Cruzar o Atlântico buscando raízes

Artur Machado/Global Imagens

Texto de Filomena Abreu

Foi uma tragédia. Um homem morreu. A mulher dele, Ana de Jesus, grávida, escapou ilesa. Mas teve de ser arrancada dos escombros. Estava no fim do tempo. O bebé sobreviveu. Um milagre. Uma outra pessoa também foi retirada dos destroços. Estava viva, mas ferida. A explosão mandou duas casas pelos ares antes de embrulhar a pequena aldeia de Cabril num denso manto de fumo. Foi em 1911. A notícia chegou ao Brasil e fez António Duarte voltar para casa. De barco. Demorou. Falhou o enterro do irmão mas ainda veio cuidar da mulher, Emília de Jesus, internada no hospital de Viseu, onde ficou nove meses a curar as muitas cicatrizes que o acidente lhe deixou. Uma delas abriu-lhe uma fenda no nariz, que subia pela testa, passava pelo cocuruto e terminava na nuca. António, conhecido por Fogueteiro, trabalhava com fogo-de-artifício antes de cruzar o Atlântico. Quanto partiu, em busca de melhores condições de vida, deixou o negócio ao irmão. Naquele dia, que já ninguém sabe quando foi, algo fez rebentar a pólvora guardada na arrecadação. E aconteceu o acidente.

Meses depois, já com as casas compostas e Emília de Jesus no lar, António voltou ao Brasil. Mas antes, engravidou a mulher do terceiro filho. Palmira só viria a conhecer o pai dez anos depois, quando António Fogueteiro pisou Cabril pela última vez, em 1922, para levar consigo a família para o outro lado do mar. Cristina Viegas, nascida no Rio de Janeiro, fantasiou com as personagens desta trama durante 31 anos. Contou-lha a avó, também Emília, que por sua vez a ouviu da sua mãe, Palmira, a semente que o Fogueteiro plantou na mulher após o desastre.

Ano de 2018. Quatro meses depois de ter chegado a Portugal, Cristina está a caminho de Cabril. Ansiosa. De telemóvel na mão. Lê em voz alta a mensagem que a avó Emília lhe escreveu no WhatsApp. “Ela diz que antes de a mãe mudar para a casa que explodiu morava na casa da Quelha. Que era em pedra, como as outras.” Lá na terra, todos sabem apontar para essa primeira morada, hoje em ruínas. E a história da forte explosão ainda arde por ali, apesar de nenhum dos habitantes a ter presenciado.

Adelaide de Jesus, 77 anos, desbobina as memórias que lhe vêm da mãe. Contente por falar com uma parente desconhecida. “Antigamente iam muitos para o Brasil. Partiam por carta de chamada. Primeiro, os maridos. Depois, as mulheres e filhos. Mas agora têm voltado. Aqui há atrasado estiveram cá umas meninas à procura dos seus. Também tinham uma fala meiguinha”, disse, e as mãos já lhe iam a fugir para afagar o rosto de Cristina. Mais um beijo antes do “gostei muito de a conhecer” e os braços tardam nos da “brasileirinha linda”, que ali procurou confirmar a sua história. “Foi assim, foi. Contou-me a minha mãezinha”, enfatiza Adelaide, antes de apontar para a rua abaixo, a que tem o nome de “Fogueteiro”. Pois que ali, mesmo ao dobrar da esquina, morou o António, que a dada altura foi para o Brasil. E de quem já nada se soube, vai quase para 100 anos. “Ele era meu tetravô”, explica Cristina a um habitante.

Comovida, tira fotos e grava vídeos do encontro com o património que um dia pertenceu à sua família. “Esta é a casa que explodiu”, aponta. No fim, confessa que sempre achou que metade da ladainha não era verdadeira. “Ouvir estes testemunhos foi muito legal.” Mas, ao que parece, o tempo suavizou a dimensão da história. É que, segundo os relatos de vários habitantes de Cabril, às mãos dos fogueteiros houve afinal outras casas que explodiram, em momentos diferentes. “Meu Deus, eles iam rebentando toda a aldeia”, comenta Cristina a rir. “A minha avó vai ficar feliz por saber que tudo isto ainda existe”, declara. E ninguém duvida.

O bisavô vestido de menina
Foi graças a este passado que Cristina conseguiu nacionalidade portuguesa por descendência há um ano e meio. No Rio de Janeiro ainda conviveu com a bisavó Palmira durante dez anos. Dela lembra uma frase recorrente: “Ó menina, ó menina, venha cá”, reproduz a brasileira com um sotaque português perfeito. E recorda também as comidas típicas: “Ai o bacalhau à Zé do Pipo!”

