Hemofilia: passado, presente e futuro de uma doença terrível

Notícias Magazine

Texto Ana Cristina Câmara | Fotografias José Sérgio

No Hospital de Santa Maria, inaugurado um ano antes de ter nascido, foi diagnosticado, ainda bebé. Ali recebeu cerca de 120 transfusões de sangue, entrou e saiu de internamentos; atravessou os velhos corredores do serviço, desvairado, a exigir análises para saber se tinha contraído o vírus da sida e nem um acidente de viação, que o deixou em coma e para morrer, o impediu de voltar a ver os cantos à casa. Estar vivo, quase a celebrar 64 anos, vai contra as probabilidades. Carlos Maria é uma pessoa rara. Tem hemofilia A grave, com 0,8% de fator VIII.

Trava-se no seu corpo, desde o primeiro dia, uma guerra sem tréguas nem fim contra esta doença hereditária e crónica, passada de mãe para filho, que provoca hemorragias espontâneas (ver infografia e caixa Palavras-Chave).

Carlos cresceu superprotegido, se se queixasse de uma dor, a mãe agarrava no filho único e iam para Santa Maria. «Ela não me deixava sofrer», recorda, sentado numa cadeira da casa de Almada, onde vive desde que se casou, há 30 anos. Não vai para o sofá, baixo e fofo, atreito a desequilibrá-lo; custa-lhe andar.

Carlos Maria tem 63 anos e hemofilia A grave, com 08% de fator VIII. É um caso raro de longevidade.

Aos três anos teve uma crise quase fatal. Lembra-se dos três meses de internamento, a mãe não largou a cabeceira do menino de cabelo curto e franja a direito. As idas ao hospital faziam parte da rotina. Carlos tinha sido diagnosticado em Santa Maria, depois de a mãe se alarmar com nódoas negras que apareciam quando começou a gatinhar.

A notícia deixou-a em choque. O sentimento de culpa nunca a abandonou. «Nos internamentos e nas crises grandes, com muitas dores e transfusões de sangue, a minha mãe pedia-me desculpa por me ter transmitido a doença. E eu dizia-lhe: “Ó mãe, tu não tens culpa, nem tu sabias!”»

«Nos internamentos e nas crises grandes, com muitas dores e transfusões de sangue, a minha mãe pedia-me desculpa por
me ter transmitido a doença. E eu
dizia-lhe: “Ó mãe, tu não tens culpa, nem tu sabias”», conta Carlos Maria.

O oposto destas palavras ouviu-as Sandra Quitério há três anos. O filho, Guilherme, tinha 7. Era de manhã, Sandra dava-lhe o tratamento, a parafernália de seringas e produto, já rotinada. Só que Guilherme não queria e virou-se para a mãe: «A culpa disto tudo é tua!»

Sandra gelou. «Engoli em seco, fiz-lhe o fator e nunca mais falei nisso.» O peso de sentir que o filho sofria por culpa dela já estava relativizado. «Ao princípio» não foi assim. Emociona-se. «Mas tive o apoio do meu marido», recorda, à mesa da cozinha com os homens da família e a filha, Carolina.

O marido, Vítor Quitério, militar da Marinha, passava a semana no Alfeite e só estava em casa, em Maiorga, uma aldeia perto de Alcobaça, ao fim de semana. Sandra, com antena de mãe, andava desconfiada.

A gatinhar, logo os hematomas marcavam o corpo do bebé. Os pais não lhe vestiam calções no verão, nos passeios; o olhar dos outros incomodava-os. A pediatra disse a Sandra que aos 15 meses fariam uma despistagem e falou-lhe de hemofilia. Não havia casos na família.

Quando os médicos deram o diagnóstico de Guilherme – hemofilia A grave, com zero por cento de fator VIII – «o chão fugiu.» Sandra não conteve as lágrimas. O mundo da família Quitério parou.

