A escola e os alunos que desafiam o ranking

Texto de Kátia Catulo e fotos de Jorge Amaral

Uma boa aluna ou um bom aluno não precisam de tirar notas máximas a todas as disciplinas, nem tão pouco marrar todos os dias. Um bom aluno ou uma boa aluna podem estar numa escola privada ou numa pública. Pode até dar-se o caso de estarem na escola que ficou em último lugar no ranking do Ensino Básico.

Mamadú Jaló e Cristiana Melo frequentam a Escola Básica Integrada de Apelação, em Loures, aquela que teve a média mais baixa nos exames nacionais de 2016/17. E ambos são bons alunos, como tantos outros a estudar nesta escola, do Gabriel Santos ao Tiago Semedo Vaz, da Isabel Sousa ao Adil Roças. Só que não é fácil descobrir o que fazem de tão especial para terem notas altas a várias disciplinas.

Se há quem estude todos os dias, como Gabriel, aluno do 9.º ano, há quem só pegue nos livros uma semana antes dos testes, como Adil, a frequentar o 4.º ano. E se há os que, como Cristiana, têm os pais “a moer o juízo” dela, há também os que sabem quando é hora das tarefas escolares sem precisar de ultimatos: “Faço sempre o resumo da matéria ao chegar a casa”, conta Isabel, do 6.º ano.

Um bom aluno tanto estuda no quarto (é o que faz Cristiana) como vai para a sala (o lugar preferido de Isabel). Ou então num sofá com o telemóvel à mão, caso de Tiago, que recorre ao Google quando se engasga numa palavra, mesmo que a mãe o lembre que não faltam dicionários em casa.

Um bom aluno, aliás, não precisa de ter sido sempre um bom aluno. Pode até já ter chumbado, como Mamadú e Cristiana, mas atinaram e querem fazer o resto da escolaridade sem mais nenhum tropeção.

Arrastados pela onda
Boa parte do segredo de ser-se bom aluno tem a ver com estar atento nas aulas, explica Mamadú, do 8.º. Mas há outra parte não menos importante: “Nos anos em que fiquei para trás, ninguém queria saber da escola.”

E é impossível não ser arrastado por esta onda. Uma turma com colegas “bué amigos” é do pior, avisa Cristiana. Uns levam outros para a desgraça, mas tudo muda quando cada um vai para o seu lado. Quando os velhos amigos se foram embora, Mamadú admite que passou “a ter colegas mais sérios e as coisas melhoraram”.

Melhorar é passar de negativas a quase tudo para quatro a Físico-Química, História, Geografia, Francês e Educação Visual. A nota máxima, essa, só a Educação Física, o que não é de estranhar, dado estar-se perante o campeão nacional de sub-18 de salto em comprimento.

Mamadú é um atleta, tal como Cristiana. Ambos dividem o tempo entre os estudos e os treinos diários. O desporto é o que lhes dá mais pica e a escola, na verdade, é o que menos pica dá.

Estudar é importante, eles sabem disso, e, como tal, vão até ao fim do Secundário. “Depois, logo se vê”, atira Cristiana. Mas que nunca gostou da escola, isso não mudou. Estar fechada numa sala não é para ela. Põe-se logo a contar os minutos para sair porta fora e correr sem obstáculos ou lançar pesos para longe.

As aulas são uma obrigação, mas para levar a sério. O futuro será mais complicado se não acabarem o 12.º ano. É o que ouvem em casa. Nenhum dos pais quer a vida deles para os filhos. Todo o dia na cozinha de uma escola, como a mãe de Cristiana, ou nas limpezas da meia-noite às oito da manhã, como a mãe de Mamadú.

Nelson Sousa tem a 4.ª classe, trabalha que se farta na construção civil e só pede às filhas que estudem até ao fim. Mas não se queixa: Isabel é uma aluna “cinco estrelas”, até quando se mete em aventuras fora da escola.

Ela é uma vedeta entre os colegas. Entrou na novela da TVI “A Impostora” no papel de Muzima, uma órfã a viver num bairro pobre. Esteve em gravações todo o ano que passou e, ainda assim, manteve as boas notas. É que nem podia ser de outra maneira. Ao mínimo descuido, as filmagens seriam suspensas, dizia o contrato dela.

Isabel cumpriu o acordo à risca. Desde que a escola esteja em primeiro, pode fazer o que bem entende nos tempos livres. E tirar o curso que quiser, diz a mãe, que deixou a escola com o 6.º ano.

Segunda oportunidade
O que vão fazer depois é lá com eles. Só não vale ficar pelo caminho como Sara Ribeiro, mãe do Gabriel. Concluiu o 5.º ano e começou a trabalhar: “Decidi ajudar os meus pais, mas também não gostava da escola.” Os anos seguintes foram cheios de turnos de 12 horas em cafés e restaurantes.

Agora, com a vida mais calma, voltou à escola. Deixou-se contagiar pelo pai do Gabriel, que fez do 9.º ao 12.º de uma assentada. Ela vai pelo mesmo caminho e, quando acabar o Secundário, está a pensar em licenciar-se em serviço social: “É por a minha vida não ter sido fácil que digo ao Gabriel para não desistir, mas ele é um miúdo esperto.”