Palmira e o marido, também português, só se conheceram no Brasil. O esforço do trabalho sem descanso folgou-lhes os últimos anos de vida. Construíram um prédio na zona da Lagoa, no Rio de Janeiro, a que chamaram Sagrada Família. É nesse imóvel que mora a filha Emília, e morava também a neta Cristina, antes de emigrar para Portugal, com o marido e o filho de três anos, faz agora quatro meses. Há uma semana Cristina, blogger e youtuber de viagens, tomou coragem para descobrir a origem dos antepassados, em Viseu. Como a investigação deu frutos sente-se entusiasmada para “resgatar” agora as raízes do bisavô, Álvaro Lourenço Paes. Aquele de quem só sabe que, devido a uma promessa, foi vestido de menina até aos sete anos. (Sim, há fotos.)

O título de nacionalidade de Cristina Viegas já não entrou nas contas do último Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras). Neste documento de 2016 sabe-se que foram formulados 35 416 pedidos de atribuição e aquisição da nacionalidade portuguesa (mais 4,5% face a 2015). Desses, o SEF emitiu 27 155 pareceres, dos quais 26 061 positivos. A grande fatia destinou-se a cidadãos brasileiros: 10 063. Deste modo, com um total de 81 251 cidadãos, os brasileiros mantinham-se como a principal comunidade estrangeira a residir no país, apesar da redução verificada face ao ano anterior (menos 1 338 pessoas). Acabando por reconfirmar o efeito atrativo do nosso país que, de acordo com o relatório, assenta em dois fatores: “A perceção de Portugal como país seguro e as vantagens fiscais decorrentes do regime de residente não habitual.”

“Eu já estive aqui tão perto”
Uma dessas explicações levou Jacques Neto a trocar, há quase um ano, Belém do Pará, no Brasil, por Vila Nova de Gaia. O advogado justifica a viagem: “Antigamente, o fluxo migratório era ao contrário. Os bisavós iam para lá trabalhar, em busca de uma oportunidade. Agora, grande parte dos que vêm tem posses, mas falta-lhes tranquilidade. No Brasil, a violência uniformizou-se. Quem vem busca segurança. Eu próprio procurei aqui a paz que não tinha lá”, garante.

Aos 45 anos, depois de ser vítima de vários assaltos, pegou na mulher, Mónica, e no filho, de nove anos, e divorciou-se do país onde poucos têm muito e muitos não têm nada. Foi dos últimos da família a pedir nacionalidade portuguesa, através do comprovativo de descendência. Sempre teve grande carinho por Portugal, mas foi a perda do pai e da avó que o levaram a ver este pedaço retangular de terra com outros olhos. “Tinha neles a representatividade portuguesa. E decidi resgatar essa essência.”

A primeira vez que aterrou no Porto foi em 2016. No passeio de reconhecimento afirma que mal viu a praia de Canidelo, em Gaia, pensou: “Isto me atrai muito.” Ainda para mais, era perto de Santa Maria da Feira, lugar que conhecia das lembranças contadas pela avó Marina de Freitas Araújo, uma “portuguesa de carne dura” que nunca esqueceu a terra onde nasceu.

“Ela me falava que seus pais, meus bisavós, eram comerciantes. E que saíram daqui para o Brasil com alguns contos de rei no bolso, em busca de uma expansão comercial.” António Costa Freitas, o bisavô, foi e voltou várias vezes, sempre com a mulher e os filhos. “Em algumas dessas viagens também levaram sobrinhos que procuravam uma oportunidade”, refere Jacques. Nessa altura, o Brasil era o Eldorado para quem sonhava com uma vida melhor. Cansados das viagens, e já com alguma estabilidade, acabaram por assentar arraiais em Belém, capital do Pará, em 1924. E de lá não mais saíram, morrendo poucos anos depois. Mas não sem antes deixarem um grande legado. O casal soube estabelecer-se a nível económico e social. Construíram património. Tiveram sete filhos e para cada um mandaram erguer uma casa, com linhas arquitetónicas europeias. Em locais privilegiados da cidade. No alto de todas elas, bem visível, o patriarca deixou gravadas as suas iniciais, ACF, ainda hoje visíveis em algumas.

