Crohn e colite ulcerosa: viver com doenças crónicas

Notícias Magazine

Texto de Cláudia Pinto | Fotografia de Gerardo Santos/Global Imagens

Em julho do ano passado, Andreia Lima foi internada no Hospital Garcia de Orta, em Almada, onde passou o verão, o aniversário, o Natal, a passagem de ano e o Carnaval. Em janeiro foi transferida para o Hospital Nossa Senhora da Arrábida, em Azeitão, para fazer fisioterapia, recuperar peso e massa muscular. Teve alta no final de fevereiro. Depois de sete meses de internamento e seis cirurgias. Andreia tem 24 anos. Apenas 24 anos. E uma doença crónica que lhe vai condicionar todos os dias até ao fim da vida.

O diagnóstico chegou há cinco anos: colite ulcerosa, uma patologia que juntamente com a doença de Crohn se inclui no espetro das doenças inflamatórias do intestino (DII). Andreia trabalhou em restauração, tomou conta de crianças e ainda experimentou a área comercial. Em tudo o que fez, uma coisa em comum: foi preciso conciliar o trabalho com cansaço extremo, anemia, perda de peso, diarreias constantes, sangue nas fezes, alguns dos sintomas da doença.

Nos dois meses antes de ser internada, ficou com os dias condicionados. «Já não saía de casa, era totalmente dependente do WC, ao qual ia mais de 20 vezes por dia.» Um jantar com amigos ou uma ida ao shopping passaram a ser uma miragem ou um autêntico desafio.

Vera Gomes também conhece bem os contornos da colite ulcerosa, diagnosticada há dez anos. Antes de confirmarem o que tinha, passou por sintomas diversos, mas o que desencadeou uma investigação mais séria foi a necessidade de ir três vezes a uma urgência hospitalar e, na última, apresentar três infeções em simultâneo (uma urinária, outra na garganta e uma reação alérgica na pele). «Há doentes que demoram anos a ter um diagnóstico, mas no meu caso foi relativamente rápido.» Teve sorte.

As doenças inflamatórias do intestino afetam homens e mulheres e não há prevenção possível.

A última crise, a mais grave, começou em 2015, quando já vivia em Bruxelas, onde trabalha como analista política numa instituição europeia. Esteve cinco meses de baixa. «Perdi quase dez quilos em duas semanas, não conseguia dormir mais de meia hora sem ir à casa de banho, adormecia durante a hora de almoço com a cabeça na secretária para conseguir aguentar a tarde e cheguei a tirar férias para recuperar. Cheguei a usar fraldas para sair de casa.»

Vera, 37 anos, habituou-se ao kit de emergência, que inclui cuecas, toalhitas, fraldas e papel higiénico, essenciais para doentes que têm de usar casas de banho públicas com regularidade e em emergência – a criação de um cartão de acesso prioritário a WC fora de casa é, aliás, uma das reivindicações que Vera incluiu numa petição que criou (ver caixa) para levar a melhoria das condições de vida dos pacientes de DII a discussão na Assembleia da República.

Uma das reivindicações da petição é um cartão, com validade legal, de acesso prioritário a casas de banho públicas, à semelhança do que se faz noutros países (à esquerda). O cartão existente em Portugal (à direita) é insuficiente.

Além de todas as condicionantes físicas, a doença tem, naturalmente, forte impacto na vida pessoal e sexual. Uma das piores crises de Vera começou precisamente no primeiro fim de semana que passou com o namorado, Geert, que já se habituou a vê-la dormir. «Eu adormeço frequentemente no carro, no cinema, no sofá, a ver um filme. Ele já viu “o pior” desta doença e tem sido um grande apoio.»

As DII entram na categoria das doenças autoimunes. Ocorrem quando o sistema imunológico ataca, por engano, os tecidos e as células saudáveis do corpo. Uma vez diagnosticadas, são crónicas porque ainda não é conhecida cura.

«Caraterizam-se pela inflamação crónica do intestino, mas são também doenças sistémicas, ou seja, afetam todo o organismo», explica a gastrenterologista Paula Peixe, assistente graduada hospitalar do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental e membro da comissão científica do Grupo de Estudo da Doença Inflamatória Intestinal.

Apesar de poder ser diagnosticada em qualquer idade, existem dois picos de probabilidade: entre os 15 e os 30 anos e já depois dos 70. As DII afetam homens e mulheres e não há prevenção possível. «Infelizmente, não existem estratégias preventivas destas doenças», diz a médica.

Apesar de poderem ser diagnosticadas em qualquer idade, existem dois picos de probabilidade de DII: entre os 15 e os 30 anos e já depois dos 70.

Foi aos 17 anos que Pedro Alves recebeu o diagnóstico de Crohn, apesar de ter escondido os primeiros sintomas dos pais, movido pela inconsciência própria da idade. «Sentia vergonha.» Quando finalmente lhes contou, procuraram ajuda médica e Pedro foi submetido a vários exames, como análises de sangue, endoscopia e colonoscopia – exames que passam a ser rotina para estes doentes.

