Desalento sobre carris: «O meu pai só não quer é dar trabalho»

Notícias Magazine

A voz saiu das colunas com um tom roufenho. «Senhores passageiros, por motivos de ordem técnica esta composição sairá da estação de Porto‑Campanhã com alguns minutos de atraso. Pedimos o favor de permanecerem nos vossos lugares.»

Há mais de dez minutos que devíamos estar a andar, mas os «motivos de ordem técnica» mantinham‑nos ali. Uns sentados, outros em pé, havia quem fumasse um cigarro de última hora, pronto a atirar a beata para o chão da gare em caso de arranque do comboio.

Nada sabemos sobre os vizinhos de uma carruagem, companheiros de circunstância num espaço fechado sobre rodas que partilhamos durante algumas horas. Sabemos só o que imaginamos a partir da roupa que vestem, da hora a que viajam ou das conversas que lhes ouvimos ao telefone. E isso pode estar totalmente errado. Quem vê caras e ouve vozes não vê corações ou adivinha vidas.

Mas não no caso daquele homem. O passageiro da frente, de quem via apenas a extremidade da cabeça e uns cabelos brancos, falava há largos minutos ao telefone. Mesmo que eu não quisesse, as frases que lhe saíam da boca e as que suponho que lhe entravam pelo ouvido permitiam‑me fazer um filme. E o filme daquele homem não o deixava feliz. Falava com alguém sobre um lar que tinha ido visitar para o pai. E sobre o pai, com quem tinha estado pouco antes de embarcar num comboio atrasado.

Quando o Intercidades que devia ter saído de Campanhã às 19h52 finalmente arrancou, quase meia hora depois do previsto, eu já sabia, depois de vários telefonemas que o meu vizinho tinha atendido, que ele tinha encontrado o pai «magro, frágil, meio desorientado». Que o senhor tem dificuldade em comer e que precisa de ajuda para a higiene. Que as funcionárias do lar têm muita paciência para ele, mas que «não deve ser fácil». Não falava alto, o tom não era de pesar, a voz não revelava grandes estados de alma. Apenas cansaço. E frustração. Suponho que era frustração. Ou talvez fosse desalento.

Quando chegámos a Espinho, desligou uma das chamadas e ficou ali em silêncio, creio que aliviado por o telemóvel lhe dar tréguas e poder parar de dizer o que já tinha repetido em vários telefonemas. E que ainda diria noutros.

Em Coimbra fiquei a saber que já havia visitado alguns lares, «uns melhores, outros piores, uns mais caros, outros uma miséria». Que não tinha ordenado para pagar um sozinho, precisava de um que «seja comparticipado pela Segurança Social», que os irmãos tinham ainda menos dinheiro do que ele e que não podia contar com grande ajuda.

Não sei se já estaríamos no Entroncamento ou seria ainda Pombal quando o ouvi dizer que para o pai tanto faz. Que tanto pode estar em Gaia ou em Lisboa – perto do filho, como este lhe tinha sugerido. «O que eu achar melhor, o que for melhor para mim.»

E pela primeira vez naquele embalar de carris, naquela carruagem de pessoas que não se conhecem mas tentam adivinhar coisas da vida dos companheiros de circunstância, ouvi a voz do meu vizinho tremer. Tinha perguntado ao pai se queria ir para um lar junto dele, para estarem mais perto, para evitar viagens para cima e para baixo, para se verem mais vezes. E o senhor tinha‑lhe dito que escolhesse «o que fosse melhor». O que desse menos trabalho, menos cuidados. «O meu pai só não quer é dar trabalho.»

Não sei nada da vida do vizinho da frente, só lhe vi a cara quando cheguei a Lisboa e não saberia reconhecê‑lo se o visse novamente. Talvez se o ouvisse. E aquela voz vai ficar‑me nos ouvidos e na cabeça. E a mão que não consegui colocar‑lhe no ombro, o abraço que não tive descaramento para lhe perguntar se ele precisava, os ouvidos de carne e osso que não soube oferecer‑lhe para o ouvir, se ele precisasse… esses vão ficar‑me atravessados.