Não foi preciso esperar tanto. Aos 14 meses, Carolina, oito anos mais velha do que o irmão, avisou a mãe: o bebé bateu com o rabo num carrinho de brincar e magoou-se. Apareceu uma nódoa negra, pequena.

«No dia seguinte de manhã, terça-feira 16 de setembro de 2008, aquilo estava muito maior.» Ligou para a pediatra, que observou o bebé no consultório, em Leiria, a 30 quilómetros dali. A hemofilia voltou à baila. Como Sandra mantinha a negativa, a médica enviou de imediato mãe e filho para o hospital de Leiria.

As análises não eram conclusivas. Os médicos mandaram-nos para Coimbra. Ao fim de umas horas, deram-lhe o diagnóstico: hemofilia A grave, com zero por cento de fator VIII. «O chão fugiu.» As lágrimas, não as conteve. O mundo da família Quitério parou.

Já o mundo de Nuno Lopes estava de novo em movimento, após 17 estáticos anos, em que pouco saiu de casa. Namorava há um mês com Ana, principal responsável pelo fim deste exílio. Nos meses seguintes, retomaria os estudos para concluir o secundário, trabalharia num call center, e mais tarde entraria na Faculdade de Letras e iniciaria a profilaxia.

Anos depois estaria a viver com Ana em Carnaxide, a trabalhar na RTP em audiodescrição para cegos e legendagem para surdos – a sua quota-parte na anulação da exclusão – e envolvido na Associação Portuguesa de Hemofilia e de outras Coagulopatias Congénitas (APH), um passo decisivo para enfrentar a doença. Este novo Nuno distava do jovem de 19 anos que tinha desistido da escola, «zangado com a vida», como reflete agora, aos 45.

Nuno Lopes, com a namorada, Ana. Hoje, aos 45 anos, tem a tranquilidade que não teve durante a infância e adolescência devido à doença.

Fisicamente, esteve parado – a escrever, ler, ouvir música, ver filmes, sentado, deitado, ao computador, ligado depois aos outros através de um site de escrita criativa. «Uma vida com poucas recompensas, mas uma vida simples.» E má para as articulações, naquela imobilidade.

Conheceu a namorada num encontro entre algumas das pessoas que participavam no site. E disse logo que tinha hemofilia – estavam «a comparar desgraças». Para ela, a doença não teve influência na relação que viria a nascer entre os dois.

É veterinária, estudou Genética, conhece o distúrbio. «Vi o impacto da doença nele, as dores crónicas, os problemas crónicos», conta. Já namoravam quando Nuno iniciou a profilaxia, em autotratamento.

Ana é taxativa no resultado: «É a diferença entre ter uma vida normal e passar a vida na cama, numa bolha, por causa das hemorragias.» Aquele tempo depressivo, em que via três ou quatro pessoas por ano, terminou.

«Quando apareceu aquele grande medo da sida, a escola tornou-se infernal. A sida era propagandeada como a doença dos quatro “h”: homossexuais, heroinómanos, haitianos e hemofílicos», lembra Nuno Lopes.

Tinha sido a maneira encontrada para sobreviver. A escola, na Margem Sul, deixou marcas. Não era só a frustração de não completar uma semana de aulas porque as dores o prendiam à cama. Era o resto. Os insultos, à boleia de ter vivido três anos na Guiné, com os mesmos nomes ofensivos «lançados aos retornados e às primeiras gerações que vieram».

Nuno não escondia a hemofilia A grave, diagnosticada pouco depois de nascer, na altura em que o irmão, Paulo, dois anos mais velho, também recebeu a notícia. «Quando apareceu aquele grande medo da sida, a escola tornou-se infernal. A sida era propagandeada como a doença dos quatro “h”: homossexuais, heroinómanos, haitianos e hemofílicos.»

Falavam dele pelas costas: «É hemofílico, falta muito, pimba!, tinha de ter sida.» Uma vez a turma quase toda foi ao conselho diretivo para que ele saísse da escola. Se a escola não o expulsou, também não soube protegê-lo, nota Nuno.

