George Perry: «Podemos reduzir o risco de Alzheimer só ao mudar o estilo de vida»

Entrevista Maria Espírito Santo | Fotografias Orlando Almeida/Global Imagens

A corrente atual defende que é uma proteína que se desenvolve no cérebro, a beta-amiloide, que causa a doença de Alzheimer. George Perry, diretor da Faculdade de Ciências da Universidade do Texas (em San Antonio), discorda. «Estão a perder tempo e recursos», diz numa longa conversa na Fundação Champalimaud, onde esteve em setembro para a Alzheimer’s Global Summit.

Neto de portugueses das ilhas açorianas do Pico e de Santa Saria – diz, a brincar, que podia chamar­‑se Jorge Pereira –, é um dos nomes mais sonantes da National Organization of the Portuguese­‑Americans e mantém uma estreita relação com o país dos antepassados: é jurado da Santa Casa da Misericórdia para o prémio anual de Neurociências. Biólogo marinho, decidiu cedo que queria ser cientista, quando já empunhava uma arma para caçar e depois examinar os animais. Entrar para a investigação do Alzheimer foi um acaso: pouco sabia sobre o cérebro humano quando começou.

Há quantos anos estuda a doença de Alz­heimer?
Desde 1982. São 35 anos. Historicamente, sempre houve pesquisa sobre a doença, mas a viragem deu­‑se em Inglaterra, nos anos 1970. Um estudo com indivíduos mais velhos mostrou que a doença podia ser das pessoas comuns – antes disso pensava­‑se que era uma condição rara. No final da década já havia um interesse emergente.

É uma espécie de rebelde do meio. Discorda de muitos dos seus colegas?
Se dizem que sou um rebelde acho que é porque estou contra este padrão de exorcismo que a teoria da proteína implica. Se pensarmos bem, a biologia engloba tudo, toda a evolução dos organismos. As mudanças que ocorrem nas proteínas fazem parte da biologia – por isso, como é que se pode pensar que o corpo está a produzir uma coisa a si mesmo que tem de ser removida? Sei que não é fácil explicar isto.

Vamos por partes.
Ora, os organismos evoluem para se adaptar ao ambiente. Nós até estamos demasiado bem­ adaptados porque estamos a proliferar por todo o lado – tanto assim é que tudo o que nos acontece tem de ser com­preen­dido. Os defensores da teoria da proteína estão a dizer que os organismos adaptados estão a produzir algo que é mau. Agora, se produzires demasiado de algo, claro que é mau, é um processo de inflamação. É assim que vejo a beta­‑amiloide: é uma resposta, como a inflamação. Não é bom nem é mau, depende do contexto.

«Como o Alzheimer é relativamente comum, é importante ter tratamentos que não sejam muito caros e que tenham efeitos secundários relativos, principalmente se vais dar esta medicação a pessoas com sintomas muito iniciais.»

No início de 2017 houve um ensaio clínico de um medicamento para eliminar esta proteína, mas falhou.
Todos falharam.

Então porque é que se continua a acreditar?
Primeiro porque não existe um substituto para esta teoria que seja linear, que mostre que uma determinada sequência de eventos causa a doença. As pessoas querem afirmar que apenas uma coisa é culpada. Esse tem sido o apelo da teoria mas também o seu calcanhar de Aquiles. Em segundo lugar, há muita gente que apostou toda a carreira nisto.

E também dinheiro.
O NIH [National Institutes of Health, serviço nacional de saúde norte­‑americano] e outros estão a financiar ensaios muito caros, não havendo sinais positivos, há grandes efeitos secundários – e vai haver grandes custos. Como o Alzheimer é relativamente comum, é importante ter tratamentos que não sejam muito caros e que tenham efeitos secundários relativos, principalmente se vais dar esta medicação a pessoas com sintomas muito iniciais. E se a beta­‑amiloide tem um papel protetor, como sugiro, isso deixa de ficar claro. Acho que é preciso pôr a pergunta ao contrário.

Como assim?
Perguntar porque é que há pessoas que têm doença de Alzheimer e porque é que há outras que ficam normais até aos 100 anos. Já todos conhecemos pessoas nos seus noventas que estão intelectualmente intactas. E essas pessoas com idade avançada têm grandes quantidades de beta­‑amiloide nos seus cérebros.

«Porque é que há pessoas que têm doença de Alzheimer e há outras que ficam normais até aos 100 anos?»

Defende que é essencial olhar para o stress oxidativo, que já estuda há décadas. O que é?
O stress oxidativo é muito complexo. Podemos usar a comparação do enferrujar de um prego de ferro. O oxigénio no ar reage no nosso corpo e causa danos exatamente como faz com o prego. Mas o corpo tem defesas abundantes contra este processo – há cerca de 25 anos descobrimos os danos e as defesas no caso da doença de Alz­heimer. Estamos a estudar o processo e a tentar perceber como podemos controlá-lo para ajudar os pacientes.

É uma parte importante do puzzle da doença?
Sim, é uma parte muito importante. Podía­mos ter dito que o stress oxidativo é como a beta­‑amiloide – ou seja, que causa a doença –, mas eu nunca acreditei nisso. O stress oxidativo é parte do envelhecimento celular e há uma série de alterações que implicam com o equilíbrio oxidativo, como a nutrição, o exercício e o stress. É como um centro recetor.

Isso quer dizer que se fizermos mudanças de hábitos podemos prevenir o Alzheimer?
Prevenir não, mas reduzir o risco sim. Há vários estudos que provam uma redução entre 50 e 90 por cento só ao mudar o estilo de vida. E quanto mais cedo na vida fizeres as mudanças, maior o benefício. Escrevi um paper há pouco tempo sobre os quatro pilares para a doença de Alzheimer: dieta, exercício, redução do stress e ter um sentido para a vida.

