F. C. Porto, Benfica e Sporting jogam às portas do deserto

Uarzazate, Marrocos

O pai de Adam fugiu faz tempo. Ele ficou com a mãe. Mais os seis irmãos. Agora também tem um padrasto. Neste limbo de crescer entre quem vai e quem chega, a vida nem sempre é fácil. “Temos o suficiente para comer”, diz Adam, a vergonha a ditar uma resposta soprada entredentes.

Mas não chega para jogar futebol na equipa de Uarzazate. Isso implicava pagar 150 dirhams (15 euros) por mês, uma despesa que escapa ao limite do orçamento lá de casa. Adam vai driblando o destino como pode. Sempre que lhe pedem, dá uma perninha nas equipas das redondezas.

Para tirar a barriga de misérias, há as peladinhas de fim de semana. Tem 12 anos e uma compleição física subdesenvolvida para a idade. Mas nem o metro e pouco de altura, nem o dinheiro contado que o impede de jogar na equipa que queria, lhe freiam o sonho. “Quero ser jogador de futebol.”

Estamos em Uarzazate, cidade do sul de Marrocos que se anuncia como “a porta do deserto”. Para um lado, ficam as montanhas do Alto Atlas. Para o outro, a imensidão do Saara. Aqui, algures a meio, a vida divide-se entre a agricultura, o turismo e o cinema. Com dois grandes estúdios, Uarzazate é conhecida como a “Hollywood de África”. Mas o futebol encontra sempre uma brecha por entre o guião dos dias de rebuliço.

É sábado e o relógio ronda as quatro de uma tarde solarenga, abafada. O campo grande de Tabounte, um imenso retângulo talhado entre um perímetro de casas cor de barro, é tão grande que serve de palco a vários jogos em simultâneo. Num deles está Adam, o craque meia-leca que joga como gente grande.

É um dos protagonistas de um jogo bem português, disputado nas entranhas do continente africano. Adam atua pelo F. C. Porto – mesmo que primeiro o faça com uma camisola do Raja Club Athletic, de Casablanca, e depois com um equipamento pouco oficial (inscrição “Super Porto” nas costas e um mero “Porto” na barriga). Do outro lado, está uma jovem equipa do Benfica. E no muro, erguido sobre o campo de Tabounte, uns quantos craques do Sporting.

Lá em baixo, um marroquino alto e entroncado, 41 anos e look moderno a atestar a ocidentalização, ajuda a explicar o cenário. Chama-se Abdelkader Belkerma e há muito trocou os ares de Marrocos pelos de Portugal. Mas um bom filho à casa torna. E Abdel, como todos lhe chamam, torna sempre. Uma ou duas vezes por ano, pelo menos. Numa dessas ocasiões, foi dar com a criançada de Tabounte a fazer mira aos pássaros, fisgas em riste.

“Hoje matam pássaros, amanhã vão matar pessoas”, imaginou, em surdina. O pensamento moeu-o devagarinho. Tanto que em vez de ficar sentado à espera de ver o que a vida dava, resolveu agir. Meses depois voltou a Marrocos e ficou-lhes com as fisgas. Em troca, deu-lhes camisolas do F. C. Porto (ou do “Super Porto”). E bolas. E presentes para os melhores alunos, garante. Agora, três anos depois, cumpriu outra parte da missão: distribuiu camisolas do Benfica e do Sporting e promoveu um torneio entre os três grandes de Portugal. Às portas do deserto.

O gesto é tanto um mimo para os compatriotas como um cartão de agradecimento ao país que o recebeu de braços abertos. “Sou muito grato a Portugal por me ter acolhido. Faço-o, em parte, por isso. Mas também para incutir o desporto a estes jovens. Assim, espalha-se o bem e dá-se o exemplo. Gostava que eles tivessem um futuro melhor”, deseja Abdel, tez bem morena a certificar as origens.

Por agora, no campo grande de Tabounte, o futuro está fora de jogo. O presente, sim, justifica todas as gotas de suor. O F. C. Porto-Benfica da tarde, trapalhão até dizer chega, joga-se sob uma névoa de pó, num campo em que as balizas são marcadas por pedras. As águias vencem por 2-0. Numa jogada de insistência, Adam reduz e é abraçado pelos companheiros, todos bem maiores do que ele.

Na “bancada”, um extenso muro onde dezenas de miúdos se foram juntando para ver a peladinha, também o saúdam. Perto do fim, fica perto de empatar. Mas não evita a derrota. Os vermelhos abraçam-se a cantar, em árabe. “Ganhámos, ganhámos, ganhámos. Ganhámos e vamos voltar a ganhar.” Nada que o demova. Senta-se junto ao campo a ver o Benfica-Sporting que se segue. Volta e meia também vê o F. C. Porto, mas na televisão, quando há jogos da Liga dos Campeões. De jogadores é que não se lembra. “Só do Cristiano [Ronaldo].” Ah! “E do Nani.”

Por 150 dirhams (15 euros) por mês, Adam, 12 anos, teve de abdicar de jogar futebol na equipa de Uarzazate.