«O medo da sida, deles, era muito parecido com o meu, sendo certo que eu me sentia muito mais vulnerável e exposto porque a partir de 1985 comecei a fazer tratamentos com crioprecipitado» (ver caixa «A Revolução Está a Chegar»).

«É fundamental que a família
se reestruture», diz Malam Turé. «Nós, enfermeiros, acabamos por ser confidentes destas famílias, temos de conquistá-las, têm de ganhar confiança em nós – o doente vem a seguir.»

Em Santa Maria, diziam-lhe que não havia problema. Só que houve. «Eu e o meu irmão escapámos entre os pingos da chuva.» Ligavam a televisão e parecia que «tudo o que era hemofílico estava infetado». Ao medo colou-se o estigma.

No que ficou conhecido em Portugal como «o caso dos hemofílicos», um lote de fator contaminado com o vírus da sida, proveniente de um laboratório austríaco, foi dado aos doentes, apesar dos alertas da APH entre 1986 e 1987 ao Ministério da Saúde, liderado por Leonor Beleza.

Em 1994, o Ministério Público acusou a ex-ministra do crime de propagação de doença contagiosa com dolo eventual. O processo prescreveu antes de haver julgamento. A APH representou 137 pessoas, entre hemofílicos contaminados e companheiras por eles infetadas. Destas vítimas, só 37 estariam vivas em 2009, segundo notícias da época.

A atual direção da APH afirma desconhecer o número de infetados e de sobreviventes.
«Conheço hemofílicos que sobreviveram, mas a maioria morreu», diz Carlos.

Começou a saber de pessoas, tratadas com ele, que estavam a morrer. Teve de ser acompanhado por um psiquiatra. Cada ida a Santa Maria era uma angústia. «Numa semana, pedia três ou quatro análises para ver se estava contaminado. Andava completamente doido!» A mulher, Maria Inácia, como ele funcionária das Finanças, acrescenta que o marido «apanhou uma grande depressão». Todas as análises de Carlos deram negativo.

Sem um registo nacional, não se sabe quantas pessoas com hemofilia há no país, mas estima-se que sejam cerca de mil – um caso por cada dez mil nascimentos. A APH tem registo de 764 doentes.

A revolta continua com ele, mas confia no sistema, afinado pela tragédia: a medicação que usa – começou a profilaxia em 2003, quando se reformou, aos 49 anos – ainda é à base de plasma. O mais comum, hoje, são terapêuticas não derivadas de sangue, os recombinantes.

Dar o diagnóstico de hemofilia é «complicadíssimo», reconhece Cristina Catarino, responsável pelo Centro de Coagulopatias Congénitas no Centro Hospitalar Lisboa Norte/Hospital de Santa Maria. Trabalha nesta área há quase 25 anos e tem na consulta cerca de «150 hemofílicos, dos quais 70 são graves». Muito poucos com mais de 50 anos.

Regularmente chegam novos casos, sobretudo de hemofilia ligeira (só precisam de tratamento se fizerem um traumatismo, uma cirurgia, etc.), a Santa Maria, que é um dos centros de referência em Portugal, a par de São José e D. Estefânia (Centro Hospitalar de Lisboa Central), Centro Hospitalar de São João, Centro Hospitalar do Porto e Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

Sem um registo nacional, não se sabe quantas pessoas com hemofilia há no país, mas estima-se que sejam cerca de mil – um caso por cada dez mil nascimentos. A APH tem registo de 764 doentes.

Casos «graves são um ou dois» por ano, retoma a imuno-hemoterapeuta. «Dizerem-nos que aquela criança vai sangrar, que nem sempre é evidente que sangre, porque a maioria das vezes sangra para sítios que não se vê, que têm de estar sempre vigilantes… Estes pais têm de pensar logo se vão para o hospital, uma dor de cabeça violenta pode ser uma hemorragia intracraniana sem qualquer traumatismo», diz. É uma catadupa de informação.

«Precisam de perceber o que é, depois que é um tratamento dado na veia, duas ou três vezes por semana, para sempre. Os primeiros anos não são fáceis.»

