na produção. Depois, experimentei a produção, a escrita de argumento e fui assistente de realização.
  • Tem saudades dessa vida? Faz­‑lhe falta?
    De vez em quando faz. E sei que no final do caminho voltarei sempre ao cinema. É a minha casa.
  • O movimento #metoo partiu do cinema. Já passou por uma situação de assédio?
    Desde cedo percebi que nunca se deve confiar no produtor oleoso que nos vem prometer uma carreira. Geralmente é porque ele não tem carreira. Nunca tive nenhum momento complicado.
  • E na Assembleia da República?
    Assédio, não. Talvez por ter sido atriz criei mecanismos de proteção e salvaguarda que me ajudam a relativizar. Um comentário pode ser deselegante sem, contudo, configurar assédio. Assédio, nunca o senti. Outra coisa é o machismo latente nos mais pequenos gestos, como acharem que por sermos mulheres podem pôr a mão no nosso ombro. Ou o ligeiro paternalismo. A verdade é que tudo o que dizemos, ainda mais vindo de uma atriz de quem se acha que sabe pouco de politica, é levado com uma dose de condescendência. E isso é insuportável. Na assembleia sentia­‑se imenso. Nos mais velhos mas também em gente nova, nos jovens «machos alfa». Sobretudo nestes, o que é terrível. Há de facto ainda muito caminho para fazer.

Museus fechados ao domingo

«Há paradoxos com os quais fui confrontada e que tenho muita dificuldade em explicar. Nestes últimos anos, as despesas com o pessoal dispararam mas à despesa não correspondeu maior eficácia de serviços. Evidência disso são os museus. Os museus em Almada fecham aos domingos quando é conhecida a luta do PCP na Assembleia pela abertura dos museus aos domingos e com entrada livre. E sou testemunha da forma intransigente e sem olhar a custos com que o PCP defende a proposta. Estranho portanto chegar a Almada e verificar que aqui a questão orçamental foi prioritária e, portanto, não há museus ao domingo. Ainda por cima fecham às seis da tarde nos restantes dias da semana, no inverno e no verão. Uma regra que inutiliza, em grande medida, espaços fantásticos como a Casa da Cerca, um local ideal para beber um copo ou visitar ao fim da tarde. Muito dificilmente os almadenses podem usufruir do que têm de melhor. É comum ter­‑se uma ideia meritória da gestão autárquica da CDU, e em muitos casos faz sentido. Daí a minha perplexidade ser ainda maior.