Nem de propósito. No segundo jogo da tarde, Walid marca para o Sporting e faz uma acrobacia ao jeito do internacional português. Abdel intervém, para pedir que haja fair-play. “Têm de jogar com cuidado. Não quero que se magoem”, justifica. Natural de Sidi Slimane, pequena cidade no noroeste de Marrocos, Abdel aprendeu cedo que a perseverança é a chave de tudo.

Nasceu numa família humilde, mas os terrenos que tinham bastaram para viver uma infância tranquila. Só que os pais foram envelhecendo. E as coisas complicaram-se quando o irmão mais velho se endividou. “Ficámos sem nada, só com a reforma do meu pai.” Para ajudar, começou a vender cigarros avulso e sacos de plástico, no mercado. Aos 18 anos, conseguiu ir estudar Língua e Literatura Francesa para Kenitra, a 60 quilómetros de casa. Mas havia mais dificuldades à espera, ao dobrar da esquina.

Um dia, levou um amigo para passar o fim de semana em casa dos pais. Depois de se lambuzarem com o jantar, foi dar com as roupas da mãe no chão da casa, carregadas de sujidade. Antes de ter tempo de perceber o que quer que fosse, a irmã apareceu, a dar-lhe um estalo: “Queres matar a mãe?”.

“Quando liguei à minha mãe a dizer que ia levar um amigo, ela foi a casa da vizinha pedir 10 dirhams [1 euro] emprestados para fazer o jantar. No caminho, uma estrada em lama, sem luz, caiu e partiu uma perna e um braço. Passei essa noite a chorar. Costumo dizer que chorei lágrimas de sangue. Mas aí começou a minha luta”, salienta Abdel.

Telefonou a um amigo que tinha uma agência de turismo em Marraquexe e, aos 20 anos, rumou à “cidade vermelha”, com 120 dirhams (12 euros) no bolso. Começou por lavar loiça e limpar tendas. “Durante seis/sete meses ganhava o equivalente a 120 euros e enviava metade para os meus pais. Fazia um Ramadão forçado”, recorda, ar sério a contrastar com a boa disposição habitual. Mas não baixou os braços: fez-se guia de montanhismo e, quando começou, ele próprio, a organizar excursões, a vida voltou a sorrir-lhe.

Mehdi, 16 anos, árabe de crista bem ocidental, árbitro do jogo inaugural da tarde e agora jogador de águia ao peito, também sorri, quando percebe que tem nos pés o penálti que pode empatar o “dérbi”. Mas não consegue converter. Um desvario menor numa vida atulhada de percalços a sério. O pai morreu. A relação com o padrasto não é famosa. Ele meteu-se por maus caminhos. Para afogar as mágoas, chegou a refugiar-se no álcool.

Mehdi, o árbitro de uma das partidas.

Agora, aos poucos, a vida vai retomando o trilho. “Está na escola profissional, num curso de alumínio”, conta Abdel. Na outra metade do campo está Driss, 14 anos, altura de sobra, pinta de craque, sonhos bem maiores do que os que ganham vida quando a bola rola. É o melhor aluno da turma e quando lhe dão a escolher entre a escola e o futebol, a resposta é pronta: “A escola. Quero ser médico!”. Mesmo que o esférico também lhe faça pulsar o coração – ainda mais quando marca dois dos golos da tarde, pelo Sporting.

No intervalo do desafio entre leões e águias, um treinador improvisado, chinelos nos pés e ar de “bad boy”, aparece, vindo sabe-se lá de onde, a dar a tática. Abdel junta-se. Diz-lhes que joguem em 3x2x2 (manigâncias do futebol de oito). Em vão. No campo grande de Tabounte, prevalece a tática do tudo-ao-molho-e-fé-em-Deus. Até porque, ora porque estão cansados, ora para poderem jogar todos, os jovens jogadores vão entrando e saindo de campo sem lei nem ordem.

Veste camisola, despe camisola, o avançado do Benfica já é defesa do F. C. Porto e o médio do Sporting já tem camisola dos leões e calção das águias. Para apimentar o rocambolesco da cena, há dois “espectadores” que contornam o relvado ao ralenti, tão lentos quanto o passo da mula que montam. “Chegou a ambulância”, brinca Abdel. Há uma gargalhada geral. E o Benfica a empatar. Não, o árbitro diz que o poste se mexeu (acontece, quando os postes são pedras). Uns segundos de indefinição. Afinal há mesmo golo para o Benfica. Festa rija dentro e fora do campo.

Ou a prova de como a tática e o rigor da competição valem pouco quando comparados com o deleite dos jovens de Tabounte por vestirem as camisolas dos clubes que se habituaram a ver na televisão. E por jogarem a sorte dos dias no campo de futebol, bem longe dos desencantos de quem cresce sem rumo. O último jogo do dia reserva um Sporting-F.C. Porto, que acaba com vitória leonina.

Abdel não faz claque, mas não esconde que a costela portista está lá. Afinal, é na Invicta que tem vivido desde que, em 2005, partiu de armas e bagagens, rumo a Portugal. Culpa das excursões, aquelas que começou a fazer depois de se mudar para Marraquexe para lavar a loiça e limpar tendas. Numa delas, conheceu uma portuguesa que lhe mudou a vida. Depois de dois anos de uma relação à distância (“ela chegava a fazer dois mil quilómetros, num Fiat Punto, para passar uma noite comigo”), Raquel, a namorada, entretanto mulher, engravidou.

