Ensinar sem ver, sem ouvir, sem andar

Texto de Sara Dias Oliveira | Fotos de Adelino Meireles/Global Imagens

“Gosto muito do que faço”

Em cima da secretária, tem um desenho com um coração às riscas, uma flor e a frase: “Olá professora Marta! Fico muito feliz em saber que vai continuar a ser minha professora.” É o primeiro dia de aulas do ano letivo e Marta Matilde, 38 anos, professora há 15, acordou às seis e meia da manhã para estar na EB1 n.º 1 da Maia pouco antes das nove. “Demoro muito tempo a chegar e moro perto da escola”, conta.

Marta é paraplégica, anda em cadeira de rodas, tem uma lesão cervical, conseguiu recuperar as funcionalidades da mão direita a 100%, agora faz fisioterapia para controlar a dor. À espera tem uma turma de 26 alunos do 3.º ano. É dia de boas-vindas, de regresso de férias, de ficha para escrever e colorir com a comida e livro favoritos, constituição da família, o que se quer ser quando se for grande.

Marta move-se pela sala numa cadeira de rodas feita à sua medida, vê cadernos, responde a perguntas, recolhe os compassos e os tubos de cola. Não é o caso, mas sempre que começa com uma nova turma deixa os alunos fazerem as perguntas que quiserem. Perguntam-lhe se dorme na cadeira de rodas, como toma banho, como se veste, como conduz.

“Estas coisas têm de ser explicadas. É muito importante. Se entenderem agora, isso vai deixar de ser um bicho-de-sete-cabeças quando forem adultos.” Responde a tudo para evitar preconceitos e mostrar que a deficiência é uma coisa normal. A escola tem elevador, a sua sala é no rés-do-chão, há lugar de estacionamento para deficientes que, no entanto, teve de ser corrigido porque não conseguia sair do carro em cadeira de rodas. Nem sempre teve estas condições, já esteve em escolas sem elevador, já deu aulas de apoio num canto de um corredor num segundo andar.

Já lhe perguntaram, várias vezes, por que não se reforma. Nem pensar. “Gosto muito do que faço e acho que faço um bom trabalho. Peço condições para trabalhar e se as tiver consigo desempenhar a minha função”, refere.

Depois de almoço, antes da aula da tarde, os professores juntam-se numa sala no primeiro piso. “Tenho muita sorte com os meus colegas”, partilha Marta. “E nós contigo”, responde-lhe um colega. São 35 horas por semana, sem redução da carga horária. Se mandasse, reduziria o número de alunos por turma, faria uns ajustes aos programas curriculares para não serem tão extensos e, no seu caso, uma coadjuvação era bem-vinda.

“Um apoio maior do que aquele que existe. Os professores acabam sempre por ter trabalho para fazer ao fim de semana.” É o que lhe acontece. “E durante a semana é puxado a nível físico.” Os dois dias de pausa também são para descansar, ver cinema, ler, ir a concertos, fazer pinturas e trabalhos manuais.

No liceu, Marta gostava de artes, pintura, e queria ser arquiteta. Não tinha média, concorreu a Engenharia Civil, enganou-se num código, foi parar a Mecânica. Um ano depois, pediu transferência para o curso de professores do 1.º e 2.º Ciclo do Ensino Básico, variante de Educação Visual e Tecnológica (EVT). “Empenhei-me e gostei de tirar o curso.” Pensava dar aulas de EVT a alunos mais velhos. “Dei aulas ao 1.º ciclo e apaixonei-me. Ensinar a ler é uma coisa inexplicável.”

É natural de Vinhais, Bragança, e no primeiro ano de serviço foi colocada numa escola da Maia, a quase 200 quilómetros de casa. O ano letivo tinha começado há pouco quando teve um acidente de viação no IP4 no regresso a casa de fim de semana com a irmã, também professora, que faleceu. Não se lembra de nada. A memória apagou-lhe todos os segundos. Esteve 11 dias em coma, um mês nos cuidados intensivos.

Quando acordou não sentia as pernas, apenas um formigueiro pelo corpo. “Pensava que tinha uma roupa muito grossa”, recorda. Seguiram-se meses de reabilitação e de fisioterapia e esteve dois anos sem dar aulas. “Eu queria trabalhar, estava a ficar doida em casa.” Concorreu a nível interno e ficou colocada na escola de Vinhais.

