Fernando Ribeiro de Mello: o editor maldito do Porto

Conferência de imprensa líquida, protagonizada por Ribeiro de Mello em dezembro de 1971.

Texto de Helena Teixeira da Silva

Fernando Ribeiro de Mello é ruidoso, espalhafatoso, exército armado de letras contra a polícia, a política, o medo, a mordaça e a moral. Incomoda o regime de Salazar e afronta a conduta de um pequeno país que até descobrira o caminho marítimo para o mundo mas que do mundo não sabia ainda quase nada.

Homem do Porto, reto e direto, com sotaque, fura o tecido cultural de Lisboa em 1963 à boleia do talento para declamar. Tem 22 anos e apenas o segundo ano da Escola Industrial, mas a idade e a escolaridade não o impedem de ser unanimemente considerado “cultíssimo”.

“Engravidava de ouvido e produzia excelentes resultados”, dizia-se. Com ele, “a poesia vive um dos seus momentos mais nobres: o tempo de ser dita”, nota Herberto Helder. Faz-se amigo de Natália Correia [1923- 1993] e a poeta fará dele editor.

Nasce assim a Afrodite, editora à frente do tempo, do erotismo, da alcova, do vinho e de Vénus. De vanguarda. Editora de rasgo gráfico ousado, cuidado, pioneiro. “Os livros eram objetos quase ostensivos na sua originalidade conceptual”, aplaudiu Vitor Silva Tavares [1937-2015], editor da não menos mítica &etc e amigo que o acompanhará do reinado à ruína. A única editora do país que teve todos os livros censurados. E a única cujo editor – maldito, destemido, talhado para ser do contra – foi perseguido, julgado e condenado em Portugal durante o Estado Novo apenas por publicar livros. Por duas vezes.

A “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, coordenada por Natália Correia – edição que hoje ultrapassa os 250 euros nos alfarrabistas – e, num golpe de publicação ainda mais arrojado, “A Filosofia na Alcova”, do Marquês de Sade, ambas de 1966, foram as responsáveis pela sentença.

Era o tempo em que a PIDE sabia mais dos editores do que dos escritores. E o provocador Fernando Ribeiro de Mello era tudo menos invisível – na vida vivida com fausto e hedonismo, debruada a bigodes dalinianos e roupas queirosianas; e na obra proibida e, à época, subversiva. O primeiro ano de trabalho da Afrodite é classificado pelo censor Joaquim Raymond Palhares de forma paradigmática: “uma insólita ofensiva de corrupção”.

Ribeiro de Mello não encolhe os ombros, usa a censura a seu favor, segue em frente, capitalizando sempre até ao 25 de Abril. As suas edições reúnem os melhores ilustradores, de Eduardo Batarda a Cruzeiro Seixas, passando por Julião Sarmento, usam tradutores ímpares como Herberto, esgotam antes de chegar ao mercado, atingem já preços inimagináveis.

Na capital, onde se instala até morrer, é conhecido por “Dali de Lisboa”, numa referência ao pintor surrealista, e por “Pauvert português”, por analogia ao ousado editor francês. (Foto: Arquivo DN)

Em 1965, o “Kama-Sutra: Manuel do Erotismo Hindú”, livro de estreia, custava uns garbosos 200 escudos, que seria hoje o equivalente a 75 euros. As obras da Afrodite são os autores, o design, o objeto, mas são sempre acima de tudo a chancela Afrodite. “Havia tanta certeza de que haveria procura para aqueles livros, que chegou a haver quem lhe comprasse edições inteiras à cabeça.” Fernando enriquece antes de completar 30 anos.

Com semelhante lastro de controvérsia e genialidade, “como explicar que nunca nenhum jornalista tenha alguma vez querido entrevistar Fernando Ribeiro de Mello”, personagem polémico e provocador, comparado a Jean-Jacques Pauvert, o editor francês que ousara também publicar a obra de Sade nos anos 50? A inquietação, mais do que a simples pergunta, moveu Pedro Piedade Marques, autor da biografia de Ribeiro de Mello [“Editor Contra”, 2015, Montag], homem a quem se deve o resgate da memória daquele que assegura ter sido “o melhor pequeno editor português de todos os tempos”. Foi ele quem propôs à Câmara do Porto a exposição “Editor de vanguardas”, que a autarquia acolheu e tem patente na Biblioteca Municipal até 31 de janeiro.

Da venda do esqueleto à prisão
O pai de Fernando era açoriano de São Miguel. Saiu da ilha para estudar Direito no Porto e transformou-se numa figura típica da cidade. Joaquim Bento Ribeiro de Mello era homem próspero, respeitado, “imponente, quase dois metros de altura, um dos quatro monóculos do país”, lembra Joaquim, o mais novo dos seus quatro filhos, todos rapazes, o único vivo.

Diz a lenda que o pai ganhava processos quase sem falar. “Só pelo porte.” Um antissalazarista que “nunca foi preso por ordem do Salazar”. Em casa, contudo, era autoritário, rigoroso, severo. Previsivelmente, Fernando não tardaria a entrar em rota de colisão com a figura paterna. Alcançados os 18 anos, anuncia a saída abrupta de casa. “Não estou mais para o aturar. Vou embora”, terá declarado.