Marina de Freitas Araújo, avó paterna de Jacques, morreu no ano passado, pouco antes de completar 97 anos. A voz do neto sai embargada. Foi com dona Marina que Jacques mais conviveu. “Tive a oportunidade de saber muitas histórias da família. Ela nunca esqueceu as férias de verão passadas em pequena aqui em Portugal. E quando chegava a altura do Carnaval vestia os netos com trajes típicos portugueses.” Fatiotas que o brasileiro voltou a recordar quando, há bem pouco tempo, as viu reproduzidas em pessoas trajadas, talvez pertencentes a ranchos, que passaram junto à praia. “Ela sempre nos manteve perto da cultura portuguesa.” Era a saudade. E quando Jacques lhe disse que vinha morar para Portugal a avô disse-lhe, quase a implorar: “Leva-me. Se fores a Portugal vou contigo.” O brasileiro comove-se, novamente. “Ela acabou por partir antes de eu chegar. Uma mágoa que me fica por não ter conseguido concretizar o sonho de trazê-la uma última vez.” Em jeito de homenagem, quando foi a Gião, a terra de onde os Freitas saíram para ver o Mundo, prostrou-se na pequena capela da freguesia e rezou por ela e pelos bisavós. Depois disso, não procurou mais nada.

Agora, a propósito desta reportagem, Jacques aceitou regressar a Gião. Conduzidos por Manuel Batista Cardoso, ex-presidente da Junta de Freguesia de Gião, ficamos a saber que as campas dos Freitas ocupavam um oitavo do antigo cemitério da terra. Estava um dia quente. O pico do sol fez-se sentir no momento em que Jacques, Mónica e Batista Cardoso tentaram ler as inscrições nas lápides. Por via das dúvidas tiram-se fotografias. Ainda bateram a algumas portas, onde poderiam obter mais informações sobre os ascendentes, mas retornaram a Gaia de mãos vazias. O brasileiro prometeu voltar ao arquivo da Feira no dia seguinte. À noite, quando foi rever as fotografias que havia tirado, o jazigo da família Bernardo José de Freitas, de Canedinho, um dos lugares de Gião, chamou-lhe a atenção: “Mandado fazer no Pará por seu filho Manoel Joaquim de Freitas.” Estava feita mais uma ligação. A certeza de estar perto do lugar onde o bisavô morou levou-o a pedir a uma irmã que mora no Brasil alguns dos documentos que recolheu quando também ela visitou Gião. Nessa troca de correspondência descobre que, apesar de ser natural de Gião, António Costa Freitas morou na Foz do Douro, no Porto. Num segundo encontro, já em frente à porta da tal casa, dá voz ao coração: “Nada é por acaso. Eu já estive aqui tão perto. Na verdade, um dos primeiros sítios que visitei no Porto foi esta zona. Existe algo maior por trás disto. Existe sim!” A face contraiu-se e a voz saiu-lhe num fio: “Eu não peguei o Freitas no nome, mas ele está aqui dentro”, bate Jacques no peito. Olhar posto no mar.

O homem que sempre se sentiu mais português do que paraense pode agora abrandar as buscas. “Era um sentimento que carregava. Estou feliz por ter chegado aqui.” As fotos a preto e branco que guarda religiosamente no telemóvel parecem ganhar cor. “De todas as vezes que olhava essas rochas, onde eles estão sentados, imaginava onde seriam. Agora tenho uma ideia. Muito provavelmente estiveram aqui, nesta praia em frente à casa.” Ele, que leu os “Lusíadas” aos 12 anos e que por vezes ordena as palavras nas frases tal qual os de Portugal, sente-se como Vasco da Gama quando chegou à Índia. Mas é no português do Brasil que expressa o orgulho da missão cumprida: “Puxa, quem diria?”

Como montar uma árvore genealógica
Grande parte das buscas de quem procura os antepassados começa nos arquivos distritais, onde estão guardados os registos paroquiais de batismo, de casamento e de óbito. Um dos que mais pedidos de ajuda recebe, presencialmente e via email é o Arquivo Distrital do Porto, que pertence à rede nacional, com património arquivístico de valor histórico e probatório. Olinda Cardoso, técnica superior neste arquivo, atesta o lufa-lufa constante. “Os Arquivos Distritais Portugueses (um em cada distrito) orientam diariamente milhares de cidadãos estrangeiros na procura de informações com vista à localização do registo pretendido, que desencadeará todo o processo de obtenção de nacionalidade portuguesa.” Grande parte deles chega do Brasil. Contas feitas: em 2015 houve 1 155 brasileiros que utilizaram o Serviço de Referência e Leitura do Arquivo Distrital do Porto. Em 2016 aumentou para 1 391. E no ano passado foram contabilizados 2 044 pedidos. “Estes números representam pessoas que obtiveram uma resposta efetiva aos seus pedidos a partir da nossa plataforma online. Muitos pedem certidões para todos os irmãos ou primos. Recebemos, paralelamente, centenas de pedidos por email e por telefone, provenientes de cidadãos brasileiros, que são reencaminhados para outros distritos. Estes pedidos são contabilizados, mas não são sujeitos a tratamento de dados posterior”, remata.