No ano seguinte, concorreu a nível nacional com pedido de destacamento por condição específica. No atestado da junta médica estava 80% de incapacidade, mas faltava um papel do centro de saúde de Vinhais com a indicação de que aquele era o único sítio em que podia ser tratada. O documento, então obrigatório, não foi assinado. Marta foi colocada na Maia. A mãe fez as malas para ajudar a filha e com ela veio a avó de Marta.

Alugaram uma casa sem acessibilidades para cadeira de rodas. Todos os dias, a mãe ia à escola para ajudá-la a sair de cadeira de rodas e voltava para casa de autocarro. Marta pediu destacamento três vezes. Três vezes indeferido. Desistiu. Começou a ser autónoma, a mãe e a avó voltaram para Vinhais, Marta acabou por comprar casa na Maia, onde vive sozinha. “Não dá para ir a todos os sítios. Basta um degrau de um passeio para não conseguir aceder sozinha.” Quando não consegue, pede ajuda.

“Os meus olhos têm quatro patas”

“Marco, falta janeiro”, diz a professora Carla Badalo, 45 anos, cega desde que nasceu com um glaucoma congénito por uma rubéola que a mãe apanhou no primeiro trimestre de gravidez. “Se eu sou capaz, tu também és.”

O computador parece igual aos outros, só que fala. Soletra letra a letra, ecoa palavras, e Marco Luís, 15 anos, aluno cego do 8.º ano na escola-sede do Agrupamento de Escolas Romeu Correia, em Almada, tenta colocar os meses por ordem, corrigir os erros que a professora colocou de propósito. Percorre as teclas com os dedos e escuta a voz do computador.

“A professora é muito exigente, mas fiquei muito contente quando soube que a professora era como eu”, enfatiza. Este é o segundo ano de aulas em conjunto. “A professora ensinou-me a furar e a agrafar as folhas”, relata todo satisfeito. Também lhe ensinou a contar dinheiro e a usar a máquina da escola. Parece fácil, mas não é. “Ele não aprende por imitação, ele não vê para me imitar.” E Carla é perfecionista, gosta das coisas bem feitas. Não desiste, insiste.

O dia amanheceu com sol, é a primeira semana de aulas, Carla apanhou dois comboios e um autocarro, mais de duas horas para atravessar o Tejo e chegar à escola. Saiu de casa na Tapada das Mercês, Sintra, às 7.30 horas e chegou à escola às 9.45 horas. “Vejo só claridade que, às vezes, me confunde, como as sombras que, por vezes, não sei se são um objeto. Os meus olhos têm quatro patas.” Os seus olhos são o cão-guia Heros, que a acompanha desde que acorda até que se deita e que aprendeu o caminho para a escola com a dona. Juntos vão a todo o lado: à praia, às compras, à piscina, ao café, às formações.

Durante três anos, deu aulas a turmas do ensino regular e tinha as suas estratégias com os ouvidos em alerta máximo. Raramente se sentava, fazia a chamada no início e no fim da aula, percebia quando alguém se levantava. Aluno no quadro, toda a turma de olhos abertos, e quem detetasse um erro ganhava uma bolinha verde pela atenção e que ajudava na altura da avaliação.

Escrevia no computador, imprimia em acetatos, chegou a usar fotocópias. Tinha de pedir, e por vezes pagar, a colegas para lhe lerem os testes que ia corrigindo. “Os alunos perguntavam-me coisas do teste e eu tinha de saber responder.” Agora são as escolas que têm de resolver a correção dos testes dos professores cegos.

Esteve seis anos sem dar aulas, foi formadora de informática para alunos com baixa visão e procurou trabalho na receção de supermercados ou para dar aulas a estrangeiros numa empresa, sem sucesso. Concorreu e voltou ao ensino. “Dar aulas é poder deixar um legado muito grande aos alunos que passam pelas minhas mãos de uma forma positiva. Tentar vencer, ensinar a ser autónomos”, realça. “São tantos os obstáculos que o mais fácil é não fazer as coisas. Logo aí há uma grande capacidade de resiliência”, acrescenta.

Não vê mas não é isso que lhe tolhe a energia, a vontade, os sonhos. Sabe que tem uma missão importante. “Sou uma mais-valia e um exemplo que podem seguir das minhas coisas boas.”