Hoje com 41 anos, lembra-se bem das palavras da médica quando foram conhecidos os resultados. «Disse-me que seria para o resto da vida e que não tinha cura, mas que se fosse devidamente acompanhado e tivesse os cuidados necessários, conseguiria fazer uma vida próxima do normal.»

No começo, foi difícil aceitar, sobretudo pelas restrições nas saídas com amigos e pelas mudanças necessárias a nível alimentar. Estes doentes passam a ter algumas exigências nutricionais, uma vez que, em períodos de crise, alguns alimentos são menos toleráveis.

Em 2005 teve a maior crise, com uma perfuração do intestino que pôs em risco a sua vida. Foi operado para lhe retirarem vinte centímetros do intestino, esteve internado durante um mês, com mais quatro de baixa.

Pedro trabalha na área de informática e contabilidade e contou sempre com o apoio da empresa, mas nem todos têm essa sorte. Andreia sentiu na pele a dificuldade de encontrar trabalho devido à colite ulcerosa. «Cheguei a ser recusada em candidaturas de emprego quando dizia o que tinha», conta.

Num dos últimos trabalhos, numa pastelaria em Lisboa, acabou por ver vedada a renovação de contrato, por ter tido uma crise durante o horário de expediente, o que a levou a sair de ambulância para o hospital.

Pedro está em remissão (com a doença inativa) há dois anos. «Na última consulta, o médico disse-me que “o Crohn estava adormecido”. Neste momento, estou a fazer medicação diária e a ir a consultas de vigilância.» Mas nem sempre foi assim.

Numa fase em que se sentia melhor, deixou de ter acompanhamento médico por sua iniciativa, e comprava medicamentos diretamente na farmácia, suportando o valor (a medicação para estes doentes é parcialmente ou totalmente comparticipada mediante prescrição médica com referência legal para o efeito). Como resultado, a dose de medicação que estava a tomar já não era a recomendada e estava desajustada das necessidades, o que lhe valeu uma crise maior com uma grande inflamação no intestino, que o obrigou a novo internamento, no Hospital de São João, no Porto, onde é seguido. «Não recomendo a ninguém, aprendi a lição. Atualmente, tenho consultas de seis em seis meses, mas sou mais cuidadoso e não falho.»

Muitos doentes precisam de apoio psicológico para aguentar as sequelas que uma condição destas implica. «Uma doença crónica é demasiado longa e pesada para carregarmos sozinhos durante tanto tempo», diz o psicólogo Jorge Ascenção.

Apesar de ter períodos incapacitantes, a doença não o condiciona na prática de desporto. Corre três vezes por semana no Porto, onde vive, e faz ciclismo, sempre que pode. Chega a participar em algumas maratonas. «Nunca desisti de nenhuma prova apesar da vontade de ir à casa de banho. Já cheguei a sair de um trilho e procurar um sítio para fazer as necessidades. Ando sempre com papel higiénico na mochila.»

Maria Queirós, de 16 anos, estudante e atleta de alta competição, teve de se adaptar a viver com a doença e a conciliar a escola e os treinos diários de duas horas e meia de natação no Complexo Desportivo Colégio de Lamas, em Santa Maria da Feira.

Desde 2015, Maria teve várias gastroenterites, náuseas e fortes dores abdominais, que a obrigavam a ir várias vezes ao hospital. «Desconfiavam de apendicite», explica. No final do ano passado, foi o sangue e o muco nas fezes que a alarmou. Falou com os pais e, após a realização de alguns exames, ficaram a conhecer o diagnóstico: colite ulcerosa.

Maria pratica natação desde os 6 meses, mas está em competição há oito anos. Em dezembro, mesmo com todos estes sintomas, optou por participar numa prova nacional, em Leiria. «Sentia-me cansada mas fiz várias provas e nadei várias vezes. Sei que vou ter esta doença toda a vida e tenho de me adaptar.»

Também os treinos se ressentiram. «Não consigo treinar tanto como antes, mas esforço-me para que tudo corra normalmente.» Neste momento, Maria está a tentar melhorar os valores mínimos para conseguir ser apurada para o campeonato nacional que se realiza no final de março, na Madeira. Mas sabe que não está na sua melhor forma. «Não sei se vou conseguir, mas se melhorar os meus tempos, já será positivo.» O treinador criou um treino adaptado para que a jovem conseguisse conciliar a doença com as atividades.

Na escola, a diretora de turma e alguns professores estão avisados da doença. Estudante do 10º ano, habitualmente boa aluna, baixou as notas no período coincidente com as idas ao hospital.

Apesar de ter consciência de que a doença a tem prejudicado a nível escolar e também na evolução da natação, recusa-se a dar-lhe tréguas. «Quando a minha professora falou comigo disse-lhe que isto não poderia servir de desculpa. Se me entregar à doença, não consigo fazer nada na vida. Não quero fazer disto um drama», defende.

Alguns doentes têm necessidade de dar um sentido à doença. Andreia criou um blogue durante os meses de internamento. Vera lançou uma petição para melhorar as condições de vida de quem sofre de DII. Pedro tornou-se voluntário da APDI.