Estudar nem custa assim tanto, diz Gabriel. No Bairro do Sol Avesso, freguesia de Camarate, não há muito para fazer. O cinema mais perto fica no Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa, e à tarde só os velhotes estão pelas ruas.

Alternativas para passar o tempo? Jogar Playstation é uma opção, mas pedalar pelos montes deixou de o ser desde que deu um trambolhão e escangalhou a bicicleta ao ponto de não ter mais conserto. “Não me importo. Gosto de ficar no meu canto a estudar, a jogar e a navegar na net.”

Olhar por dentro
O bairro nem sempre é o que se deseja e Apelação, onde vive a maior parte dos miúdos desta escola, é um lugar que mete medo a quem está de fora. Talvez por isso Mamadú diga que é de Loures, para evitar julgamentos precipitados. Para quem cresceu ali dentro o ângulo é bem diferente. As casas têm a porta aberta para os vizinhos, as mães dos colegas têm o estatuto de tias e não é difícil pedir ajuda numa aflição. “É uma segunda família”, resume Cristiana.

Tem coisas más, claro, mas não é o que se pinta na televisão, avisa Ana Cristina Semedo, mãe de Tiago. Nascida e criada na Apelação, como gosta de se apresentar, lembra-se de quando vivia numa terriola cheia de hortinhas.

No fim da década de 1990 chegaram novos vizinhos e o sossego acabou. A Câmara de Loures tinha urgência em realojar os que viviam nos terrenos que, nos anos seguintes, foram ocupados pelas urbanizações da Expo 98 e pelos acessos à Ponte Vasco da Gama. Os moradores do Prior Velho e da Portela foram para a Quinta da Fonte, sem planeamento, ao molhe e afastados de tudo. Estavam reunidas as condições para as coisas descambarem. Uma parte das comunidades cigana e africana andam às turras desde o início. As confusões entraram pela escola, com brigas entre miúdos, polícia da Escola Segura dia sim, dia sim, vidros partidos, salas de aula de pernas para o ar, paredes grafitadas e por aí fora.

“As coisas estão mais calmas”, reconhece Ana Cristina. A escola da Apelação tem novas regras e um outro modelo de ensino (ver texto secundário): “O bom ambiente trouxe também mudanças no bairro.”

Antes, era impensável o filho brincar sozinho no parque. Agora Tiago faz isso todos os dias e a mãe não fica a pensar o pior. Antes, bastava ver dois ou três rapazes numa esquina para pressentir sarilhos. Agora, na maioria das vezes, são só dois ou três rapazes.

Cada cara com um nome
A escola de Apelação viveu dias complicados, mas hoje é uma segunda casa. “Aqui estão os meus amigos e conhecemos os professores e os funcionários”, frisa Cristiana. A dona Ana, a dona Antonieta ou a dona Isabel sabem os nomes de cada um dos alunos e estes sabem o nome de todas elas. Os professores conhecem os alunos quase tão bem como as famílias e isso tem tanta importância como saber ensinar: “Quando gostamos deles, fica mais difícil dececioná-los.”

E os alunos também não ficam atrás, completa Ana Custódio, mãe de Guilherme, adolescente autista a frequentar a unidade de apoio especializado da escola: “São afetuosos como em mais nenhum lugar onde estivemos.” Antes de aqui chegar, este ano letivo, teve dúvidas. “Sabia que era uma escola problemática”, mas assim que atravessou os portões pressentiu que tudo iria correr bem. Não se enganou: “O Guilherme, embora não fale, é sensível e sente-se bem, toda a gente sabe o nome dele, dão-lhe abraços, festas, beijinhos e até evitam fazer barulho no refeitório porque sabem que isso o incomoda.”

Toda essa atenção não é por acaso, avisa Ana Custódio: houve trabalho de sensibilização dos professores e dos técnicos. “Quero muito que o meu filho se sinta integrado, que não tenha de entrar num lugar e estejam todos a olhar para ele por não saberem o que fazer.” E aqui Guilherme é um aluno como os outros.

A escola de Apelação pode até ficar desterrada no cimo de um ermo e tão cedo não se livrar da má fama. Mas é a melhor recordação que Adil irá levar quando regressar a Inglaterra, para o ano, se o pai arranjar casa.

Ele aterrou nesta escola no ano letivo passado, sem conhecer ninguém e a chorar pelos cantos. Não demorou a recuperar o ânimo, passando a ser um aluno que nunca tira menos de 80% nas provas: “A disciplina mais fácil é o Português, sou sempre o primeiro a acabar o teste.”

Quando partir, já sabe que deixará a escola com o coração dividido: “Vou ver os meus amigos que ficaram lá, mas também vou deixar os amigos que fiz aqui na escola.” Se pudesse, juntava os amigos de lá e de cá e viviam felizes para sempre na Escola Básica Integrada da Apelação.