Cercados por legislação cada vez mais restritiva, os empresários circenses vivem com a corda na garganta. Até 2024, todas as espécies serão proibidas em espetáculos. A adaptação tem sido dura. A arte da sobrevivência é cada vez mais delicada.
“Há quanto tempo não vai ao circo?”, quase grita o estampado da t-shirt vermelha que protege do frio Aires Ribeiro, 50 anos, circo como casa e trabalho desde quase sempre, Mundo inteiro calcorreado enquanto artista profissional. Nos bastidores do Circo Mariani, estacionado em Vila Nova de Gaia nesta temporada de Natal, Aires transforma-se lentamente em Aris Gaitinhas, o palhaço a que dá corpo e ritual e que daí a pouco arrancará gargalhadas às muitas crianças que o esperam nas preenchidas bancadas da enorme tenda de lona.
Enquanto alinha com precisão tinta branca no rosto e desenha finos riscos a cor preta nas fronteiras dos lábios, o pó de arroz ajuda a dar vida a um rosto que se quer de alegria. Uma enorme mala aberta à sua frente dá a descobrir clarinetes, acordeões, luvas imensas, perucas de várias cores, como se o circo inteiro coubesse lá dentro. E um telemóvel vai despistando o tempo de espera e matando saudades de uma época que deixou gratas memórias.
“Eram como filhos. Criados connosco, bem alimentados, família autêntica. Até dói falar da falta que fazem”, desabafa Aires, já quase Aris Gaitinhas, dedilhando com demora fotografias em que surge em primeiro plano afagando um crocodilo ou em pose junto a um hipopótamo. As memórias saltam enquanto contempla com carinho um sem-número de animais que um dia foram proa do Circo Mundial e que dele deixaram de fazer parte há três anos, quando foi tomada a decisão de os retirar de cartaz, assim antecipando, sem saber, o que só agora o Estado decidiu colocar preto no branco em corpo de lei.
Em outubro último, a partir de uma proposta apresentada pelo PAN, a que foram depois acrescentados ajustes de outros partidos, o Parlamento aprovou o fim do uso de animais em atividades circenses a título definitivo até 2024. Meia dúzia de anos de período transitório em que os empresários terão de decidir o que fazer com todas as espécies que então passarão a ser terminantemente impedidas naquele que muitos ainda apelidam de maior espetáculo do Mundo. Depois disso, zero, nada de animais. Serão apenas passado, história e memória de uma tradição de séculos.
A decisão foi aprovada por larga maioria das bancadas representadas na Assembleia da República. PS, PSD, Bloco de Esquerda, PEV e PAN votaram a favor do projeto de lei 695/XIII/3ª. O PCP optou pela abstenção. Só o CDS se levantou contra (o deputado João Rebelo desalinhou e absteve-se).
“Caricato quererem acabar com animais nos circos, mas não nos jardins zoológicos e em exposições. É mais uma questão política do que outra coisa. Tratamos melhor dos animais do que o Governo dos idosos”, indigna-se Joaquim Cardinali, homem forte do Circo Soledad Cardinali. “Na altura da escravatura havia escravos de casa, o que não significava que não eram escravos na mesma. Onde há um circo há violência, seja ela física ou emocional, porque aos animais é pedido que executem o que não lhes é natural”, contrapõe Rita Silva, presidente da Associação Animal e uma das principais entusiastas da nova legislação.
Defesa da tradição
Resignados a uma realidade que não tem retorno possível agora que a lei as encostou à parede, as companhias de circo vão fazendo pela vida e tentando encarar mudanças de paradigma em relação ao que lhes foi hábito desde a origem. Aliás, não é de agora que o Estado tenta limitar a utilização de animais. Em setembro de 2009, era José Sócrates primeiro-ministro, uma portaria do Ministério da Agricultura determinou a proibição de reprodução de animais em ambiente de circo e a aquisição de novos outros.
Primeira tentativa de aplicar gradualmente o que só agora a nova legislação vem impedir em definitivo, não teve particulares resultados práticos. De boa parte dos cartazes continuaram a constar atrações com tigres, cavalos, camelos, serpentes, hipopótamos, rinocerontes, leões e demais espécies.
O Circo Mundial foi das poucas exceções à regra geral dos restantes camaradas de ofício e arte. “Desde 2015 que cortámos com os animais. Toda a vida os tivemos e os tratámos como mereciam, mas não podíamos lutar com gente que não tem mais nada com que preocupar-se. Quem faz mais barulho é quem consegue chegar mais avante, infelizmente. E temos de sobreviver”, resigna-se Rúben Mariani, 34 anos, responsável máximo do Mundial.
Houve que alterar hábitos antigos, mudar alinhamentos, apresentar ao público uma versão diferente da de (quase) sempre, com atuações mais prolongadas para colmatar o espaço anteriormente ocupado pelas que entretanto foram riscadas por força das circunstâncias. “Mantivemos o resto, claro. Só que circo tradicional é com animais, aqui e em todo o lado. Parece que o querem matar”, diz.
Exemplos que vêm de fora
Joaquim Cardinali lembra exemplos externos para tentar contradizer alguns dos argumentos internos. “O Circo de Monte Carlo, que é só o maior do Mundo, apresenta a maioria dos números com animais. Por que razão haverá de ser diferente em Portugal? Esquecem-se que o circo é do povo e que o povo quer continuar a ver animais.” A indignação pura sentida na voz.
Junto ao Coliseu do Porto, onde o Circo de Natal faz gala de não possuir animais como intervenientes, a surpresa do público pelas mudanças trazida pela lei foi muita, a desilusão pelo fim dos animais também. “O circo é deles, fazem parte da história. Parece que os políticos querem afastar os espectadores”, atira Isabela Oliveira, algarvia de Quarteira, 60 anos. Ao lado, Fernando Airosa, gaiense de 69, lamenta decisões políticas que “tiram beleza ao circo e o tornam menos divertido, sobretudo para as crianças”.