E Abdel, até aí determinado a convencer a parceira a mudar-se para Marrocos, largou a vida que tinha no país em que nasceu para começar uma nova em Portugal. Estávamos em 2005. “Quando fui, já sabia que queria abrir um espaço ligado a Marrocos. Leio muito sobre a História e de alguma forma quis recriar um laço de fraternidade entre os dois países.”

Meses depois, abria um bar de decoração marroquina, com chá e shisha para lembrar as raízes. “Quando comecei, nem sabia tirar um café. Nem os nomes das bebidas, porque em Marrocos não tinha acesso a elas [os muçulmanos têm por princípio não beber álcool]. Tinha de perguntar tudo à Raquel, que ia para lá ajudar-me. No início, havia alguma desconfiança. As pessoas gozavam um bocado. Mas depois acabou por correr bem.”

Tão bem que, em 2009, abriu, também no Porto, um outro negócio, outra vez ligado àquilo de que é feito: um hostel de inspiração marroquina. Anos depois, novo investimento, outro hostel, desta vez na aldeia de Tabounte, cidade de Uarzazate. Agora, aos 41 anos, assume sem rodeios: “Vivo bem. E sou muito grato a Portugal por isso. Mas costumo dizer que a terra que pisamos é abençoada. Não consigo esquecer-me de onde venho, quem eu sou. Por isso, quando posso, gosto de ajudar”.

Salim, 13 anos, óculos de massa pretos e camisola do Benfica, parece partilhar com Abdel o princípio da terra abençoada. Quando lhe perguntam o que mudava na vida que leva em Tabounte, responde com desprendimento: nada. É feliz, garante. Com as peladinhas de domingo e tudo o resto. E com os sonhos, tirados a papel químico de tantos outros, que andam no imaginário de crianças pelo mundo inteiro. “Quero ser jogador de futebol”, atira, sem surpresa. Mais: quer jogar na seleção de Marrocos e brilhar como Amrabat, avançado marroquino, de 31 anos, que representa a formação do país.

Para já, outros valores se levantam. Afinal, é a vitória no torneio do campo grande de Tabounte que está em causa. Com o triunfo frente ao F. C. Porto e o empate diante do Sporting, as águias somaram quatro pontos. Os leões outros tantos. Para desempatar, há cinco grandes penalidades para cada lado. Por instantes, a prova ganha uma réstia de solenidade. Tanto que, de cada vez que alguém se prepara para bater o castigo máximo, os adversários entoam, em uníssono, um “uuuuuuuu” dissuasor. A tática resulta mais favorável ao Sporting, que acaba como grande vencedor da tarde.

Troféu? Há, sim senhor. Vários. O primeiro vai para o F. C. Porto, terceiro classificado. O segundo para as águias, derrotadas nos penáltis decisivos. O último, e mais importante, para o Sporting. Antes de erguerem a mais palpitante das três taças, os jovens leões estendem os braços e vão abanando os dedos, ao som de um sonoro “woooooooow”. Como se do troféu da final da Liga dos Campeões se tratasse.

Queimam-se os últimos cartuchos da tarde de sábado. Às portas do deserto, a amplitude térmica exige pano para mangas. Tanto que da tarde solarenga e abafada que viu o campo de Tabounte encher-se de camisolas de F. C. Porto, Benfica e Sporting, quase só sobra uma brisa desconfortável, cortante. Mas Abdel tem mais uma taça para entregar. Ao melhor jogador.

Adam, o craque meia-leca que, por não conseguir pagar 150 dirhams (15 euros) por mês, não pode jogar na equipa de Uarzazate, chega-se à frente, meio timidez, meio sorriso desconcertado. É ele que leva para casa o caneco que distingue o craque do dia. “Adam, Adam, Adam”, gritam colegas de equipa e adversários, antes de Abdel erguer o novo MVP da terra em braços. O sonho de ser jogador de futebol fica um bocadinho mais real.

Aos poucos, as nuvens tomam conta do céu. Mas, por aqui, há um provérbio árabe que intima a não declarar as estrelas mortas só porque o céu está nublado. Adam cumpre-o à risca, mesmo que não o conheça. Com o troféu de melhor jogador nas mãos, sorri, feliz. Como se o pai não tivesse fugido. Como se as dificuldades financeiras não o tivessem obrigado a deixar o sonho em “standby”. Como se a vida fosse, afinal, simples.

Adam e Abdel

Em Tabounte, ao anoitecer, já não se veem fisgas. Mas veem-se camisolas. Do F. C. Porto. Do Benfica. Do Sporting. Coladas ao corpo dos que teimam em não as despir, mesmo quando o relógio dita a hora do regresso a casa. Como se nelas coubessem os sonhos que se eclipsam nas esquinas dos dias. O futebol tem isto, de saber ser maior do que as agruras. “Adam, Adam, Adam.”