O Douro não é apenas um rio. É uma autoestrada de negócios

Os números não param de aumentar ao longo de 208 quilómetros de via navegável. Mais turistas, mais barcos, mais operadores no rio. Mais hotéis e mais movimento nas margens. O Douro continua a crescer. Com despedidas de solteiro numa ilha, uma carrinha transformada numa montra de artesanato, um talho que mata saudades, uma oficina que recupera camiões para visitas por quintas de vinhos. E o que fica no miolo das terras por onde o rio passa?

Há dias em que são precisos 20 minutos para percorrer os 600 metros da rua colada à estação ferroviária do Pinhão, no Douro Vinhateiro, rio aos pés. Os autocarros tornam a estrada mais pequena. Os turistas chegam nos barcos e no comboio. Rio acima, rio abaixo. Linha acima, linha abaixo.

No Pinhão há cada vez mais embarcações e passageiros, representando já 8% da movimentação total no rio. O Douro está na moda e há novos negócios a crescer nas margens. Os números mostram recordes de turistas, mais embarcações, mais operadores turísticos, mais unidades hoteleiras, mais visitas em quintas. No ano passado circularam no Douro 1,2 milhões de turistas, mais 35% do que em 2016.

A APDL – Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo, que gere a via navegável desde 2015, prevê mais crescimento no tráfego e que se ultrapasse a marca de 1,3 milhões de visitantes até 2019. Mas nem todas as carteiras sentem os benefícios do Douro.

Nessa rua movimentada no Pinhão, uma velha carrinha Datsun de caixa aberta é a montra de uma loja de artesanato decorada com chapéus de palha, bonés, xailes, cachecóis de Portugal, postais, pipas de vinho, cestas de vindima. Lá dentro, a caixa registadora está vazia e não falta muito para a hora de almoço. “Por dia passam aqui dez ou 12 autocarros e nem 50 cêntimos nos deixam”, desabafa Lurdes Borges, natural de Alijó, há 33 anos a viver no Pinhão, proprietária da loja de artesanato com panos de linho, malas de cortiça, ímanes de porcelana, porta-chaves feitos de cepas de vinhas. Apesar de ter mais turismo à porta, o artesanato vende cada vez menos. “O Douro traz turistas e muito boas pessoas, mas passam e acham tudo muito caro, nem um postal compram. Os benefícios do Douro são para os barcos que estragam a nossa água. Tudo bem que desenvolvem a região, mas depois há maus cheiros e, até, ratazanas.”

Percebe-se que o negócio já teve melhores dias. “Há 33 anos vendia mais. Temos de esperar. Agosto, setembro e outubro são o nosso verão.”

Na mesma rua, não muito longe dali, António José Marques não tem mãos a medir na oficina e no posto de abastecimento de combustíveis, negócios do pai. Os antigos Bedford, que no século passado eram usados nas vindimas, estão na moda. As quintas de vinhos da região andam de olho nas viaturas para as visitas turísticas. Há duas na oficina, uma azul e outra vermelha. Nos taipais serão colocadas escadas para os turistas subirem e descerem.

Nos últimos três anos, o mecânico remodelou nove Bedford, além de tratar da mecânica dos veículos que andam nas vinhas ali à volta, abastecer veículos, arranjar barcos. Há dias em que nas bombas passam 18 autocarros e seis barcos. “O Douro está a crescer todos os anos, o rio traz bastante impacto à economia, mas faltam infraestruturas e os barcos hotéis só fazem lixo”, refere.

Na outra ponta da rua, o talho Qualifer, do senhor Fernando, continua a faturar. É sexta-feira, os funcionários cortam carne, tratam das encomendas, atendem os clientes. O espaço é reduzido, o proprietário vai cortando enchidos para dar a provar, acompanhado de pão sem fermento e vinho em canecas de inox. A ideia é experimentar antes de comprar. O balcão vai-se enchendo de finos pedaços de carne seca ao sol, salpicão avermelhado “cor de batom”, chouriços.

Alexandra Azevedo, há 30 anos emigrada em Bruxelas, aproveita para matar saudades da terra através do estômago. Depois de petiscar, pede a carne que encomendou. “Isto é do melhor que há”, garante. “O Douro não traz grande coisa à terra. Os turistas vêm nos barcos e pouca coisa fazem aqui.” O talho está cheio, a azáfama é grande, o talhante continua a dar a provar fatias de peças de carne que trata com as próprias mãos. O senhor Fernando, que tem licença para fabrico de fumeiro com técnicas caseiras, vai conversando com quem entra. O talho não vive do turismo, embora o movimento e a montra com enchidos de várias espécies chamem a atenção de quem passa. “O turista de barco tem pacote, tem tudo pago”, afirma. E pouco deixa ficar em terra.