A morada de família ficava no primeiro andar do número 673, na Rua D. João IV. Sem dinheiro, Fernando vai bater à porta do Instituto de Medicina Legal do Porto. “Foi vender o próprio esqueleto. Deram-lhe dois contos e quinhentos”, conta o irmão. Inscreve-se depois na Força Aérea Portuguesa, instala-se na base de São Jacinto, em Aveiro.

“Um dia, tem uma altercação com um oficial, dá-lhe um empurrão e é preso.” Poderia ter sido um drama, foi um momento de viragem. “O padre da freguesia leva-lhe livros e é aí que ele começa a ler, a devorar livros. Também era amigo do carcereiro, o homem abria-lhe a porta de madrugada para ele ir dar uma volta. Portanto, sentia-se ali maravilhosamente.”

Fernando Ribeiro de Mello nasce no Porto, de onde sai pouco depois dos 20 anos. (Foto: Arquivo DN)

Cumprida a pena, o então cabo Mello recusa sair da cela. Alega não ter ainda lido tudo o que precisava. Dizem-lhe que a prisão não é um hotel, é lugar para quem comete infrações e delitos. O ainda jovem e desconhecido Fernando Ribeiro de Mello pede então cinco minutos, “corre em direção à parada, trava o primeiro tenente que encontra, arregaça a manga, pede-lhe desculpa e enfia-lhe dois murros.” Estava enfim cometida a necessária infração. Volta a ser preso, com pena agravada, e continua a consumir literatura, o que terá sido determinante para o que se seguiria: a sua ida para Lisboa, onde se reinventa e afirma como declamador e editor, ganhando amigos como David Mourão Ferreira ou Mário Cesariny.

Da conferência líquida à lenda suicida
Entre 1968 e 1976, Fernando Ribeiro de Mello é um dos melhores e mais considerados editores do país. Publicou autores como Natália Correia, Mário de Sá Carneiro, Ana Hatherly ou Almada Negreiros. Luiz Pacheco haveria de reconhecer que muito lhe devia, sobretudo por causa de “O Libertino”. É também dos poucos editores que se não esconde atrás de edições pirata. Nem mesmo quando Guy Debord, cujos textos são indissociáveis das manifestações do Maio de 68, quis oferecer-lhe os direitos de “A Sociedade do Espetáculo”, para que pudesse fazer uma edição sem perseguição, nem aí cedeu. “Vivo muito do gozo público das edições que faço”, justificou.

Do gozo das edições e das performances. Em dezembro de 1971, protagoniza a conhecida conferência de imprensa líquida. Na sua casa de Campo de Ourique, investe dois dias a encher um tanque com água quente e espuma. Pede a Nuno Amorim, arquiteto e ilustrador de grande parte dos seus livros, para decorar a banheira, pintar dois travestis e um homem vestido de diabo.

E, por fim, convoca os jornalistas e a elite. Lá dentro, despido, fumando e banhando-se, Ribeiro de Mello apresenta quatro obras, entre as quais uma versão para adultos de “Alice no País das Maravilhas”. Não é um momento de paródia, é um instrumento de marketing para chamar a atenção da imprensa. Ou, como o próprio explicou: “Em determinados contextos, para não se ser cilindrado, para se poder intervir, ou se é entidade ou se é firma, ou se é louco. Como não sou entidade nem firma…”.

Este momento cristaliza-o para sempre como “Dali de Lisboa”. Mas, para Pedro Piedade Marques, este é o momento que ilustra “a maior defesa alguma vez feita dos pequenos editores”. De resto, durante muito tempo o autor da biografia de Ribeiro de Mello não conseguiu entender a decadência do fundador da Afrodite: rico antes dos 30 anos, falido aos 40.

“A lenda do Fernando Ribeiro de Mello é a história de um grande editor que se tornou num editor suicida depois do 25 de Abril de 1974. Até aí, a sua carreira é de uma inconsistência inatacável”, avalia. Foi Vítor Silva Tavares quem lhe mostrou a chave para a incógnita que define como o momento em que o valete de copas da Alice atravessa o espelho para um mundo oposto ao seu. “No meio das nacionalizações feitas à pressa, a maior e melhor distribuidora do país, Bloco Expresso, à qual viria a pertencer a Afrodite, foi apanhada nessa onda e faliu.”

Ribeiro de Mello, o editor corajoso que passou a vida a desafiar a moral, fosse ela qual fosse, perde tudo. Ainda aparece como jurado no “Prata da casa” dos anos 1980 de Fialho Gouveia e ainda tenta a controvérsia publicando obras como “Mein Kempf” de Hitler, mas o tempo não mais andou para trás.

Dois anos antes de morrer, reconheceu que a democracia conquistada em 1974 lhe retirou a função. “Não existe nada que me permita editar contra. Deixou de haver lugar para o meu antigo papel.” Em 1981, é ele quem leva o Estado a tribunal, acusando-o de ter levado a Afrodite à falência. Ganha a causa em 2002, mas já estava morto há dez anos.