Futebol infantil: quando o mau exemplo começa nos pais

Texto Hugo Tavares Silva

O pai

«Muitos pais projetam nos filhos aquilo que gostariam de ter sido»

Nélson Pombeiro vai para todo o lado com o filho Martim, de 10 anos, jogador nos benjamins do Real de Massamá. Conta com o desporto para ajudar na educação do filho, mas acredita que se leva o futebol jovem demasiado a sério. E defende que os pais que ofendem árbitros devem ser castigados.

Nélson Pombeiro

A primeira vez num estádio foi em 1977, num Benfica-Boavista. Nélson Pombeiro, 45 anos, acompanhou o pai e recorda pouco. «Lembro-me de ver muita gente. E de ver o Shéu a fazer um lançamento.» Agora é com o filho de 10 anos, Martim, que joga nos benjamins do Real de Massamá e que acompanha para todo o lado, que vive esses tempos.

Nélson está em todas. Treinos, jogos, correrias e trabalho de Sherlock Holmes para descobrir onde está esta ou aquela equipa, com o olho nos autógrafos e nas fotografias. O miúdo lá de casa guarda memórias em forma de papel com Mbappé, João Vieira Pinto, Quaresma e até Barthez, ex-guarda-redes e piloto da Ferrari, juntando assim as duas paixões que herdou do pai: futebol e automóveis. Se na rua com a bola no pé se imaginava Beckenbauer ou Rummenigge, nas pistas o ídolo era Nelson Piquet. Martim escolheu Cristiano Ronaldo como herói.

«Dá trabalho, mas quem corre por amor ao filho não se cansa. Mas é cansativo, há muito sacrifício.» O futebol tem bons argumentos. «Tem a vantagem de discipliná-los de uma forma lúdica. Muitas vezes nem se apercebem.» Martim, que joga à defesa nesta tarde, já leva quatro anos de futebol.

Nélson vai aos treinos e aos jogos do filho e ainda sabe onde estarão as suas preferidas, com o olho nos autógrafos e nas fotografias.

O pai vai calcando a linha lateral, para trás e para a frente. Costuma ficar por ali a fotografar. Estava ansioso, embora pouco interventivo. Afinal, jogava-se contra o líder, que já levava mais de trezentos golos marcados. Dizia uma coisa ou outra a Martim. Até em inglês. «É para os outros não perceberem», diz a sorrir. Disse-lhe que estava bem, para aproveitar para fazer o lançamento mais à frente.

Apesar do tom pedagógico, Nélson reconhece que já esticou a corda. «Uma vez exagerei a gritar com o Martim. Parecia que não estava lá. Eu dizia “corre, corre, corre” e o rapaz não corria. Depois arrependi-me e falámos sobre os gritos. Ele ficou um bocado aborrecido, mas passou.»

Reprimendas caseiras também já viveram: bastou Martim, frustrado, empurrar um adversário. Se um dia houver «maldade» ou «chamar nomes ao árbitro ou ao treinador», será o primeiro a dizer para o filho sair. Nélson, que paga cerca de trinta euros por mês ao clube, admite que já pôs em xeque o futebol por causa da escola. Nunca concretizou.

A relação com os outros pais é quase inexistente. É o primeiro ano no Real. Antes, estiveram no 1º de Dezembro, de Sintra, e correu bem. «A melhor parte era a terceira: almoçarada ou lanche. Era um grupo fabuloso.» Nélson admite que já viu coisas que, enquanto pai e adepto de futebol, não gostou. Não faz sentido ofender o árbitro, por exemplo. É um mau exemplo, mina a autoridade e corrói a educação dos miúdos.



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Já viu um pai «a dar uma seca de vinte minutos» a um treinador porque o filho não jogava. Num jogo de nervos, na Pontinha, viu também a cerveja a aquecer o sangue de quem devia dar o exemplo. «Há ali um pai dos nossos, caramba, não para de gritar.» O resultado chega ao 0-2 e a má notícia é outra, denunciada pelos olhos virados para o céu e o suspiro: «Isto era dele.» Martim deixou a bola passar dentro da área e o golo aconteceu ao segundo poste.