Guilherme, 10 anos, tem hemofilia A grave com zero por cento de fator VIII. Os pais, Sandra e Vítor, e a irmã, Carolina, têm aprendido a viver com a doença.

A família Quitério sentiu isso. Que o projeto de vida idealizado não se concretizaria – mas só havia um caminho: para a frente. Com consequências: «A Carolina ficou um bocadinho para trás. Sem querer, estávamos mais atentos ao Guilherme», admite Vítor.

Os pais olham para ela com o sorriso de quem pede desculpa. Tinha 9 anos quando o irmão foi diagnosticado. «Senti isso. A maneira de aguentar foi fechar-me. Eles tratam do meu irmão, eu trato de mim.» Estremece-lhe a voz. Participar nos encontros promovidos pela APH, onde formou um grupo de amigos, é uma ajuda para ela e para o resto da família: a comunidade dá um sentido de partilha e de pertença.

Carolina fez o estudo genético aos 14 anos. É portadora, tem cinquenta por cento de hipóteses de transmitir a hemofilia à geração seguinte. «Não muda nada» na intenção de ter filhos, garante a jovem. Na família de Sandra não apareceram mais portadoras: a mutação do cromossoma X surgiu espontaneamente nela, como se crê suceder em trinta por cento dos casos.

Carlos Maria não sabe se foi essa a situação com a mãe dele. A avó materna já tinha morrido, a tia e a prima não quiseram fazer o estudo. Nunca se sentiu rejeitado por amigos ou família. Havia sempre quem se oferecesse para dar sangue no hospital, para as transfusões, mais necessárias quando se fez rapazito e só queria jogar à bola. «Quase sempre era meio litro de sangue e eu estava ali quatro ou cinco horas.»

Sem os controlos de hoje, terá sido assim que contraiu todas as hepatites. Da C, incurável até há pouco tempo, Carlos livrou-se através de um ensaio clínico. «Fui uma das cobaias. Em boa hora. Fiquei curado.»

Era assim, com sangue total, que as dores passavam. Anunciavam-se com uma comichão, uma dificuldade em dobrar ou esticar a zona afetada, quente e inchada. Depois, a dor. «A pessoa perde a noção da realidade, perde a paciência. Quer estar isolado.» Ficaram as sequelas nas articulações-alvo, massacradas pelas repetidas hemorragias: cotovelos, joelhos, tornozelos.

Estas dores fortes, habituais para Carlos e Nuno, Guilherme raras vezes as sentiu. Internamentos não sabe o que são. É da nova geração, dos que começaram a profilaxia bebés.

A mãe ia com ele para o hospital de Leiria, depois do trabalho, duas vezes por semana, até aos 4 anos: nessa altura, começou a injetar o fator ao filho, supervisionada pelas enfermeiras. O passo seguinte foi fazê-lo em casa – ela, que o marido foge de agulhas –, agora três vezes por semana.

Uma vez por mês, vão à farmácia do hospital de Alcobaça buscar o carregamento de medicação, que guardam na parte de baixo do frigorífico. Até têm outro suplente – mesmo com os legumes expulsos da gaveta, não havia espaço suficiente.

«Os resultados [da profilaxia] foram fabulosos.» Hoje a médica tem quase noventa por cento dos pacientes em tratamento profilático. Se iniciado de pequenino, episódios de dor só acontecem fruto de traumatismos.

A autonomia dos pais, essencial, é incentivada pelas equipas nos centros de referência. Malam Turé, enfermeiro coordenador do serviço de Imuno-Hemoterapia no Santa Maria, salienta que «é fundamental que a família se reestruture».

Médicos e doentes não lhe poupam elogios pela forma como há mais de 30 anos cativa, sobretudo, as crianças. Responde sempre de sorriso rasgado: «Nós, enfermeiros, acabamos por ser confidentes destas famílias, temos de conquistá-las, têm de ganhar confiança em nós – o doente vem a seguir.»