Em junho de 2017, o Observatório para as Migrações não deixou dúvidas na sua publicação “Acesso à Nacionalidade Portuguesa: 10 Anos de Lei em Números”. A partir de 2007, Portugal foi considerado um dos países com melhores políticas de acesso à nacionalidade e um dos mais favoráveis na concessão de oportunidades aos imigrantes para se tornarem cidadãos plenos da sociedade de acolhimento. No documento pode ler-se ainda que, “no âmbito do ‘Handbook on Integration for Policy-Makers and Practitioners’, promovido pela Comissão Europeia em 2010”, Portugal surge destacado, “por comparação aos demais Estados-membros. Pelo facto de não requerer aos cidadãos que se pretendam naturalizar a renúncia da sua nacionalidade de origem”, permitindo a dupla nacionalidade aos “novos cidadãos”. A reforma da lei em 2006 foi por isso “considerada, por inúmeros académicos, como a mais generosa e liberal”, lê-se.

Quando o documento saiu, Helena Passo Neves, de 42 anos, já havia trocado o Brasil por Portugal. A diretora jurídica da associação bracarense União, Apoio e Integração está a fazer o doutoramento na Universidade do Minho ao mesmo tempo que exerce em diversas áreas, nomeadamente da nacionalidade. O seu testemunho entra nesta reportagem na qualidade de advogada e de descendente em busca das raízes.

“Portugal sempre esteve muito presente na minha vida. Tenho ascendência portuguesa na linha paterna, pelos dois bisavós, e na linha materna, pelo bisavô.” A procura das origens é um sonho antigo. Incentivada por uma tia e depois pelo pai, começou a fazer uso das suas habilidades de pesquisa para encontrar informações sobre os parentes, acabando por descobriu a certidão de batismo da bisavó paterna em Viseu. Quando o pai a visitou, no ano passado, foram juntos à região. “Mais importante do que ter nacionalidade é a procura e certeza da existência dos nossos antepassados. Eu trabalho com nacionalidade e imigração e sei bem que muitos não têm o privilégio que eu tive de conseguir retornar ao local de nascimento de uma bisavó.”

Porém, essa primeira viagem não se revelou muito compensadora. Estiveram na zona, mas não conseguiram obter dados adicionais. O que não demoveu Helena de continuar a investigar. À semelhança do que faz com os seus clientes, meteu pés ao caminho. “Procurei certidões de nascimento, de casamentos, de óbito. Inventários, passaportes, retratos, depoimentos dos mais velhos, viagens, cartas, sites, catálogos telefónicos, fui à Biblioteca Nacional, fiz tudo o que podia fazer.” E foi assim que conseguiu montar a sua árvore genealógica. Com ela deu entrada do pedido de nacionalidade portuguesa para o pai e para a tia, os descendentes diretos.

Segundo dados do Eurostat, em 2016, Portugal teve a terceira maior taxa de naturalização da União Europeia. A maioria desses pedidos partiu de cidadãos brasileiros. O grupo ficou em 10.º lugar no total de requerimentos apresentados à UE (21 500), de acordo com o gabinete de estatística europeu. Os dados indicaram também que foram naturalizados 25 104 estrangeiros em Portugal, mais 23% do que no ano anterior. Um número que não era tão alto desde 2009. E os brasileiros estão à cabeça com 7 804 pedidos. Seguiram-se os cabo-verdianos, com 3 607, e os ucranianos, com 3 240.

Os dados do ano passado ainda não foram tornados públicos, mas Helena Neves acredita que os pedidos estão a aumentar. O seu palpite tem por base o volume de trabalho que está a acumular no gabinete. “Há cada vez mais pessoas interessadas em resgatar as suas origens para pedir nacionalidade portuguesa. Só eu estou com mais de 50 processos no momento”, revela. Porém, nem sempre se conseguem respostas céleres. Depende da informação que lhe é fornecida. “Muitos só sabem o primeiro nome e que o familiar era dos Açores, por exemplo. Ora, o arquipélago é grande”, constata Helena. “Frequentemente, a pesquisa demora muito tempo, devido à escassez de dados ou à falta de exatidão nos detalhes fornecidos.”

