Cristina Ferreira: os milhões da Senhora Televisão

Estava-se em março de 2015. Cristina Ferreira, já um nome incontornável da apresentação televisiva em Portugal, lançava uma revista feminina em nome próprio (“Cristina”), ao jeito de Oprah Winfrey, a icónica estrela da televisão americana com quem já tantas vezes foi comparada.

Na capa da primeira edição, Cristina surge de braço dado com Marcelo Rebelo de Sousa, ainda um esboço de candidato presidencial. Além de abrir o coração sobre o lado mais pessoal, o então comentador político dizia que Cristina era a “mulher do momento”. Em jeito de brincadeira, Marcelo augurava até que, um dia, a apresentadora ia ser “riquíssima” e que ele teria numa das paredes de casa uma fotografia dos dois, na capa da revista.

Desde então, muito mudou na vida do professor universitário. Meses após a entrevista, em outubro, assumiu-se como candidato às eleições presidenciais de 2016 e passou no teste com distinção: mereceu 52% dos votos dos portugueses. Mudou-se para o Palácio de Belém e não consta que haja, na residência oficial do Presidente da República, qualquer quadro com a menina que se tornou o orgulho da Malveira. Mas as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa são mais atuais do que nunca. E, tal como aconteceu com o professor, também Cristina se prepara para uma mudança de vulto.

Depois de um percurso ascendente na TVI em que, ao longo de 16 anos, passou dos diários do “Big Brother” a um dos principais rostos do canal, Cristina Ferreira está de malas feitas para a SIC, protagonizando uma das transferências mais mediáticas da história da televisão portuguesa – é preciso recuar até 2000, quando Herman José se mudou da RTP para a SIC, para encontrar uma mudança que tenha causado ondas de choque tão significativas. Cristina é, incontestavelmente, a mulher do momento.

Desde logo pelos números que envolvem esta contratação. Na SIC, a apresentadora deve manter um salário base próximo dos 40 mil euros que auferia na TVI, mas, no limite, pode duplicar os ganhos, graças a um incremento considerável dos prémios de publicidade. Em cima da mesa está um contrato progressivo, indexado a objetivos e receitas.

Ou seja, a possibilidade de chegar aos 80 mil euros por mês, e ao milhão de euros anual, estará sempre refém das audiências e das receitas publicitárias que Cristina venha a conseguir. Caso tudo lhe corra de feição, será a profissional mais bem paga da televisão portuguesa e auferirá mais do que a soma de todos os administradores do Grupo Impresa.

Sem margem para contraproposta
“Não venho aqui para negociar. Venho para me despedir.” Foi assim que Cristina Ferreira anunciou aos responsáveis da TVI a intenção de deixar o canal, confirmou à NM fonte próxima da apresentadora. Para trás ficavam semanas de negociações em segredo, em que Daniel Oliveira se revelou determinante.

O apresentador assumiu o cargo de diretor-geral de entretenimento da Impresa no final de junho e conseguiu, em dois meses, convencer a apresentadora e tornar realidade um sonho que a SIC acalentava há anos – os primeiros rumores a propósito de uma eventual mudança de Cristina para Carnaxide são de 2011.

Os termos do contrato com a SIC terão ficado acordados a 7 de agosto. Pouco depois, apresentou-se na TVI para comunicar a decisão. A 10 de agosto, publicou no Instagram uma foto com a frase “Follow your dreams” (segue os teus sonhos) – um prenúncio do que estava para vir. Mas só a 22 a estação de Queluz de Baixo emitiu um comunicado a confirmar a saída.

Por parte da SIC, até à data de fecho desta edição, a contratação ainda não tinha sido oficializada. Uma demora que não custa a perceber: Cristina Ferreira está ligada à TVI até novembro e há detalhes a acertar quanto à desvinculação, até porque tinha já gravado vários episódios do programa “Apanha se puderes”, que irão para o ar nos próximos meses.

A “entertainer” deverá, por isso, ter de esperar até janeiro para começar a trabalhar nas instalações da SIC. Mas já não voltará ao “Você na TV”, que apresentava desde 2004. E também é certo que, na estação de Carnaxide, além de ser consultora-executiva da direção-geral de entretenimento, liderada por Daniel Oliveira, continuará a ter a seu cargo as manhãs. Deve ainda apresentar um segundo programa, em horário vespertino, para concorrer com o “Apanha se Puderes”, da TVI, e “O Preço Certo”, da RTP.

Ao assumir as manhãs da SIC, Cristina será concorrente direta de Manuel Luís Goucha, o “pai televisivo” que foi, primeiro, professor – na Universidade Independente, onde também conheceu Emídio Rangel e Júlia Pinheiro – e depois parceiro, no “Você na TV”. Ao longo de 14 anos, Goucha e Cristina formaram uma dupla que catapultou o programa para a liderança das audiências no segmento matinal.

Agora, a apresentadora, que chegou a ser professora de História, tem em mãos a missão de levar a liderança para os lados de Carnaxide (ou de Paço de Arcos, para onde a estação televisiva se mudará em breve). Mas, aos 40 anos, Cristina é bem mais do que a cara que, pela simpatia e simplicidade, coleciona fãs. É uma marca em si mesma.