Carla licenciou-se em Português e Francês, especializou-se em Educação Especial, é mestre em Desenvolvimento Cognitivo e Motor, vai começar o doutoramento em outubro e tirar um curso de Inglês. É professora desde 2001, tem 12 anos de serviço, foi professora contratada até este agosto. Andou com a casa às costas quando deu aulas em Viana do Castelo e em Coimbra. “Se não concorresse a nível nacional, não ficava colocada. Somos números nos concursos. Não existe destacamento para professores que não estejam nos quadros, quer tenham ou não deficiência.”

Aprendeu sem livros e não teve dúvidas de que era possível ensinar sem ver. “Não estudei através de livros, mas por apontamentos, pelo que me ditavam.” Pelas gravações dos livros que a mãe e o pai faziam. Aluna aplicada, decorava os textos, por vezes inventava, e os professores até achavam que via alguma coisa. “Era uma miúda estudiosa, empenhada, queria aprender.”

Se não fosse professora, tinha sido juíza. Casou, divorciou-se, tem um novo companheiro há três anos. E, se mandasse, incentivava o emprego de pessoas com deficiência, melhorava as acessibilidades em vários locais, como as praias, e os sinais nas ruas seriam sonoros.

“Ser professor é poder mudar o mundo”

Quando se olha ao espelho, chama-lhe mentiroso, tenta enganá-lo. Não se vê com a imagem que lhe é devolvida. José Carlos Pires de Lima, 50 anos, tem cifoescoliose, um desvio na coluna.

Com um ano de vida, a mãe sentiu que tinha uma pequena saliência atrás do pescoço. Médicos, exames e um corpo que se foi moldando à doença até aos 20 anos. Nunca deixou que o tratassem como coitadinho.

Na primária, subia às árvores, jogava à bola, era o líder da turma. “Para sobreviver não podia ser igual aos outros, tinha de ser melhor. Não podia impor-me pela beleza, impunha-me pela inteligência.” Hoje é diretor do Agrupamento de Escolas da Abelheira, em Viana do Castelo. Tem 1 410 alunos, 156 professores, 35 assistentes operacionais e seis escolas para gerir. Neste arranque de ano, andou duas semanas seguidas em reuniões com os pais.

A deficiência não existe na sua cabeça e a cifoescoliose não atrapalha. Conduz, caminha, anda de bicicleta, gosta de olhar o mar que lhe dá tranquilidade, é voluntário numa associação que trabalha com deficientes. Convive com a doença da melhor forma e nunca sentiu discriminação nas escolas por onde passou. “Nunca tive problemas, nunca escondi o que tinha, nunca senti um tratamento desigual. Sempre me respeitaram e nunca tive problemas de indisciplina na sala de aula”, garante.

É rigoroso e exigente em toda a linha. Na primeira aula, quando tinha turmas, levava os seus dez mandamentos, as regras de conduta na sala de aula, documento da sua autoria que era assinado por si, pelo aluno e pelo encarregado de educação. “Com regras estabelecidas, sabiam com que linhas se cosiam.” O incumprimento de uma regra, como conversas laterais, poderia significar falta disciplinar.

As aulas começaram e o seu gabinete está arrumado. A escola é antiga, tem 27 anos, não tem casas de banho adaptadas, tem uma plataforma elevatória que avaria frequentemente, uma unidade de multideficiência num anexo. Há vários aspetos que mudaria se fosse ministro. A começar pela eliminação das barreiras arquitetónicas. E outras coisas. “É muito injusto que quem vem por mobilidade por doença tenha de fazer 35 horas de componente letiva.”

Pires de Lima, natural de Viana do Castelo, solteiro, não teve de andar com malas para dar aulas. “Tenho sido bastante auxiliado pelo poder divino, nunca fiquei longe de casa.” Licenciou-se em Humanidades – Português, Latim e Grego, é mestre em supervisão pedagógica e está no doutoramento em Didática das Línguas, que suspendeu.

Queria ser psicólogo, mudou de rumo. “Foi um bom acaso. Sinto-me realizado. Ser professor é um dom divino, é poder mudar o mundo.” Rege-se pelo princípio da felicidade. “Sou uma pessoa feliz e quero que os outros se sintam felizes. Esta é uma escola que respeita o outro e quero que os alunos vejam a escola como uma extensão da sua casa e da sua família. E sejam felizes.”