Voltando ao seu caso. A jurista diz que no Brasil dava aulas a dez turmas e coordenava um curso de graduação e pós-graduação na Universidade de Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Há um ano e meio pediu licença sem vencimento para estudar em Braga. Junto com a bagagem trouxe o marido e as duas filhas. “Quando vim, todos me diziam que devia ser maluca. A verdade é que depois de cá estar me apaixonei e já não quero voltar.” O amor de Helena tem vários nomes. “Paz”, “Segurança”, “Estabilidade” são alguns deles. “Lá demorava duas horas no trânsito para ir trabalhar e mais duas horas no final do dia para regressar. Era obrigada a andar no banco de trás com uma bolsa para o ladrão e a outra, a verdadeira, na mala.” Por cá não se sente em perigo. “A gente aqui pode andar na rua de celular na mão. É outro mundo. Lá morre-se mesmo sem oferecer resistência.”

Quando chegou a Braga estava longe de imaginar que tinha ligações à cidade. “Descobri que meu sobrenome ‘Passo’ era um erro de registo, derivado da palavra ‘Paço’”. Um apelido nascido, segundo as suas pesquisas, na arquidiocese de Braga, e que mais tarde foi alterado quando essa parte da família também se mudou para o Brasil. As curiosidades continuam: “Nasci 100 anos depois da minha bisavó. Sempre tive grande devoção por Santo António e agora sei que o padrinho de batismo da minha bisa, porque na altura isso acontecia muito, foi Santo António. Ou seja, não existem coincidências. É como se tudo isto fosse um chamado para que eu resgatasse a minha história. A história da minha família.”

Uma viagem extraordinária
Voltamos juntos à aldeia de São Joanino, concelho de Armamar, distrito de Viseu. Helena não esqueceu a árvore genealógica em casa. Chegados à aldeia, só sabíamos que os antepassados tinham sido jornaleiros, provavelmente nas quintas daquela zona de Armamar. E também que a bisavó de Helena, Maria Cardoso Neves, tinha sido batizada a 15 de novembro de 1875, numa igreja com um nome que não aparecia no mapa nem nos registos. São Joanino é uma terra simples, com poucos habitantes. A única capela ali erguida datava de 1900, data posterior à certidão de batismo. Só os mais velhos da aldeia poderiam ajudar. Famílias Neves não havia por ali. Rodrigues tampouco. “Os Cardosos… Esses não foram os que partiram para o Brasil?” Helena não escondeu o sorriso. E a capela, perguntou. “Essa talvez seja a da Quinta do Vilarinho…Vocês vão pio acima e lá no alto hão de vê-la. É a mais antiga por aqui, até já precisou de ser composta”, refere uma das moradoras.

Na quinta não havia ninguém, mas as portas estavam abertas. Parámos no cimo do monte, onde uma pequena construção contempla, sem filtros, a beleza dos socalcos vinhateiros. No frontal lê-se, quase na perfeição, as palavras que encheram de lágrimas os olhos de Helena: “Esta capela foi feita em 1747 por Erco Roriz e restaurada em 1941 por Olívia M. Cardoso.” A esperança de encontrar algum parente vivo é agora maior. “Eu achava que a freguesia de São Joanino já nem existia mais. Foi como realizar um sonho. Estou muito feliz”, repetia, enquanto rondava a ermida de telemóvel na mão para registar o momento que enviou de seguida à família. “Está sendo uma viagem extraordinária. Inclusive, tem aproximado muito os familiares que estavam mais desligados.”

A advogada voltou a Braga com mais ânimo. “Vou continuar a procurar. Quero descobrir quem foi Olívia, a benfeitora que mandou restaurar a capela de batismo da minha bisa. E quero muito voltar lá com o meu pai.” Jones Rodrigues das Neves, 72 anos, ainda recorda a imagem da sua “vovó, cantarolando músicas portuguesas, enquanto fazia comida com amor”. Apressa-se a responder à recente descoberta da filha. Com emoção. “Esperemos que não tarde a concessão de minha cidadania portuguesa pois gostaria, ainda nesta vida, de viver em Portugal.” E deixa-lhe uma última nota de orgulho. “Que Deus te ilumine para poder, enquanto profissional de Direito, ajudar tantos brasileiros que, como nós, são descendentes da pátria do grande e imortal poeta Fernando Pessoa.”