Rui Cardoso Martins

Duas cabeças de boneca

João Vasco Correia

Vai pelo passeio, arrepiado com os frios de Outubro. Olha para a carrinha estacionada, que não está lá. Portanto só vê o sítio vazio, mas, quando tudo o que temos nos é levado, vemos muito bem essa ausência. A carrinha das feiras. “A sua menina” desapareceu.

Semanas depois, quando foi chamado pela polícia, no instante em que pôde olhar de novo para a menina, foi ainda pior. Tenta perdoar o mal que lhe fizeram, mas não consegue esquecer o que viu.

Antes de falar Joaquim, responde Ramiro no tribunal. Andava a tirar um curso técnico, mas, se lhe perguntarem a profissão em termos de rendimento colectável anual, a resposta certa é ladrão. Furtador qualificado. Não o deixam exercer, está na prisão de Pinheiro da Cruz.

-Várias penas. Estou com 12 anos.

A juíza pergunta-lhe se é verdade que em tal manhã de Outubro “apoderou-se de um veículo de mercadorias” de janelas e portas fechadas, contra a vontade do dono. Que lá dentro havia 150 chapéus-de-chuva, 200 pares de meias de senhora, cintas e soutiens, roupa de bebé, etc., vendendo-os a terceiros, e que não foi possível recuperar, no valor de três mil euros (fora os cinco mil euros da carrinha), e abandonando o veículo num descampado do sítio do Brejo, Albufeira. Demasiado concreto para o cérebro esponjoso de Ramiro, homem com corpo de arame cortado a alicate, comprimento de 1,80 m.

-Nessa época, eu estava agarrado à heroína e à cocaína, e injectava seconal. Não me lembro de nada. Se o fiz, peço desculpa à senhora doutora e ao tribunal.

Entra Joaquim. Fixa a nuca do homem que começou a sua destruição. O vendedor ambulante está desempregado.

-Já lá vai tanto tempo… A carrinha estava cá em baixo, à entrada do prédio. Tinha chapéus-de-chuva, tinha cintas e soutiens para senhora, tinha pacotes de meia, tinha bonecos, tinha tanta coisa de que já não me lembro… As facturas também desapareceram na carrinha.

Fora comprada em leasing, que andava a pagar.

-Estava fechadinha, claro. Foi numa noite de nevoeiro, ainda me lembro: quando de manhã chego ao sítio da carrinha, não estava lá. Olho para a carrinha e… não está lá!

-Olhou para a carrinha… olhou para o sítio!, corrige a juiza.

De repente, não podia trabalhar. Esperou. E um dia:

-Telefonaram da polícia e disseram: “É o senhor Joaquim? Olhe que a sua menina está aqui.” A minha menina era a carrinha. E eu fiquei contente.

O senhor Joaquim foi ao Algarve. Ia feliz, ia nervoso, ia o quê? A polícia avisou-o para estar preparado. Aquele era sítio de venda e consumo de drogas e a carrinha estava maltratada. Pancadas, riscos, colisões, manchas, vidros partidos, o canhão da porta rebentada. O polícia também viu pratas de chinesas de fumar estupefacientes no chão. O senhor Joaquim engole em seco.

-Desapareceu tudo. Só lá estavam duas cabeças de boneca. Duas cabeças. Eram daquelas que andavam sozinhas. E a carrinha cheirava muito mal. Perguntei: “Sabe o que andaram a fazer com a minha carrinha? E eles: “Sabe, isto é alfarroba, andaram a apanhar alfarroba com ela.” Posso fazer uma pergunta? Posso perguntar a este senhor quem é que lhe indicou a minha carrinha, para ele vir do Algarve de propósito buscá-la? Veio roubá-la de propósito!

-Se calhar ninguém indicou, se calhar passou e viu, diz a procuradora.

-Há pessoas que gostam de viajar, senhor Joaquim, diz a juíza.

O polícia testemunha por videoconferência. Sobre o ladrão:

-Na altura ele colaborou, já era por nós conhecido. Ele, na sua humildade, porque era humilde, colaborou. Até mostrou o local onde estava a carrinha, que disse que usava para o consumo de drogas pesadas.

Antes de sair, Ramiro faz uma vénia de pescoço:

-Só tenho a dizer que não me recordo de nada. Peço desculpa à senhora doutora, ao tribunal – Ramiro vira-se para trás – e ao ofendido, sei que cometi este crime. Mas não me lembro.

O senhor Joaquim lembra-se. Duas cabeças.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)