«Leva-se isto demasiado a sério. Muitos pais projetam nos filhos aquilo que gostariam de ter sido. Por esses campos fora, já vi muita coisa. Há uns que pensam que por o miúdo pagar é obrigado a jogar.» Nélson Pombeiro acredita que o desporto serve como bengala educacional, para haver outra voz além da dos pais e da escola. E não tem dúvidas: «Os pais deviam ser castigados quando ofendem árbitros.»

O atleta

«Fico um bocadinho triste quando perco, mas passa rápido»

Vasco Marques tem 8 anos e joga futebol nos traquinas do Estoril Praia.Como médio, tem de meter a bola nos corredores e ter garra. E resume bem a coisa: o treinador «ensina a fazer coisas», o árbitro «marca faltas». Simples, não é?

Vasco Marques

A manhã começou com um amigo que ficou a dormir lá em casa. A rotina em dia de jogo é a de sempre: «Acordo cedo, tomo o pequeno-almoço e vou-me logo vestir.» Vasco Marques, lisboeta de 8 anos, joga futebol nos traquinas (sub-9) do Estoril Praia e tem jogo contra o Mafra às onze horas. O fato de treino amarelo e azul ainda tem as marcas de guerra do torneio que disputaram recentemente na Madeira. Ser criativo a jogar às escondidas tem um preço.

Vasco é discreto, observador e de poucas palavras. A mãe já tinha avisado. Perto dos colegas mostra os dentes e os olhos azuis sorriem. «Xiiii!», diz ao entrar em campo, enquanto combate aquele vento tão caraterístico da Amoreira. Os pitons das botas cravam-se na relva e as mangas compridas que protegem do frio ajudam para ter alguma coisa a que se agarrar. Os ídolos são Cristiano Ronaldo e Neymar.

O futebol jovem em Portugal continua a crescer em número de praticantes: de acordo com a Federação Portuguesa de
Futebol, em 2017 havia 144 256 atletas ederados. Vasco é um deles.

«Jogo a médio centro porque o mister diz para jogar lá. Gosto de jogar naquela posição. O médio tem de meter a bola nos corredores – se não dá, roda o jogo.» O número 15 começaria no banco, mas o aquecimento é a sério. Tira logo o casaco. Mete muitas vezes as mãos no fundo das costas, aquece as virilhas em movimentos curtos e troca a bola com os colegas. Sentado, observa o que se passa no relvado e, levando as mãos à boca, lamenta o primeiro golo dos visitantes.

A frustração chega a seguir com um golo falhado pelos rapazes da casa. Com mais um golo dos adversários, os olhos prendem-se ao chão. Às vezes tem postura de adulto, com a mão no queixo e a perna cruzada. Vai aquecer juntamente com os que estavam no banco. O olhar de Vasco fita o treinador, à espera do sinal mágico.

Da linha de fundo incentivam os colegas. As indicações do treinador são ouvidas junto ao banco, com as mãos atrás das costas. O futebol de Vasco é elegante, já tem a capacidade para receber com um pé e passar com o outro. E, de facto, tem o chip programado para colocar a bola nos corredores, arrumando o jogo.

O futebol jovem em Portugal continua a crescer em número de praticantes: de acordo com a Federação Portuguesa de Futebol, em 2017 havia 144 256 atletas federados. Vasco é um deles. «Vocês achavam que ia ser fácil, não é?», vai gritando o treinador a partir do banco.

Apesar deste dissabor, Vasco marcaria o único golo do Estoril Praia. Esticou os braços para baixo, cerrou os punhos e foi abraçado pelos colegas. «O meu golo foi num ressalto, bateu num jogador deles. Foi um bom jogo, diverti-me.»

Seja no treino ou no jogo, não se vê maldade. Os miúdos querem é a bola e tentam cumprir o que o treinador pede. Basta fazer umas perguntas para a inocência e a normalidade de um miúdo de 8 anos ganharem protagonismo. «O treinador serve para nos ensinar a fazer as coisas.» E o árbitro? «Para marcar faltas.»