Como o menino de Castelo Branco, que semanalmente salta, alegre, para o colo do enfermeiro – apesar de ser ele que o pica. É a confiança. «Temos dois miúdos que começaram com 8 anos a picar-se sozinhos. Muitos começam aos 10, 12 anos.» Guilherme também já pensa em dar fator a si próprio, sabe o ritual de cor.

A relação com os doentes estende-se ao longo dos anos: «Alguns dos pequenitos até os chamo de netos, conheci miúdos que já são pais.» Conhece Carlos Maria, o número ativo mais antigo do serviço, conhece os irmãos Lopes, que, quando chegaram a Portugal vindos de Bissau, encontraram neste hospital um enfermeiro guineense. «É o meu tio adotivo, eu e o meu irmão somos “sobrinhos” dele», brinca Nuno.

A profilaxia, introduzida em 1994 pela imuno-hemoterapeuta Alice Tavares, atualmente reformada, foi testemunhada por Cristina Catarino, «acabadinha de cair» em Santa Maria, e dada a dois irmãos, hoje com mais de 30 anos, que continuam a ser seguidos na consulta.

«Os resultados foram fabulosos.» Hoje a médica tem quase noventa por cento dos pacientes em tratamento profilático. Se iniciado de pequenino, episódios de dor só acontecem fruto de traumatismos.

Guilherme corre, salta pela casa, faz natação de competição, é daqueles miúdos que deixam Nuno Lopes sorridente: «A nossa diferença, dantes, era supervisível. Arrastávamos uma perna, um pé, tínhamos um braço ao peito.» Ele anda de canadiana. Carlos move-se devagar; tem na mulher e no filho mais novo, Nuno, de 19 anos, os seus apoios. Era ele, pequeno cúmplice de 9, 10 anos, quem dava fator ao pai, que não conseguia picar-se sozinho. Depois houve o acidente e tudo mudou.

Um acidente de viação é o pior pesadelo para estes doentes. No de 2011, os socorristas do INEM foram instruídos pelas vítimas conscientes sobre a forma de administrar o fator e a quem o dar, uma informação que salvou vidas.

A 16 de abril de 2011, véspera do Dia Mundial da Hemofilia, o autocarro com 34 pessoas seguia para o Luso, para um encontro da APH. Carlos já tinha alertado o motorista para «a condução agressiva dele. Esteve-se marimbando». O pesado entrou na curva, em Coimbra Sul, com excesso de velocidade, e capotou. Um morto, dois feridos muito graves, 11 graves, 19 ligeiros, só o motorista escapou ileso.

Maria Inácia tinha ficado em casa, com o filho mais velho adoentado. O pequeno Nuno estava com o pai e, no meio da confusão, de olho negro e com um traumatismo craniano, procurou-o. Retirado dos destroços, Carlos ainda telefonou à mulher, tinha partido um braço – e apagou. Acordou mais de um mês depois, fora operado de urgência, retiraram-lhe o baço. «Ficou um passador. Levava fator por um lado, por outro tinha os drenos e saía o sangue… É um milagre ele hoje estar aqui», diz a mulher, que naquelas semanas andou num vaivém entre Almada e Coimbra.

Um acidente de viação é o pior pesadelo para estes doentes. No de 2011, os socorristas do INEM foram instruídos pelas vítimas conscientes sobre a forma de administrar o fator – as pessoas com hemofilia andam sempre com a medicação – e a quem o dar, uma informação que salvou vidas.

«É importante o INEM saber como proceder quando tem a informação da patologia da vítima», alerta José Caetano Martins, da APH. A associação luta por uma «via verde para a hemofilia»: o encaminhamento direto para os centros de referência, em vez de o INEM levar as vítimas para o hospital mais próximo, com o que isso implica de perda de tempo possivelmente fatal.