Como é que o exercício ou uma boa alimentação podem fazer a diferença?
O exercício ajuda o cérebro a renovar­‑se e não é preciso um esforço extremo. As pessoas mais velhas podem cumprir o requisito, que é de 45 minutos de caminhada por dia. Além disso, a dieta rica em nutrientes, que contenha fruta e vegetais, que têm um papel complexo.

Porquê?
Muitos deles são toxinas de baixo nível – é assim que os vegetais matam os insetos. Quando os comes, criam uma resposta de stress baixa – e, na verdade, algum stress é importante, quando fazemos exercício estamos a stressar os músculos, por exemplo. E, assim, estamos a dar níveis baixos de stress ao organismo que nos protegem de outros tipos de stress.

Os luso­‑americanos geralmente não são formados.

Nasceu perto de Lompoc, Califórnia. Sempre quis ser cientista?
Sempre quis ser cientista, desde os 5 anos. Cresci numa quinta isolada, onde não havia grande coisa para fazer exceto olhar para a natureza. Também caçava.

O quê?
Tudo. Veados, coelhos, pombos. E depois de matar os animais abria­‑os e estudava­‑os.

E os seus pais não achavam estranho?
Um pouco. Era considerado peculiar. Mas mais tarde percebi que me achavam estranho por outra razão. Os luso­‑americanos geralmente não são formados. Há uns tempos, quando olhei para os censos, não queria acreditar: descobri que éramos os menos educados do país – excluindo os amish, os ciganos e alguns latino­‑americanos. E revendo a minha infância, realmente, exceto os meus pais, toda a gente me desencorajou de me formar.

E contra todas as expetativas, seguiu Ciências.
Estava interessado em Biologia. Tinha boas notas e o meu pai incentivava­‑me – gostava de ser agricultor mas não achava que fosse uma boa vida para mim e para o meu irmão. Fui o primeiro na minha geração a terminar a universidade. Trabalhava a toda a hora, queria ganhar dinheiro e poupar.

Para quê?
Acho que é uma obsessão dos luso­‑americanos, poupar, mesmo que por motivo nenhum em concreto. O meu pai era agricultor e também cortava a relva num campo de golfe e a minha mãe era empregada de limpeza num hotel, ambos tinham trabalhos de ordenado mínimo mas tinham dinheiro, estavam sempre a poupar. Cresci com esta lógica, de que te deves formar para ganhar dinheiro. O meu pai queria que fosse médico mas eu achava muito estúpido.

Porquê?
Achava que não era intelectualmente desafiante. É que eu desde pequeno que sou curioso, interessado no que me rodeia. Fazia coleções de crânios de animais, de insetos. Recentemente até doei parte da coleção ao Museu de História Natural de Cleveland e eles disseram que era a maior coleção que alguma vez lhes tinham doado.

Da biologia marinha à investigação do Alzheimer foi um acaso.
Encontrar trabalho como biólogo marinho foi difícil. Primeiro passei dois anos na Estação Marítima de Hopkins, em Stanford, mas era tão isolada que nunca mais quis estar numa estação marinha. Também estive no [instituto de investigação] Scripps, que faz parte da Universidade da Califórnia. Depois fui para Monterey mas era isolado também. A certa altura encontrei uma vaga para fazer investigação sobre Alzheimer – ainda nem se sabia o que era a doença.

Interessou­‑se logo?
Foi à medida que o tempo passou. Quando percebi que tinha sucesso e podia fazer carreira, pensei que tinha de encontrar algo no âmbito do Alzheimer que gostasse de fazer. Então comecei a adaptar o meu trabalho do stress oxidativo, que já estudava antes. Era um biólogo marinho a olhar para o cérebro humano.

Entretanto está no pódio dos investigadores com mais papers publicados.
É difícil estimar um número mas são mais do que mil – mais do que qualquer outra pessoa na doença de Alzheimer. Tenho mais de 77 mil citações no Google Scholar [gigante agregador de trabalhos académicos]. Sou um dos três cientistas biomédicos portugueses mais citados: é o António Damásio, o Ronald dePinho e eu. E o Journal of Alzheimer’s Disease, de que sou diretor, fez vinte anos e é a publicação mais prolífica no assunto. A ciência tem que ver com comunicar com outros, passar ideias. A competição é boa. O meu objetivo é bater toda a gente.

Sou um dos três cientistas biomédicos portugueses mais citados: é o António Damásio, o Ronald dePinho e eu.

Como vê os próximos anos para as investigações na área?
Se as pessoas mais inteligentes e talentosas – que estão a trabalhar na teoria da beta­‑amiloide – continuarem a investir o esforço nisso, não ajuda a acelerar as coisas. Mas uma série de caminhos estão abertos.

Podemos estar próximos de uma cura?
Ainda não chegámos aí mas temos boas pistas. E a questão da influência do estilo de vida é a descoberta mais entusiasmante dos últimos anos. Também já se encontraram diferenças na incidência do Alzheimer entre grupos nos EUA – afro­‑americanos versus hispânicos, etc. É pouco provável que seja genético. Tem que ver com hábitos alimentares, com estrato social, com acesso à educação e saúde. E que conclusão podemos tirar? Que a dieta como o exercício também podem ser um medicamento.

Os milhões de Bill Gates para travar a demência

A doença deixa cada vez mais de ser tabu – e as personalidades juntam­‑se à causa. Bill Gates doou quarenta milhões de euros à Dementia Discovery Fund, uma parceria entre o governo inglês e várias farmacêuticas para descobrir novos tratamentos. O filantropo fez o anúncio no seu blogue pessoal onde lembrou ainda a importância de explorar outros caminhos, para lá da teoria das proteínas.