Vasco admite, sem usar um tom negativo, que os pais gritam muito: «Para chutarmos. E quando é golo. E cantam também.» Quando perde, como nesta manhã, fica «um bocadinho triste, mas passa rápido».O sonho deste adepto do Sporting é ser futebolista. Fica feliz quando marca golos e faz mais passes do que as palavras que saem da sua boca. Mas garante que nunca ficou zangado a jogar futebol.

O treinador

«Alguns pais passaram a ter atitudes inaceitáveis»

João do Rosário é treinador de futebol há quarenta anos e até já passou pela Primeira Divisão. O desporto, diz, serve para situar a criança num grupo e, assim, desinibir-se e preparar-se para a vida. Mas muitos pais continuam a não perceber isso e a confundir as coisas.

João do Rosário

Nunca come antes dos jogos. Já era assim quando foi jogador. Mas neste domingo o estômago de João do Rosário, de 74 anos, estava reservado para outra coisa. Um casal insatisfeito atirou palavras pouco simpáticas durante e após o jogo. «Está a fazer do miúdo um palhaço», diziam. «Já investimos muito aqui.» «Só mete os meninos bonitos.» «Não o meteu na posição dele.» «Porque não o mete a jogar à frente?»

Foi isto que o treinador dos iniciados do Cascais ouviu, dirigindo-se depois aos pais para os restantes ouvirem a conversa. O casal acabaria por pedir desculpa pelos excessos. «Vou esquecer isto porque gosto muito do vosso filho. São os meus meninos, respeito muito os jogadores. Isto faz parte do crescimento deles.»O que se passou, afinal? «Durante o jogo meti um jogador, que não entrou bem. Pouco depois, tirei-o.

A mãe começou a dizer coisas que não cabem na cabeça de ninguém, ofendendo a própria criança. Eu podia fingir que não ouvi, mas não sou de me esconder. Os pais têm problemas em relação à educação dos filhos, principalmente no aspeto desportivo. Para eles, o filho é um investimento, uma mina de ouro. Quando foi substituído, com os gritos e a atitude da mãe, o miúdo estava quase a chorar. Acalmei-o, disse-lhe que não tinha corrido muito bem, mas que ia voltar a entrar noutra posição. Correu melhor.»

Sentado numa cadeira no campo de hóquei, perto dos balneários, João do Rosário ganha vida a falar de futebol e a refletir sobre o peso do mesmo na vida das crianças. Enquanto jogador, encantou Travassos numas captações do Sporting, experimentou, graças à tropa, o Benfica de Bissau e vestiu a camisola do Atlético na 1ª Divisão. Era um líder em campo, diz. O futebol ajudou-o a moldar o caráter.

Há cerca de 28 mil treinadores em Portugal.
Nos últimos anos aumentaram os praticantes, mas também os técnicos.

«O futebol de formação é essencialmente fazer parte de um grupo, afastar o isolamento. Um grupo sabe tudo, transportam uns para os outros. O que interessa é os miúdos estarem juntos e, com isso, desinibirem-se e perceberem melhor o que é a vida.»
Mas este futebol jovem tem um rival: as expetativas dos pais. «Quando o futebol começou a ser uma indústria, quando se verificou que havia interesses monetários muito acentuados, alguns pais passaram a ter atitudes inaceitáveis.»

O clique para a mudança terá sido no final dos anos 1990. Durante este período registou-se igualmente um boom de treinadores: segundo o Pordata, em 2016 existiam 28 090 treinadores (divididos, dependendo dos escalões, por cinco divisões). Em 1996 eram apenas 340. «Gosto tanto das crianças, dos grupos, de ajudar a que cresçam como homens saudáveis, até a nível intelectual.

Falo com eles sobre a escola, história de Portugal, filosofia…» Quanto aos jogadores, a teoria mantém-se: «Eles precisam é de jogar tranquilos. Estamos no futebol amador. Têm de gostar, sentir prazer. Eu digo-lhes que o resultado tem de ser uma consequência do que fazem e não um objetivo. Não é ganhar por ganhar.»

Este homem, que ainda fica ansioso e que não dorme quando perde, sabe de cor a bússola que orienta o futebol jovem. E reprova os pais que veem no futebol um «objetivo de emprego». «Muitos fazem chantagem: “Se a escola não corre bem, tiro-te do futebol.”
É um erro tremendo.»