António Silva prepara-se para mais um dia de trabalho num dos barcos da Magnífico Douro, que opera no rio com passeios em rabelos, lanchas, caiaques. A procura tem aumentado no Pinhão e António, licenciado em Gestão Turística e que já trabalhou em Londres, receia que o Douro perca a sua essência. “Com a massificação pode desvirtuar-se. Aqui aceitam tudo, operadores australianos, operadores franceses. E há os problemas do saneamento por resolver, não há separadores de lixos. O Douro não pode ter lixo nas margens”, refere, antes de partir para mais um dia no rio.

Do outro lado, na encosta da margem esquerda, Álvaro Martinho, agrónomo responsável pela Quinta das Carvalhas, em Ervedosa do Douro, concelho de São João da Pesqueira, explica a alma do Douro com o coração nas mãos. A “tour vintage” demora três horas, custa 90 euros por pessoa e não há adega para mostrar. É tudo ao ar livre, até a prova de vinhos com enchidos e queijos, efetuada no alto da encosta. O engenheiro agrónomo, duriense de corpo e alma, faz desenhos na estrada, mostra mapas do antes e do depois, dá plantas a provar que sabem a limão, traz cebolinho e orégãos do meio do mato, puxa pelo cheiro da alfazema, explica as vinhas e as castas, fala dos vinhos produzidos ali, termina a conversa com um cálice de vinho do Porto. Em 2017, guiou 350 visitas “tour vintage”, além de outras propostas que a quinta organiza, como caminhadas. E só aqui a faturação rondou os 450 mil euros. “Esta é a região mais original do mundo, tem uma aptidão turística impressionante”, afirma.

Se os turistas não saem dos barcos, então é preciso atraí-los. É assim que pensa. “O Douro traz centenas de milhares de pessoas. Temos de motivá-las a saírem cá para fora, mostrar-lhes que há alternativas para que saiam do rio.” Provar que o Douro é uma dádiva da natureza. “Não quero que se transforme numa região de multidões. O Douro precisa de coisas diferentes, seletivas.”

Álvaro Martinho é responsável por uma “revolução silenciosa”, como lhe chama. Uma revolução no Douro, para avisar que ali se pode vender natureza, paisagem, emoção. Requalificou a mão-de-obra, homens e mulheres com o mesmo salário, gente mais jovem e motivada a trabalhar nas vinhas. Aplicou a viticultura inteligente, sinónimo de menos esforço, menos agricultura pesada, mais cabeça, mais trabalho de dedos e habilidade. Com mais biodiversidade e mais ecologia, o uso de pesticidas caiu 70%. E vaidade, muita vaidade. Orgulho no Douro. “A quinta é bonita, a região é bonita, por que não hei de reparar um jardim ou um recanto?”. O agrónomo que nasceu em Covas do Douro e só aos 13 anos viu uma cidade (Peso da Régua; passou duas tardes a andar de elevador) fala de uma região abençoada pelo clima, pelo solo, pelas pessoas. “Pessoas que estão casadas com a natureza, que sabem esperar. Se o vinho é um luxo, vamos tratá-lo como tal.” E remata: “O Douro está condenado a ser muito bom.”

O corre-corre à volta do rio

José Teixeira, 65 anos, lançou o isco ao rio junto ao Cais do Castelo, em Fornos, Castelo de Paiva. Há patos na água junto à margem, passam grandes barcos de vez em quando, do lado direito fica a Ilha dos Amores, comprada pela Câmara no século passado, com ruínas de uma capela e de um castelo, e onde o Paiva se encontra com o Douro. Dali a pouco sai uma tainha, serão três naquela manhã. É uma maneira de passar o tempo com olhos num rio que vai dando carpas, lúcios, pargos, percas.

O frenesim que ali acontece não lhe passa ao lado: tem família que aluga caiaques. “Começaram muitas atividades. Pranchas, caiaques, barcos para levar turistas à ilha”, comenta. O irmão Eduardo Teixeira, três anos mais velho, ainda se lembra de ir com o pai vender na Ribeira do Porto, num barco rabelo cheio de galinhas, ovos, frutas, pipas de vinho. “Íamos à sexta à noite, às três, quatro da manhã, e vendia-se o que se levava. Agora os barcos rabelos andam a passear turistas, sempre a passear, não param”, diz. “Há muita gente à procura de casas antigas para comprar”, acrescenta. O irmão prepara mais um isco, sem pressas. O corre-corre à volta do Douro não o afeta tanto assim. “É um rio que não há igual. Os turistas passam e os manda-chuvas é que deviam aproveitar as coisas.”