Sair do casulo, criar bom ambiente

Há dias, Isabel Camalhão recebeu um presente de uma aluna. Um porta-chaves com umas penas e pecinhas cor-de-rosa e um pequeno círculo de madeira com a frase: “Obrigada por me ajudares a crescer.” Tira-o da mala e mostra a prenda. Também faz poucos dias que os colegas da escola lhe deram um postal e um ramo de flores por ter concluído o doutoramento.

Isabel Camalhão, 51 anos, casada, é professora de Educação Especial na EB1 Jorge Barradas, Agrupamento de Escolas de Benfica, Lisboa. Tem paralisia cerebral que lhe afetou a parte motora e baixa visão (não vê do olho esquerdo, tem 50% de visão do olho direito).

Com 22 meses de vida, contraiu paludismo em Moçambique. Esteve em coma, sobreviveu, cresceu, reagiu, estudou, aprendeu. Esteve 15 anos no Centro de Paralisia Cerebral de Lisboa. Queria ser terapeuta ocupacional, tornou-se professora.

“Estou satisfeita, de forma alguma estou arrependida com o percurso. Ensinar é uma missão, é dar colo”, considera. Isabel não é de muitos rodeios. Os alunos podem fazer qualquer pergunta. Uma aluna de oito anos já lhe perguntou quem mandava em si. Defende transparência na relação com pais e encarregados de educação. “Não escondo nada às mães, prefiro ser verdadeira e sincera.” Ser professora é uma missão especial.

Nunca se sentiu olhada de lado nas escolas. “Os miúdos aceitaram-me lindamente.” Isabel usa óculos e move-se com facilidade. Chega à escola em 20 minutos de autocarro. Mas a vida de docente nem sempre é fácil. Há dois anos, tinha 15 alunos na Educação Especial.

Disseram-lhe que era muito para quem só via de um olho. Este ano, tem 13 alunos, autistas, com défices cognitivos, hiperatividade, síndromes diversos. Já percorreu várias escolas, andou por Chelas, Musgueira, Moscavide. Foi responsável por um jornal escolar em braille, trabalhou com crianças deficientes mentais e com trissomia 21. Efetivou em 2009, tem 30 anos de serviço e sempre concorreu para escolas ao pé de casa, em Lisboa. Se não houvesse vagas nessa zona, não concorria. “Prefiro ficar sem trabalhar”, confessa.

São anos de estudo, de dedicação académica. Acaba de concluir o doutoramento em Educação e é professora universitária convidada da Escola Superior de Educação João de Deus, Lisboa, especializou-se em Ensino Especial na área cognitiva-motora, tem o mestrado em Ciências da Educação com uma tese sobre a inserção profissional de docentes e ex-docentes portadores de deficiência.

Entrevistou 12 professores com deficiências físicas, auditivas, visuais, de todos os níveis de ensino, que partilharam histórias de vida, alegrias e dificuldades. Não se olham como deficientes, conseguem ter uma vida normal, o exercício da docência não é afetado pela deficiência, mas é preciso explicar aos alunos para que compreendam e respeitem. E reteve uma conclusão: “Depende muito da maneira como nos veem e se conseguimos criar um bom ambiente e não nos fecharmos no nosso casulo.” Como bem sabe pela experiência.

“Espero ser um modelo para os meus alunos”

Este ano, pela primeira vez na sua vida de 15 anos de docência, Alexandra Perry, 46 anos, presidente da Associação de Profissionais de Lecionação de Língua Gestual, começa o ano como professora de Língua Gestual na EB2,3 de Paranhos, do Agrupamento de Escolas Eugénio de Andrade, Porto. Era técnica, agora é professora. “Foi uma luta de muitos anos, nunca desistimos. Foi uma vitória, é difícil de acreditar”, frisa. Há dois anos, o Ministério reconheceu os técnicos de Língua Gestual como professores. Para trás, ficaram os concursos de escola, este ano foi concurso nacional. Alexandra Perry fala com as mãos e Ana Rodrigues, intérprete de Língua Gestual, torna os gestos em palavras na nossa conversa.

Tem duas turmas do 6.º ano, uma do 7.º, dez alunos surdos e ainda sensibiliza crianças ouvintes na Escola Costa Cabral para essa língua especial. Defende que a Língua Gestual devia ser uma disciplina optativa em todas as escolas, como o Alemão ou o Espanhol. E, se há um programa, devia haver materiais. “O Estado não facilita material.” Por isso, faz muitos desenhos, powerpoints e anda na luta para que um livro de Língua Gestual entre no Plano Nacional de Leitura. “Ler mais, ver mais” é o slogan da luta.

