Festival Terras de Sombra: onde a música também faz parte da paisagem

Texto Ana Sousa Dias | Fotografia de Alfredo Rocha/Feeling Photography

Tudo começou por uma vontade que só estava à espera de um impulso: dar nova vida aos monumentos religiosos do Alentejo que, já recuperados, permaneciam de portas fechadas. A história começou em 2003 mas, como todas as histórias, vem de muito antes.

O Festival Terras sem Sombra está na 14ª edição e começa no próximo sábado em Vila de Frades, Vidigueira, no convento onde esteve sepultado Vasco da Gama.

Na edição deste ano há uma estreia mundial muito aguardada, as Canções Tradicionais Húngaras de Fernando Lopes­‑Graça, incompreensivelmente inéditas até hoje apesar de compostas em 1954.

À frente do festival estão dois homens que – contam eles – discordam e discutem muitas vezes mas acabam por concordar no essencial: José António Falcão, arquiteto, especialista reconhecido em património, e Juan Ángel Vela del Campo, nome sagrado da música em Espanha, muitos anos crítico do El País. São eles o diretor­‑geral e o diretor criativo do festival, com a parte executiva nas mãos de Sara Fonseca para dar andamento a tudo.

Na edição deste ano há uma estreia mundial muito aguardada, as Canções Tradicionais Húngaras de Fernando Lopes­‑Graça, incompreensivelmente inéditas até hoje apesar de compostas em 1954. O concerto será em Serpa na noite de 3 de março e terá como intérpretes Cátia Moreso, meio­‑soprano, e Nuno Vieira de Almeida, pianista.

Não é a primeira vez que este festival apresenta estreias. Foi também em Serpa que, em 2016, se fez a estreia europeia da ópera Onheama, do brasileiro João Guilherme Ripper. Foi um acontecimento em muitos sentidos. Serpa nunca tinha recebido um espetáculo de ópera e esta assumia aqui um significado especial, ao reler a peça original a partir de uma reflexão sobre a encíclica Laudato Sí, do papa Francisco.

O festival transborda de uma simples série de concertos e envolve – além da relevância dada ao património desde a ideia inicial – ações de conhecimento e de voluntariado na área da defesa da biodiversidade.

Onheama, que significa eclipse na língua tupi, trazia uma mensagem ecológica de defesa da Amazónia, adaptada à realidade alentejana. E foi um lema apropriado para a visita ao Pulo do Lobo e à zona de microclima de Limas.

O festival transborda de uma simples série de concertos e envolve – além da relevância dada ao património desde a ideia inicial – ações de conhecimento e de voluntariado na área da defesa da biodiversidade.

José António Falcão, nascido em 1961 em Lisboa numa família alentejana, mantém sempre uma aparência tranquila e explica que, mais do que olhar para o passado, pretende «mostrar o Alentejo moderno, sem perder a sua identidade». E ao mesmo tempo procura «corrigir assimetrias no direito à música».

Juan Ángel considera­‑se «alentejano honorário» e amante do queijo de Serpa e da gastronomia alentejana em geral – pão, queijo e vinho –, embora se confesse «sem remédio» no que toca a falar português.

José António foi conservador e diretor da Casa dos Patudos, em Alpiarça, trabalhou no Museu de Évora e na Fundação Gulbenkian, organizou a Rede de Museus da Diocese de Beja, cujo Departamento de Património Histórico e Artístico dirigiu desde a fundação em 1984 até à sua extinção, no ano passado.

Juan Ángel considera­‑se «alentejano honorário» e amante do queijo de Serpa e da gastronomia alentejana em geral – pão, queijo e vinho –, embora se confesse «sem remédio» no que toca a falar português.

Nascido em Bilbau em 1947, chegou ao projeto há três anos, sucedendo a Filipe Faria (2003­‑2010) e a Paolo Pinamonti (2011­‑2015). Especialista em música e académico da gastronomia, estava num momento de viragem da vida profissional, com a chegada da reforma, quando o convite apareceu.

Hoje deixou a crítica de música no El País, que manteve longos anos, mas destaca­‑se ainda pelas colaborações regulares em duas rádios, a Cadena Ser e a M21.

A abertura do festival, porém, não será em português nem em húngaro, mas sim em latim, com música sacra.

Foi com ele que começaram os convites a outros países – primeiro o Brasil, depois a Espanha e agora, em 2018, a Hungria. Já antes havia uma forte presença da música húngara, como atesta a apresentação de O Castelo do Barba­‑Azul, de Béla Bartók, em 2017, na Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, em Castro Verde, trazida pela Academia Lizt, neste ano ainda mais envolvida no festival com o ativo e interessado empenhamento da embaixadora Klara Breuer, entusiasta andarilha das terras alentejanas.