Ali perto, na estrada que desce para o cais, há um tanque com água de mina. Rosalina Rosa Monteiro, 67 anos, esfrega a roupa na pedra. A cunhada Maria Pereira Monteiro, 74 anos, passa e fica na conversa. Das janelas de casa avista o Douro. “Estou na cozinha e vejo tudo. Passam de barco, vão com música, a cantar, é muito bonito.” Naquela noite, Maria imaginou os tempos de menina, quando enchia baldes de areia para os barcos e ainda era possível chegar à Ilha dos Amores a pé. “Sonhei que estava na praia, ia buscar areia, fui a nado – veja lá, a nado – e vim de barco”, conta a rir-se.

Os tempos são outros e na rua estreita ao lado do tanque, que dá para o rio, há muito movimento no verão, nas férias, aos fins de semana, na altura das visitas dos emigrantes. “É muita gente, muita gente. Antigamente era muito bonito, agora também é”, atira Rosalina. O turismo do Douro não afeta estas mulheres, embora haja mais carros nas estradas e mais gente que não vive na terra. “Não me faz diferença. Antigamente púnhamos a roupa a corar junto ao rio, íamos de barco até ao Porto e cantávamos muito”, recorda Rosalina.

No início de julho, Rita Tamegão abriu o Bar do Rio, no Cais do Castelo, ao lado das Piscinas Municipais de Castelo de Paiva, depois de ter ganho a concessão do espaço por três anos. Remodelou a casa com vista para o Douro, apostou numa decoração moderna, montou uma esplanada abrigada do sol, serve petiscos, sandes, rojões, enchidos, vinho a copo, compotas locais. Há um ano, transformou a casa de férias da família, comprada há 27 anos, no hostel Out of Town, para dez pessoas, ali perto, a dois quilómetros do rio, bastante procurado por holandeses, nórdicos, franceses. E investiu num negócio de atividades no rio com ski aquático, boias, wakeboard, canoagem, passeios de barco, despedidas de solteiro na Ilha dos Amores com atividades náuticas e comida, e programas de “team building”.

É um negócio de família a várias mãos, do irmão Filipe e da mãe Maria Manuel, professora de Educação Física, que dá uma ajuda nos tempos livres. Rita, formada em Gestão Hoteleira e mestre em Gestão, lança-se nesta aventura de cabeça erguida. “Tem tudo para correr bem. O Douro está muito descoberto acima da Régua e mais perto do Porto fica mais esquecido. Este ano, nota-se mais movimento junto ao rio e restauram-se casas antigas para alojamento local.” Habituada a velejar desde miúda, Maria Manuel gosta da paisagem do Douro, da tranquilidade. “Há oportunidades de trabalho e desenvolvimento pelo turismo. O potencial é muito grande.” Mas, apesar da procura, espera que o crescimento seja sustentável.

No início de agosto, Castelo de Paiva vai inaugurar o primeiro troço de um trilho junto ao rio, que terá dez quilómetros entre Pedorido e Sardoura. O presidente da Câmara, Gonçalo Rocha, fala em mais procura e em mais dinâmica junto ao rio. Daí mais investimento nas zonas ribeirinhas, outrora de grande faina e de exploração de areias antes da construção das barragens. “Há uma nova vaga mais ligada à parte do turismo, um interesse em criar destinos em Castelo de Paiva.

“Viver junto ao Douro está a despertar muito interesse das pessoas”, sublinha o autarca. Mesmo com as más recordações que o Douro carrega e uma ferida que nunca há de fechar depois das vidas arrastadas pela queda da ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, em 2001. “Continua a perdurar essa memória, essa tristeza, essa saudade. As marcas estão cá, é um momento triste que estará sempre associado ao concelho. Mas sabemos que a vida tem de prosseguir.”

A procura é muito bem-vinda

Todos os anos, por Figueira de Castelo Rodrigo, distrito da Guarda, perto de Espanha, passam 120 mil turistas pelo rio. Há pequenas lojas que vão vendendo amêndoas e artesanato e a autarquia pondera investir num novo cais, até porque há dias em que chegam a estar atracados oito operadores. A adega cooperativa já faz provas de vinhos. Mas o reflexo do turismo é discreto. Henrique Silva, vereador da Cultura, queria mais. Mais negócios, mais impacto na economia local. “Poucos consomem na aldeia, os que vêm de barco não dormem cá. Mas os turistas acabam por voltar por outras vias e, então, consomem sempre alguma coisa.”