É surda desde os oito meses de vida. Apanhou sarampo, a mãe percebeu que ela não reagia aos sons. Vive na Maia e nunca teve de fazer as malas para ir dar aulas para longe, andou sempre perto de casa, por Valongo, por Gondomar. Vai de autocarro ou de metro para a escola, são 20 minutos de viagem. Nas reuniões da escola, onde dá aulas há dez anos, há sempre um intérprete. O que não acontece nas reuniões da escola do filho mais novo, de 13 anos, em que tem de levar e pagar um intérprete. Nos hospitais, filme idêntico. O marido também é surdo e transmitir o que se passa, sintomas e problemas de saúde, seus ou dos dois filhos, é uma grande complicação.

Houve um tempo em que não havia licenciaturas de Língua Gestual. Alexandra Perry licenciou-se há cinco anos na Escola Superior de Coimbra e vai seguir para a via profissionalizante que a experiência lhe permite. Como aluna, esteve sempre com colegas surdos e ia, noutros tempos, lendo os lábios e interpretando as mímicas dos professores. Adora ensinar. “Enquanto professora, espero ser um modelo para os meus alunos.” Gosta de conversar com pessoas surdas, jantar com amigos, sair à noite, desenhar.

“Quem comeu a carne, come os ossos”

Mário João Ribeiro, 57 anos, está desiludido com a evolução do sistema de ensino. “O professor é também um burro de carga, carregado com a mala, o computador, mais um trólei.” Há quatro anos que está sem componente letiva na biblioteca do Agrupamento de Escolas Soares Basto, em Oliveira de Azeméis. Por sua vontade. “Já não me arrastava, andava sempre cansado, estava numa situação de exaustão. O sistema de ensino é extremamente exigente do ponto de vista físico, não é só a carga burocrática”, comenta. Não pediu a reforma. “Quem comeu a carne, come os ossos.”

No primeiro ano de vida, sobreviveu a uma poliomielite, a uma meningite e a uma pneumonia, em Angola, onde nasceu, e as mazelas físicas ficaram-lhe para toda a vida. Anda de muletas, a sua coluna tem o desenho de um cifrão. “Andava tão carregado que, às vezes, deixava uma mala no carro e ia buscá-la num intervalo”, recorda.

Nas escolas por onde passou, os colegas compreendiam o esforço físico. Trocavam de salas para não andar a subir escadas, havia funcionários que o ajudavam a levar os materiais, em troca da declamação de um poema ou de cantarolar um fado. “Nunca meti uma cunha, nunca me vali do estatuto de coxo para ter um tratamento privilegiado”, diz o professor que queria ser médico e formou-se em Geografia em Coimbra.

Viveu numa república, teve bolsas de estudo, começou a dar aulas enquanto estudante universitário por necessidade, os pais não tinham condições financeiras. Entrou no sistema, percebeu que tinha de se desenrascar, criar materiais. Colocava-se entre duas cadeiras com as mãos apoiadas e os pés no ar para distender a coluna e aguentar mais um bocadinho. “O pior era escrever no quadro.” Fazia mapas com lãs que marcavam os paralelos, bússolas de papel, usava acetatos e fotocópias para textos longos. Sempre horário completo, sem redução da carga horária, foi professor em cursos profissionais. “Dei coisas que não lembram ao diabo.” Também há alegrias. “Orgulho-me de ter alunos em várias partes do mundo.” Alguns que lhe ligam.

Na biblioteca, orienta os alunos nas leituras e escolhas de filmes, dá dicas aos que andam no clube de xadrez, participa na organização de atividades da escola, fotografa algumas iniciativas. E vai evitando os corredores mais estreitos, usa o elevador que não está logo à entrada da escola.

Mário João vive sozinho, gosta de música, de cinema, de fotografia. É sindicalista, agora vogal no Sindicato dos Professores do Norte. Defende alguma proteção para os professores com deficiência, redução na componente letiva. “Não se pode exigir a todos a mesma coisa. Um professor de Educação Física não exige a todos que saltem o mesmo, e não vai dizer que é um mau aluno por causa disso.” Sexta-feira, 5 de outubro, é Dia Mundial do Professor. De todos os professores. Com ou sem deficiência.