«A DII implica perda significativa de qualidade de vida com impacto em parâmetros como a mobilidade e a realização das atividades da vida diária ou a higiene, com a presença de dor, ansiedade e depressão», diz a gastrenterologista Paula Peixe. «Além de perda de anos escolares, perda de emprego e redução do acesso ao trabalho.»

Não é de estranhar, por isso, que muitos doentes precisem de apoio psicológico para aguentar todas as sequelas que uma condição destas implica. «Como viver se não sabemos se vamos ter uma ou dez crises neste ano ou nos próximos?», pergunta Jorge Ascenção, psicólogo da Associação Portuguesa da Doença Inflamatória do Intestino (APDI).

«Vivendo um dia, um mês, um ano de cada vez, aprendendo as regras da sua doença, diferente da doença do próximo, e tentando tornar-se perito nesse novo jogo que a doença trouxe para a sua vida. Uma doença crónica é demasiado longa e demasiado pesada para carregarmos sozinhos durante tanto tempo.

O trabalho do psicólogo nestas áreas é muito vasto, abrangendo desde as relações interpessoais à comunicação entre elas, o conhecimento da doença, a gestão do stress relacionado com a mesma, o ajuste dos pensamentos da pessoa acerca de si mesma, a superação dos desafios que surgem, as estratégias de resolução de problemas, etc.»

A APDI disponibiliza para os seus cerca de 2500 associados consultas de psicologia no Porto e em Lisboa, com custos ajustados à realidade de cada doente. A instituição disponibiliza ainda consultas gratuitas de nutrição. «Neste ano, temos previstas duas ações de sensibilização, em Portimão e em Vila Real», diz a presidente da direção, Ana Sampaio. «O que tentamos transmitir aos doentes é que não se devem deixar condicionar pela doença, que devem sonhar e ter projetos de vida, como qualquer outra pessoa.»

Alguns doentes acabam por ter a necessidade de dar um sentido à doença. Pedro Alves tornou-se voluntário da APDI há dois anos e acabou por perceber que era positivo «lidar com outros doentes e partilhar a mesma linguagem, além de sentir que é possível ajudar alguém». Andreia Lima criou um blogue durante o internamento – umabarrigarenovada.blogspot.pt – e Vera Gomes começou por desmistificar a colite ulcerosa no blogue escadinhas.blogs.sapo.pt, tendo lançado recentemente uma petição (ver caixa), em conjunto com uma doente de Crohn Ângela Vilas Boas Silva, com o objetivo de melhorar as condições de vida dos doentes de DII, e que será entregue na Assembleia da República ainda neste mês.

As duas faziam já parte de um grupo privado no Facebook para que doentes e os familiares pudessem esclarecer dúvidas e apoiar-se mutuamente. «A certa altura, pensei que isto não podia ser só mau e que tinha de aproveitar a doença para fazer algo útil e com impacto na vida dos doentes», diz Vera, que veio propositadamente a Portugal no início de março para reunir-se com os grupos parlamentares de PS, PSD, BE e PCP e apresentar as propostas da petição.

Andreia saiu do hospital no final de fevereiro, depois de sete meses de internamento nos quais foi operada seis vezes e submetida a uma protocolectomia total, que implicou retirar o cólon, o reto e parte do intestino delgado, e passar a viver com um saco externo em definitivo, onde são recolhidas as fezes.

«Esta não era a opção que os médicos queriam, mas eu sugeri que assim fosse. Já não agentava mais.» Para ela, o saco é positivo. «É uma nova vida, muito melhor. Já vou poder sair normalmente e estar num shopping sem ter de andar à procura de uma casa de banho. É uma liberdade que não sei explicar. Eu não escolhi ter a doença, mas posso escolher o que fazer com ela.»

Uma petição para melhorar as condições de vida

A petição lançada por Vera Gomes e Ângela Vilas Boas Silva contava, à data de fecho desta edição, com mais de 5500 assinaturas. Estas são algumas das pretensões:

  • Isenção de taxas moderadoras para os doentes (uma vez que as deslocações ao hospital são regulares)
  • A inclusão das DII na lista de doenças incapacitantes do despacho conjunto dos ministérios das Finanças e da Saúde, que data de 1989 e não voltou a ser atualizada (o que implica que os doentes tenham direito a prazos mais alargados de baixa por doença ou que não sejam colocados a trabalhar noutra zona do país, longe da rede familiar e do hospital onde são seguidos).
  • A criação de um cartão de acesso prioritário a WC, já disponível em alguns estados dos EUA, e que pode ajudar a resolver situações de emergência dos doentes.

«É necessária força legal para que este cartão possa garantir a possibilidade de acesso prioritário a casas de banho públicas ou de lojas / espaços comerciais, passando a ser distribuído a todos os doentes, podendo ser inclusive fornecido pelo serviço de gastrenterologia onde são seguidos», diz Vera Gomes.

Os atuais cartões de associados da APDI contêm uma mensagem que alerta para a doença e para a necessidade urgente de utilização de uma casa de banho, mas não têm validade legal.

A petição, que conta com o apoio da APDI, pode ser assinada em peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT88014

—————-
Leia AQUI a entrevista a Jorge Ascenção, psicólogo da Associação Portuguesa da Doença Inflamatória do Intestino (APDI).