O meu filho quer brincar com bonecas – e agora?

Texto de Sofia Teixeira

O vídeo How would you feel if your son chose this? (Como é que se sentiria se o seu filho escolhesse isto?) teve dezenas de milhões de visualizações nas várias plataformas em que foi colocado e o autor, o americano Mikki Willis, acabou por ser entrevistado para uma série de sites, revistas e programas de televisão por causa dele.

E, afinal, de que trata este vídeo caseiro que se tornou viral? Mikki Willis, dentro do carro, acabado de sair de uma loja de brinquedos com o filho mais velho, Azai, conta que foram trocar um presente de aniversário duplicado do filho e mostra o que o garoto escolheu: uma boneca Barbie Pequena Sereia.

Muitos pais não veem com bons olhos – ou com à‑vontade – que os filhos rapazes queiram brincar com bonecas.

«Como é que acham que um pai se sente quando um filho escolhe isto?»,questiona. E responde, de seguida, em coro com o miúdo: «Yeah!» E segue: «É isso que eu e a mãe fazemos: deixamos os nossos filhos escolherem e serem o que quiserem e apoiamo‑los nas suas escolhas.»

Pergunta: porque é que uma coisa que parece tão vulgar se tornou viral? Resposta: porque não é assim tão vulgar. Muitos pais não veem com bons olhos – ou com à‑vontade – que os filhos rapazes queiram brincar com bonecas. No seu consultório, Rita Castanheira Alves, psicóloga clínica infantojuvenil e autora do projeto Psicóloga dos Miúdos, confessa que há alguns pais que condicionam estas escolhas dos filhos sem intenção e sem se questionarem.

«É um automatismo, fruto da história e da educação», defende. «Tenho miúdos, especialmente rapazes, que no consultório brincam com alguns brinquedos que são vendidos e publicitados como sendo para as meninas, e que só o fazem ali porque se sentem julgados se o fizerem em casa ou na escola.» E isto não é bom.

«Isto não quer dizer que os pais não possam, ou devam, limitar o tipo de brinquedos a que os filhos têm acesso, por exemplo, não autorizando jogos violentos ou preferindo que não tenham consolas ou acesso a tecnologia abaixo de certa idade.»

O que não faz sentido, garante, é que o façam em função do sexo. E vai mais longe: proibições relacionadas com isto acarretam riscos a nível do desenvolvimento saudável, emocional e social e, consequentemente, cognitivo e intelectual.

«Há ainda o risco de condicionar escolhas fundamentais e necessárias e o perigo da instalação do sentimento de “não ser normal” ou de “não ser suposto”, com riscos grandes a nível de construção da identidade da criança», alerta.

Para Helena Gonçalves Rocha, 45 anos, os brinquedos nunca andaram de mão dada com o sexo para o qual tentam vendê‑los. Em criança um dos brinquedos que apreciava mais era o seu carro de bombeiros com uma escada elevatória e o ponto alto das brincadeiras com o vizinho era a troca de brinquedos: ele brincava com as bonecas dela, ela com os carros de corrida dele.

A filha, hoje com 13 anos, deixava as bonecas ao canto do quarto e só queria bolas e jogos de construções. E filho Gu, hoje já com 18, manifestou vontade de ter um bebé de brincar quando tinha 2 anos. Ela ofereceu‑lho e deliciava‑se a ver o pequeno a embalar o boneco para o adormecer e a colocá‑lo debaixo do chapéu, na praia, para ele não apanhar sol.

Confessa que o marido achou a ideia estranha de início, mas depressa percebeu que aquele boneco cumpria uma função importante: o filho reproduzia o que via as pessoas fazerem com bebés de verdade. Estava a aprender. E gostava de tal forma da brincadeira que, tempos depois, pediu um carrinho para passear o bebé. A mãe não hesitou e ofereceu‑lho.

«Porque não? Brincar ao faz de conta é uma etapa importante do desenvolvimento infantil, e é natural e desejável que eles imitem os diferentes papéis que têm oportunidade de observar», diz Helena que, além de mãe, é técnica superior de educação especial. Mas as pessoas à sua volta pareciam ter uma opinião diferente.

Perdeu a conta às vezes em que ouviu a frase: «Meninos a brincarem com bonecas? Onde já se viu?» Talvez hoje, 16 anos depois, não exista tanta gente a expressar estas ideias – ou mesmo a tê‑las ainda que em silêncio –, mas a situação ainda não é vista com absoluta normalidade.

E é preciso ser‑se muito claro na resposta: brincar com bonecas não prediz uma orientação homossexual da mesma forma que jogar à bola e brincar com carrinhos não prediz uma orientação heterossexual.

«A sociedade olha isso com estranheza, fruto da nossa história, educação e cultura relativamente aos papéis de género, lugar da mulher e do homem na sociedade, bem como dos nossos preconceitos e estereótipos associados», adianta Rita Castanheira Alves. E exemplifica‑o com uma situação que extravasa as portas do consultório: numa atividade para crianças e pais, e na qual se pretendia pô‑las a cuidar de uma boneca em diversas situações, apesar de a divulgação ter sido feita para rapazes e raparigas, só apareceram meninas.

O problema está, já se vê, nos pais e não nos filhos. A grávida começa a fazer escolhas condicionadas pelo sexo da criança assim que sabe que vai ter uma menina ou um menino: compra roupa cor-de‑rosa ou azul, pinta o quarto de amarelo ou de verde, manda vir lacinhos para o cabelo ou calções.

Continua a fazer o mesmo com os brinquedos, quando a criança ganha alguma autonomia: bonecas e tachinhos de cozinha para ela, carrinhos e kits de cientista para ele. Por isso, quando o menino aparece a brincar com um bebé, estranha, sem perceber que está a ceder a uma divisão artificial também criada pelas marcas e cadeias de vendas de brinquedos: os corredores de algumas ainda são divididos no azul e no rosa, deixando todas as lindas bonecas do corredor rosa órfãs de pai.

Além da estranheza, há outra dúvida. Será que o interesse por certos brinquedos está relacionado com a orientação sexual do filho? E é preciso ser‑se muito claro na resposta: brincar com bonecas não prediz uma orientação homossexual da mesma forma que jogar à bola e brincar com carrinhos não prediz uma orientação heterossexual. Os brinquedos não são nem potenciadores nem indicadores da orientação sexual futura da criança. A esse propósito, Rita Castanheira Alves diz que é urgente que haja mais informação.

«Orientação sexual é uma coisa e a identidade de género é outra. Há uma confusão grande sobre estes conceitos que precisam ser esclarecidos e falados para que os preconceitos e mitos não prejudiquem o desenvolvimento saudável de qualquer criança/adolescente e a sua liberdade, escolhas, identidade, preferências sejam legitimadas, respeitadas e atendidas, para que se torne um adulto equilibrado, estável e feliz.»

E, por falar em género, talvez faça sentido lembrar que se entre adultos são as mulheres que continuam a ser mais penalizadas no que toca aos estereótipos que lhes tão associados, na infância talvez a balança da igualdade esteja desequilibrada em desfavor dos rapazes, neste aspeto, já que ninguém acha estranho ver uma menina a jogar à bola ou a brincar com carrinhos. A igualdade de género ainda é uma miragem e nem os miúdos escapam aos preconceitos. E isso talvez explique muita coisa.