De Escudeiro (de Mcnamara) a Cavaleiro (na maior onda de sempre)

Texto de Filipe Garcia | Fotografia de Paulo Spranger/Global Imagens

Foi pela natureza que Hugo Vau se mudou de Lisboa para a Terceira. Apaixonado pelo mar, em São Mateus guarda o Gigante, barco com que promove pescarias e viagens para ver golfinhos e baleias no mar dos Açores. Mas sem nunca perder de vista as grandes ondulações. «Quanto maior a nau, maior a tormenta, assim dizem os pescadores de São Mateus», diz quem, de barco, só procura calmaria.

Com a prancha de surf, a conversa muda. A perseguição às ondulações começa com dez dias de antecedência e a mala tem de estar sempre feita. Garret McNamara voa do Havai, Andrew Cotton da Irlanda e em poucos dias o encontro acontece na praia do Norte. Foi assim no passado dia 11 de dezembro quando a Nazaré voltou a inundar a internet. Nesse dia, Vau apanhou a onda do dia. «Foi a maior onda da minha vida.» Aos cinco anos, numa prancha de bodyboard que recebeu no Natal, apanhou a primeira onda na praia Verde, no Algarve.

Dez anos depois, na praia Paraíso, na Costa de Caparica, estrear-se-ia no surf. «Coloquei-me em pé à primeira e cortei a onda até ao fim. Foi uma sensação mágica.» Anos depois experimentava o medo em ondas grandes – na Peralta, na zona da Lourinhã, com o mar entre os quatro e cinco metros. No Algarve viciou-se no mar, na Costa de Caparica viciou-se no surf, mas na Peralta descobriu a sua especialidade. «A escala e a maturidade subiram rapidamente. Já vi ondas gigantes, mas é onde gosto de estar, onde me sinto bem.»

«Acho pouco saudável a competição gratuita entre surfistas, com faltas de educação, gritos e agressões. Por isso gosto tanto de surfar ondas maiores. Há mais espírito de entreajuda e de partilha. Para mim esse é o verdadeiro espírito do surf.»

Estudante de Psicologia na Universidade Lusófona, deixou o curso por acabar para trabalhar no colégio de uma tia em Almada. Mas não é fácil a vida de surfista em Lisboa e, aos poucos, as malas foram assentando no Baleal, em Peniche. À medida que o colégio ia ficando para trás, a pesca semiprofissional começava a tornar-se na sua fonte de sustento. «Ia de férias aos Açores desde os 17 anos. Numa das viagens fiquei mais tempo na Terceira e vi um anúncio: “Precisa-se de homem para ir ao mar”, decidi arriscar», lembra o momento em que passou a pescador profissional.

O Gigante e a mudança oficial de morada viria logo depois. Antes, em 2005, Vau descobria a praia do Norte, mas levaria dois anos a apaixonar-se. «Voltei para fazer segurança aquática no Special Edition, um campeonato de bodyboard, e as ondas estavam com uns seis metros. Vi tanta onda grande, tanta onda linda, que a minha perspetiva do local mudou para sempre.» E nunca mais se afastou – em 2011 tornou-se no único português em quem Garrett McNamara confia a missão de resgate na hora de caçar gigantes.

«Não quero pensar que salvei a vida a alguém, mas já tirei grandes nomes do surf mundial de situações muito complicadas, potencialmente fatais.» Hoje os papéis invertem-se. «Foi ele quem me rebocou para as maiores ondas da minha vida.

Na água, com ele e o Andrew Cotton, o terceiro membro da equipa, sinto-me confiante.» A maior chegou no passado dia 11 de dezembro. «Disse-lhe que queria uma esquerda gigante.» Quebrem para a esquerda ou para a direita, na praia do Norte Garret McNamara sabe como ninguém encontrar ondas e depressa acedeu ao pedido.

«Uns momentos antes tinha fechado os olhos e pedido a onda à mãe natureza, e ela veio. Quando larguei a corda, foi um momento mágico. A velocidade e a sombra superescura que criou marcaram-me. Dei três saltos enormes, o terceiro foi abismal. Mesmo em queda livre, acreditei que ia conseguir aterrar bem. Foi esse salto que gerou a velocidade que me permitiu surfar a onda até ao fim.»

Hugo Vau, 37 anos, é o único português na equipa do surfista havaiano e o mais sério candidato luso ao título de sobrevivente à maior onda alguma vez surfada na praia do Norte, que diz ter atingido «20, 22 metros de altura», bem perto do recorde do McNamara em 2011 (24 metros), e que para já lhe garantiu a entrada direta nos Billabong XXL, os Óscares para surfistas de ondas grandes. Vau passou a adolescência entre competições de natação, mas no surf gosta pouco de confusões.

«Acho pouco saudável a competição gratuita entre surfistas, com faltas de educação, gritos e agressões. Por isso gosto tanto de surfar ondas maiores. Há mais espírito de entreajuda e de partilha. Para mim esse é o verdadeiro espírito do surf.»

«Peço à minha mãe e à natureza que me acompanhem e protejam. Pessoalmente ou por telefone, dou sempre um beijinho à minha mulher. Se não me despeço dela nem me sinto totalmente confiante.»

Considerando-o um verdadeiro desporto de competição, prefere fazer os treinos ao ar livre, seja em caminhadas, corridas, sessões de caça submarina ou treinos de apneia. E leva a coisa muito a sério. No tow in, variedade em que o surfista é rebocado para o local onde tentará apanhar a onda, o risco é bem maior.

Em 2013, a brasileira Maya Gabeira teve de ser reanimada na areia e no dia em que Vau fez a sua maior onda foi o outro português na água a provar o lado mais negro da praia do Norte – António Silva caiu, foi atropelado por três ondas e acabou o dia no hospital com uma distensão nos ligamentos do joelho. Mesmo assim, Hugo Vau recusa a ideia de que desafie a morte e garante que é mesmo a «paixão pelo surf e pelo mar» que o move. Ao fim de três anos na equipa de McNamara, de escudeiro, Hugo Vau foi armado cavaleiro de ondas gigantes.

Ao havaiano agradece o facto de o ter rebocado para as maiores ondas que alguma vez surfou. E uma lição muito especial: «O medo é criado na nossa mente e é a esse nível que temos de o combater. Se nos focarmos no que estamos a fazer, não pensarmos no passado ou no que irá acontecer, não existe espaço para sentir medo. Ficamos protegidos.» Quem, em dia de ondas grandes, já desceu do Sítio da Nazaré em direção ao farol da praia do Norte, terá dificuldade em acreditar, mas Vau garante que do mar não sente medo. Apenas respeito.

Ainda assim, antes de surfar há rituais a cumprir. «Peço à minha mãe e à natureza que me acompanhem e protejam. Pessoalmente ou por telefone, dou sempre um beijinho à minha mulher. Se não me despeço dela nem me sinto totalmente confiante.» Faz sentido: é com ela que persegue aves, baleias, golfinhos e tartarugas e é a ela que reconhece mérito.

«Acho que é ainda mais corajosa do que eu. É raro de se ver uma menina nascida e criada em Lisboa ter tanta destreza no mar», gaba. Para evitar demasiadas preocupações ao resto da família só conta no regresso a terra. Se não dá para evitar, o melhor é mesmo nem pensar nisso. Não é essa a lição de McNamara?

Texto originalmente publicado na edição nº 1181, de 11 de janeiro de 2015, da Notícias Magazine.