O árbrito

«Podia ser um filho deles a apitar. Chamavam-lhe esses nomes?»

Edgar Ramos é árbitro da Associação de Futebol de Beja desde 2003. Bombeiro de profissão, já sentiu medo em dois cenários: à frente do fogo e… num campo de futebol. Há pouco tempo mostrou o cartão branco (fair play) a um rapaz que lhe pediu um abraço depois do comportamento do pai.

Edgar Ramos

«Basta a bancada não insultar e não interferir com os miúdos e o árbitro.» É assim que Edgar Ramos, 35 anos, descreve a sua relação com a bola. A viagem deste árbitro da Associação de Futebol de Beja entre casa e o campo onde vai apitar não é longa. Nesta manhã de sábado, Edgar apita dois jogos (benjamins e infantis).

Bombeiro de profissão, a maior paixão de todas – começou com 11 anos –, gosta de ensinar os mais pequenos e teme os mais velhos, que nada têm a perder. Já teve medo e admite parar se for agredido (entre janeiro e abril de 2017 registaram-se 43 agressões a árbitros). Com o apito, tem uma arma: «Mas às vezes um sorriso muda muito.»

Este alentejano de Serpa, casado e à espera de uma filha, viveu há pouco tempo uma história, em Moura, que o congelou durante quatro segundos. Um pai não parava de o ofender durante um jogo de infantis e Edgar, preocupado, constatou que não havia policiamento.

«Pedi ao delegado para chamar a polícia. Não sei as intenções dos pais cá fora. Entretanto parei o jogo e houve um miúdo que me pediu um abraço e pediu desculpa pelo comportamento do pai.» Descongelado, mostrou-lhe o cartão branco, que premeia o fair play. Foi a única vez que o fez.

Segundo o Pordata, em 2016 existiam 4174 árbitros em Portugal – são eles que normalmente estão na mira de adeptos. Mesmo que sejam pais de crianças de 8 anos, que só querem jogar à bola.

Em Serpa, o sol ganha a discussão e afasta de vez as nuvens e ilumina o relvado, com uma colina e árvores com um penteado impecável a servir de moldura. Ramos, que já não fica ansioso antes dos jogos, veste de amarelo e preto.

O meio é pequeno, aquela gente na bancada é familiar. Entre jogos, muda de equipamento e ouve-se: «A outra camisola estava muito suada, não? Com uma barriga dessas…» Edgar sorri. E voltaria a sorrir quando pedem o videoárbitro ou a chuva ameaça cair.

Ou quando o nº 17 não se cansa de pedir faltas. Mas isto de saber quem está na bancada tem um lado desavindo. «Já saí de campo triste. Por ofensas, principalmente das bancadas.» Mas depois, inexplicavelmente, até estende a mão a essas pessoas.

O que lhe custa mesmo, ainda mais do que os pais dizerem «filho da puta», «cabrão» e «a tua mãe é uma grandíssima puta», é ouvir os mais pequenos serem grosseiros com ele. Sente-se derrotado. «Depois do apito inicial as pessoas transformam-se.»

Entre uns apitos, uns decibéis que sobem lá fora, outros lá dentro, os jogos seguem normalmente. Na bancada os mais pequenos ficam deliciados com as fintas dos companheiros e dos adversários. No erro, incentivam. Na dúvida, cantam para os amigos. Já alguns pais são mais implacáveis e veem jogos de benjamins (sub-11) como se fossem graúdos. «E isso intoxica os miúdos», diz o árbitro. «Torna-os mais agressivos.»

Destacado para os «cenários horríveis» de um incêndio em Abrantes, viu pela primeira vez o fogo aos 14 anos, quando seguiu, escondido, no camião da corporação. Teve medo. Num campo de futebol não deveria sentir o mesmo. «Basta os pais pensarem um bocadinho. Quem está ali dentro é um ser humano que também erra. Todos erramos. Basta pensarem que podia ser um filho deles ali a apitar, porque gostava de ser árbitro. Chamavam-lhe esses nomes?»