Mário Ferreira é um dos maiores investidores nesta zona. A sua empresa Douro Azul surgiu há 25 anos e tem agora 20 embarcações no rio, entre barcos rabelos, navios hotéis e iates. O negócio não para de crescer. Mais turistas, sobretudo americanos, ingleses e alemães. E mais faturação: em 2017 foram 31 milhões de euros só na região, este ano chegará aos 41 milhões, para 2019 estimam-se 51 milhões.

O destino não surge por acaso: raízes familiares no Douro e experiência de cruzeiros à volta do mundo durante cinco anos. “Senti que havia uma oportunidade de negócio e juntei o útil ao agradável”, conta Mário Ferreira. O crescimento também não aparece do céu. “Temos feito ações de venda e promoção muito grandes ao longo dos anos e isso faz a diferença”, sublinha.

“O Douro é um rio muito interessante, como são outros rios europeus. Tem muito charme e muita atratividade.” Mas também tem fragilidades. Mário Ferreira refere-se às docas e ao comércio: “As populações locais não estão muito preparadas para receber e vender aos turistas que chegam. Levamos os clientes, mas depende da criatividade dos agentes locais conseguirem aproveitar essas gentes.” O empresário já se habituou às críticas dos navios que passam e não param, do lixo que se acumula por onde os barcos atracam – e que justifica com a recolha que não é feita, sobretudo ao fim de semana. “É a história do ovo e da galinha. Há presidentes de câmara que se queixam e há os que não se queixam. Há regiões com património e há regiões sem património. Não podemos inventar. Temos um turismo cultural e isso requer que os sítios tenham determinadas características de excelência.”

O chef Rui Paula possui raízes no Douro. Teve o Cepa Torta, em Alijó, chegou a gerir uma empresa de barcos no rio, com cinco embarcações, e nessas viagens ficava de olho em Armamar, na margem esquerda do Douro, junto à EN-222. Conseguiu o espaço e em 2007 abriu o DOC, apesar dos avisos que não resultaria. Sabia que era arriscado mas sempre acreditou que o seu DOC daria que falar. E deu. “Claro que valeu a pena.” Dois anos depois, o restaurante era conhecido cá e lá fora. Dos três que tem é o que recebe mais portugueses. Os estrangeiros chegam de todo o lado em carros alugados, não de barco.

“Achei o local maravilhoso. Na altura não havia restaurantes com serviço de qualidade”, lembra. Entretanto, Rui Paula deixou o negócio dos barcos. “Não sei tocar várias teclas ao mesmo tempo. Cada negócio no seu negócio.” O turismo no Douro cresce e, em seu entender, de forma sustentada: “O turista que vem é um turista de qualidade, que vem ver as vistas e provar vinho. O Douro é uma coisa maravilhosa, tem uma paisagem única no mundo, além de um vinho também único”, comenta. O chef não fica incomodado com os barcos que passam à frente do seu restaurante. Tudo o que coloque a região no mapa é bem-vindo.

Há um ano, no Cais do Torrão, Paula abriu o restaurante 2Rios, na extremidade do concelho de Marco de Canaveses, com bar, esplanada e piscina. O aumento do turismo foi um dos pretextos para investir naquele pedaço de terra com o Douro a perder de vista e o Tâmega ao lado. “Está a correr muito bem. A vista é ótima. E o espaço, modéstia à parte, está bem conseguido”, refere o gerente, Tiago Pinto. Os visitantes são sobretudo ingleses, franceses, americanos, australianos. “Os barcos ajudam muito. As pessoas passeiam neles e ficam com curiosidade em conhecer o interior do Douro. A promoção que se faz atualmente à região é muito bem feita. Isto é um cantinho no meio do nada a nível mundial, mas muito procurado. E a procura é muito bem-vinda”, acrescenta.

Não é só a restauração que cresce. A oferta hoteleira no Douro Vinhateiro também aumenta. Esticou 76,19% entre 2008 e 2017, passando de 21 para 31 unidades. No turismo em espaço rural, o aumento foi de 47,83%, de 69 para 102 unidades. Há dez anos, o parque hoteleiro tinha sobretudo pensões de segunda e terceira categoria, e havia apenas uma unidade de cinco estrelas. Uma década mais tarde, os estabelecimentos de categoria superior dominam.

Luís Filipe Soares, mestre em Gestão Hoteleira, trabalha há cinco meses no Six Senses Douro Valley, uma quinta do século XIX em Samodães, Lamego. Hotel cinco estrelas com vista para o Douro, 50 quartos, sete vilas, onde uma noite pode custar 600 euros. Americanos, brasileiros e britânicos são clientes regulares. “O Douro está na moda para pessoas com opções.”Na moda ou fora dela, com mais ou menos opções, o Douro é mais do que um rio. E não para de explorar a veia negocial”.