Nada que desmobilize Eduardo Paz Barroso, presidente da Associação Amigos do Coliseu do Porto. “É uma questão de lógica, coerência e sensatez. Entendemos que o lugar dos animais não é no circo. Por isso, não os temos desde 2015. As crianças devem encontrá-los no seu habitat natural, trata-se de conceção estética”, defende.
Destino final
Quando decidiu solenemente dispensar os animais da companhia, um aperto de coração tomou conta de Rúben Mariani. Houve que decidir-lhes o destino, encontrar soluções que não lhes cortassem qualidade de vida daí em diante, preparar uma separação forçada com o mínimo de impacto em cada uma das partes. “Procurei em Espanha uma associação animal que possuísse parcerias com zoológicos e fiz uma doação responsável. Praticamente ofereci-lhes os meus tigres, leões, hipopótamos, serpentes, cavalos e dromedários. Assim, fiquei com a certeza de que continuariam a ser cuidados como merecem”, explica.
Apesar de a legislação aprovada em outubro apenas ter aplicação total daqui por seis anos, há câmaras municipais com liberdade e autonomia para decidir se querem animais dentro dos limites dos respetivos concelhos nas datas em que por lá assentam companhias de circo. No Porto, por exemplo, a autarquia decidiu que a proibição pura e dura vigoraria a partir deste ano. Consequência, o Soledad Cardinali, que habitualmente se instala no Queimódromo, espaço gerido pela empresa municipal Porto Lazer, já não incluiu na caravana, como em anos anteriores, os tigres, cavalos e cães que ainda mantém.
“Como não os consegui trazer para o Porto, ficaram na minha quinta, na Figueira da Foz. Já tive, também, camelos e rinocerontes. Só que, com estas confusões todas, cada vez menos compensa ter tantos”, queixa-se Joaquim Cardinali, empresário que, com os filhos, mantém a quarta geração do apelido de família em permanente cartaz; desde a década de 1940 que assim é, quando o avô italiano de Joaquim se apaixonou por uma portuguesa e juntos iniciaram uma companhia que pisou tudo o que é quilómetro quadrado de Portugal.
A adaptação possível
Lisboa, como Funchal, Faro, Matosinhos, Póvoa de Varzim, Cascais ou Sintra, também é clara: nada de espetáculos com animais em espaços municipais. Miguel Chen tem 80 anos de idade e outros tantos vividos dentro do circo. Aos 40, lançou-se em nome próprio. Teve atuações com bicharada, muita, e deixou de as ter quando se instalou permanentemente na capital e a Câmara proibiu a utilização. “Não percebo tanta confusão, os animais sempre foram bem tratados”, sublinha Miguel Chen. “Isto é tudo um exagero dos ativistas”, protesta.
Quando o Circo Chen decidiu cortar com o uso dos animais, apenas possuía tigres. Tempos houve em que abundavam hipopótamos, rinocerontes, girafas ou dromedários. “Uns foram morrendo, outros entregues a parques aquáticos, outros ainda seguiram para santuários de animais em Espanha. É a vida, tivemos de nos adaptar. Não foi assim tão complicado quanto isso, até porque os tigres faziam um número muito limitado”, salienta o veterano Chen, como que justificando a nova realidade chegada de supetão e que parecia adivinhar no horizonte.
“O circo é praticamente a única possibilidade que as crianças da chamada província têm para ver animais ao vivo. Nas cidades a questão é diferente, porque há jardins zoológicos e outros parques onde é mais fácil o contacto direto”, avança Miguel Chen.
Apesar de nómada, o circo permitiu, paradoxalmente, essa relação de proximidade com o público. Que foi alterada nas últimas décadas, quando a internet transformou o Mundo em vizinhança próxima e as novidades rapidamente passaram a chegar mais depressa às massas. A excentricidade e o espanto pelo aparato circense também pagaram a fatura da mudança; a chegada da caravana às localidades mais afastadas dos grandes centros era dia esperado durante todo o ano e agora quase memória a preto e branco.
Esmiuçando o mapa, ainda é possível encontrar quem teime em não deixar morrer a tradição, quem palmilhe territórios esquecidos para lhes levar a arte do circo. Quem acredite que o passado pode ser replicado a papel químico. A “Notícias Magazine” encontrou o Circo Arena em Sousel, profundezas do Alentejo, cinco mil habitantes espalhados por quatro freguesias encravadas no vasto distrito de Portalegre, meio caminho entre Fronteira e Estremoz. Com animais (poucos) e vontade (muita) de os continuar a manter, apesar dos bloqueios que a legislação vai impondo.
“Agora, só um tigre branco e cães futebolistas. Até pinguins chegámos a ter no passado”, rebobina Márcio Freitas, empresário do Circo Arena, enquanto brada receios sobre o que o futuro vai trazer. “Vamos fazer o quê quando a lei entrar em vigor daqui por seis anos? Em Portugal não há grandes soluções, enviá-los para o estrangeiro seria o genocídio, como aconteceu no México, onde muitos morreram à fome depois de entregues a associações que não conseguiram cuidar deles”, alerta Márcio, que de Sousel se preparava para partir rumo a Ponte de Sor, também Alentejo, para mais uns dias de espetáculo em terra recôndita.
Com malabaristas, trapezistas, acrobatas, palhaços e mágicos. E animais. Dos poucos que vão resistindo até serem oficialmente extintos pela lei que os banirá definitivamente de todas as tendas de Portugal. Daqui a seis anos, quando chegar o futuro que o circo nunca desejou.