A abertura do festival, porém, não será em português nem em húngaro, mas sim em latim, com música sacra. Depois de uma visita pela tarde ao Convento de Nossa Senhora das Relíquias, onde esteve sepultado Vasco da Gama até à trasladação para o Mosteiro dos Jerónimos, o concerto de sábado em Vila de Frades terá lugar na Igreja Matriz de São Cucufate, com obras de Liszt – Ferenc Liszt, aqui com o nome próprio na grafia húngara em vez do nome alemão Franz. Salve Regina (Salve Rainha) abrirá o concerto do Coro de Câmara Vaszy Viktor, fundado em 1958 e dirigido por Sándor Gyüdi, galardoado em 2006 com o Prémio Liszt.

E vem a propósito sublinhar o concerto de 16 de junho, que faz uma evidente ligação da música dos dois países: uma linhagem que começa em Liszt, segue para o seu aluno Vianna da Motta, e diretamente para Sequeira Costa, aluno do compositor português, para chegar aos nossos dias com o pianista Artur Pizarro, discípulo de Sequeira. Será Pizarro o intérprete dessa noite no Centro das Artes de Sines, com obras de Bach, Schumann e, claro, uma sonata de Liszt.

O que faz sobressair este festival é a sua originalidade, ao assumir um olhar para o exterior. Esta caraterística é sublinhada pelo grupo heterogéneo de «mestres­‑de­‑cerimónias» que o preparam.

A qualidade musical foi sempre uma caraterística deste festival, que em 2010, por exemplo, abriu com um concerto de Jordi Savall em Santiago do Cacém e teve em 2016 um momento especial com Polirritmias: Ligeti Africano, na Basílica de Castro Verde, interpretado pelo pianista espanhol Alberto Rosado em diálogo com um trio de percussionistas africanos.

Mas o que faz sobressair este festival é a sua originalidade, ao assumir um olhar para o exterior. Esta caraterística é sublinhada pelo grupo heterogéneo de «mestres­‑de­‑cerimónias» que o preparam.

Além do diretor-geral, são eles o geólogo Carlos Cupeto, doutor em Hidrogeologia Ambiental, o especialista em moinhos José Matias, de Santiago do Cacém, os arquitetos Ricardo Estevam Pereira, do Museu de Sines, e Francisco Lobo de Vasconcellos, também do litoral alentejano, e o historiador António Quaresma.

Quando, na tarde de sábado, entrarem os primeiros visitantes no Convento de Nossa Senhora das Relíquias, estará dado o primeiro passo formal da 14ª edição do Festival Terras sem Sombra.

É com eles e com muitos outros voluntários que se torna possível mostrar não apenas os monumentos mas também as caraterísticas da vida da terra, desde a produção de vinho, lã ou azeite até aos moinhos de vento.

Quando, na tarde de sábado, entrarem os primeiros visitantes no Convento de Nossa Senhora das Relíquias, estará dado o primeiro passo formal da 14ª edição do Festival Terras sem Sombra. São dez os fins de semana em que música clássica, património e biodiversidade vão afirmar­‑se em harmonia por terras do Alentejo.

Agora falta saber que país será o convidado do próximo ano, já que a fasquia foi colocada muito alto com a participação ativa da Academia Liszt, escola de música de topo mundial. Quem poderá estar a este nível?

Um prémio, três prémios

No dia 7 de julho, na Casa das Artes de Sines, será entregue o Prémio Internacional Terras sem Sombra, criado em 2011. Aí está mais uma grande responsabilidade desta organização, com um júri internacional, já que os anteriores premiados são de enorme qualidade.

São distinguidas anualmente pessoas ou entidades que se destacam em três categorias:

  • Promoção da música;
  • Valorização do património cultural;
  • Salvaguarda da biodiversidade.

Entre os premiados contam­‑se já:

  • A cantora lírica espanhola Teresa Berganza, o diretor do Festival de Lucerna (Suíça) Michael Haefliger e o maestro italiano Alberto Zedda, no caso da música;
  • O ar­queólogo sírio Khaled al­‑Asaad, o Campo Arqueológico de Mértola e o curador de arte brasileiro Angelo Oswaldo de Araújo Santos, em matéria de património;
  • O oceanógrafo Mário Ruivo, o Programa World Wide Fund for Nature para o Mediterrâneo e a Fundação Stiftung Schloss Dyck (Alemanha), na área da biodiversidade.

A cada premiado são entregues um diploma e uma obra de arte encomendada a um artista contemporâneo.

Resumo do programa

  • 17 e 18 de fevereiro | Vidigueira: coro da Catedral de Szeged (Hungria)
  • 3 e 4 de março | Serpa: Nuno Viera de Almeida, Cátia Moreso e Academia Franz Liszt (Portugal)
  • 17 e 18 de março | Odemira: Vena Piano Trio (Hungria)
  • 14 e 15 de abril | Castro Verde: Alunos da Academia Liszt (Hungria)
  • 28 e 29 de abril | Ferreira do Alentejo: Pauline Yang (EUA)
  • 5 e 6 de maio | Beja: Cuarteto Corso Barbara Furtuna (Córsega)
  • 19 e 20 de maio | Elvas: Clarines (Espanha)
  • 16 e 17 de junho | Sines: Artur Pizarro (Portugal)
  • 30 de junho e 1 de julho | Santiago do Cacém: Kurtag (Hungria)
  • 7 de julho | Sines: Prémios Terras sem Sombra

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