Para Carlos, iniciou-se uma recuperação lenta. Mas teve sorte. A «militância» benfiquista ajudou. Como não falham um jogo na Luz, a mulher comprou um lugar de deficiente. «Lá íamos a empurrar a cadeira de rodas. Fez bem para a recuperação dele.» Maria Inácia é a força da família: «O Carlos sempre acompanhou muito os filhos. Se formos às compras, trago-as eu. Gosto de dançar, ele não pode: danço com os maridos das outras.» Pai, mãe e filho soltam uma gargalhada. Carlos sabe que teve sorte.

O ROTEM é um dispositivo fundamental nas grandes cirurgias, uma vez que mede os níveis de coagulação do sangue.

Palavras-chave

A hemofilia é um distúrbio raro e hereditário, afeta um em cada 5 mil rapazes e está ligado ao cromossoma X. Os fatores de coagulação do sangue, que funcionam em cascata do I ao XII, estão comprometidos. Na hemofilia A, cerca de quatro quintos dos casos, há uma deficiência de fator VIII; na hemofilia B passa-se o mesmo com o fator IX. Se uma pessoa saudável tem uma atividade de fator acima dos 50%, os casos graves caraterizam-se por terem menos de 1%.

A (quase) inexistente coagulação do sangue gera hemorragias frequentes, espontâneas e dolorosas, nas articulações e músculos, e, com o tempo, leva à incapacidade física. As pessoas com hemofilia grave devem fazer profilaxia: administração de fator, por via intravenosa, entre duas e três vezes por semana, para proteger o organismo das hemorragias. Entre as novas terapêuticas, as que não são de fator VIII ou IX renovam a esperança de quem desenvolveu inibidores: estes anticorpos ao fator são difíceis de tratar e afetam um terço dos doentes.

A revolução está a chegar

Os doentes com hemofilia mais antigos eram sujeitos a demoradas transfusões de sangue total, para combater as hemorragias. «A grande evolução em termos de terapêutica foram os crioprecipitados», diz Cristina Catarino, responsável pelo Centro de Coagulopatias Congénitas no Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN).

Carlos Maria recorda-se de ter feito esse tratamento aos 16 anos, em 1970: teve de tirar um dente e o sangramento não parava. Internado um mês em Santa Maria, «as transfusões de sangue entravam e saíam», só o crioprecipitado, com fator VIII retirado do plasma fresco congelado, resultou. Já não eram necessárias tantas horas de braço estendido.

O passo seguinte, avança a imuno-hemoterapeuta, foram os «concentrados de fator, mais ou menos purificados, primeiros os plasmáticos, depois os recombinantes», também por via intravenosa. Estes produtos continuavam a ser produzidos a partir do sangue – e a estar expostos a vírus que não tivessem sido inativados. Como o da hepatite C, que só foi identificado em 1989.

Hoje, com mais conhecimento e controlo, os plasmáticos são seguros, embora o risco zero não exista. As gerações de recombinantes foram tendo «cada vez menos que ver com proteínas humanas ou animais, para minimizar esse tipo de infeções». Fruto da engenharia genética em laboratório, há já recombinantes «que se podem fazer de três em três ou de quatro em quatro dias – foi agora aprovado em Portugal o primeiro», adianta Cristina Catarino. Esta ação mais prolongada vai espaçar a profilaxia.

Num cenário sem agulhas e que passa ao lado de tratamentos com fator (uma esperança para pacientes que lhe geraram anticorpos), estão em ensaio clínico terapêuticas por via subcutânea. Isto deverá significar «uma grande revolução», nota Álvaro Beleza, diretor do serviço de Imuno-hemoterapia do CHLN, «e implica menos sofrimento». Sobretudo para as crianças.

O que parecia do domínio da ficção científica, a terapia génica, também ganhou contornos concretos. Através de técnicas em que o gene é colocado num vírus e injetado no paciente, «houve resultados espetaculares na hemofilia A nos últimos meses», diz ainda Cristina Catarino. É isto que «os doentes querem: não terem de se injetar na veia. E a cura. Não é uma cura completa, mas se conseguirem ter fator que os proteja das hemorragias espontâneas, para eles isso é a cura».