“Há um potencial de audiência que a Cristina arrasta com ela. Mas há outras coisas: o facto de potenciar os valores do investimento publicitário e da colocação de produto. Ela é uma marca e isso inclui a capacidade de influência, sobretudo nas redes sociais. Tem muitos seguidores e pode usar essa influência para atrair pessoas e marcas”, explica Ana Paula Cruz, docente do IPAM nas áreas de comunicação e marca.

Os números atestam o argumento. Só no Facebook, Cristina Ferreira tem perto de 1,7 milhões de seguidores. No Instagram são 760 mil. É de longe uma das portuguesas mais populares na internet, só atrás de futebolistas como Cristiano Ronaldo e Ricardo Quaresma. Com um mérito acrescido: o de chegar a um amplo leque de “targets”. “Através do Facebook, ela chega a muito do seu público televisivo. No blogue, tem uma audiência mais feminina e sofisticada. No Instagram, atinge gente mais nova”, detalha Miguel Raposo, que trabalha na área do marketing de influência. Mas as redes sociais são apenas uma espécie de montra para uma marca global, que a apresentadora tem vindo a construir ao longo dos anos.

Uma marca em crescendo
O primeiro passo nesse sentido é dado em 2005, quando abre, na Malveira, vila do concelho de Mafra, a Casiraghi Forever, uma loja multimarca de roupa feminina. Três anos depois, a versão Cristina-a-empresária ganha novo impulso: cria a Cristina Ferreira Sociedade Unipessoal, Lda. Nada menos do que uma empresa relacionada com atividades de comunicação e televisão, com capital social de cinco mil euros.

Em 2013, já Cristina era uma das personalidades do país, arrisca novo projeto. A 21 de maio, o Daily Cristina, um blogue dedicado a viagens, comida, roupa e tendências, conhece a luz do dia. Por pouco tempo, ainda assim. Em 20 minutos, a página de Facebook do blogue atinge os sete mil fãs e o site fica paralisado com tantos acessos.

Um ano depois, Cristina sobe mais uma escada na carreira de empresária, lançando um perfume, MEU, que foi outro caso de sucesso. Menos de um ano após o lançamento, anuncia nas redes sociais que já tinham sido vendidos mais de 100 mil frascos. Ainda em 2014, a Sociedade Unipessoal passa a Sociedade por Quotas. Mas há mais alterações: o pai, António Ferreira, passa a ser sócio e o objeto social da empresa é alargado a atividades das áreas de espetáculos (produção e apresentação) e ao comércio a retalho (neste caso, de vestuário para adultos).

Ao blogue segue-se a revista em nome próprio. Inspirada na “O”, o mensário de Oprah Winfrey, “Cristina” sai para as bancas pela primeira vez a 7 de março de 2015, editada pela Masemba, com a referida entrevista a Marcelo Rebelo de Sousa. Tinha tiragem de 100 mil exemplares. Mas não chegou. Face ao ritmo das vendas, a editora avança para a reimpressão – só da primeira edição acabam por ser vendidos 127 mil exemplares. Nos meses que se seguiram, “Cristina” vende, em média, 82 mil exemplares, e torna-se um fenómeno de popularidade na internet, muito graças à capa em que, em junho de 2015, o futebolista Ricardo Quaresma apareceu nu, apenas com um quadro em local estratégico.

Mas a aura de êxito não dura para sempre. Em 2016, a média de vendas cai quase para metade – 48,5 mil exemplares mensais. A maior polémica chega em fevereiro de 2017, quando o fim da revista é anunciado pela apresentadora. Na altura, Nuno Santiago, CEO da Masemba, justifica a decisão com “o timing de mercado e a disponibilidade da Cristina”. Só que a história não acaba aqui: um mês depois, Cristina anuncia que a revista está de volta, com uma editora criada por ela, Treze7, em que a mãe, Maria Filomena Jorge, também entra como sócia, mesmo que com apenas 1% das quotas.

Novo “rewind” até 2015, para assinalar mais dois pontos importantes na carreira da empresária Cristina Ferreira: a parceria com a empresa de cosmética alemã LR Health & Beauty, com quem já tinha trabalhado no lançamento do perfume, para ser rosto da marca em 32 países, ao lado de vedetas internacionais como Heidi Klum e Bruce Willis; e a criação de uma marca de sapatos em nome próprio, depois de uma primeira experiência a meias com a Hush Puppies.

Uma equipa jovem
Um ano depois, após uma primeira experiência com um livro de receitas culinárias (“Deliciosa Cristina”, publicado em 2013), a apresentadora lança “Sentir”, um volume de memórias em que partilha dezenas de histórias pessoais, entre as quais a de um caso de assédio sofrido já na televisão. A biografia rapidamente atinge os 100 mil exemplares vendidos. E assim se dá mais um passo na osmose de Cristina apresentadora com Cristina empresária.

O toque de Midas da “saloia da Malveira” está plasmado nos resultados da empresa que criou em 2008: segundo dados a que a NM teve acesso, no último ano, a empresa faturou quase 1,4 milhões de euros e registou um lucro superior a 500 mil euros, valores que dizem respeito a todos os negócios de Cristina à exceção da revista. Já depois disso, em 2018, a “entertainer” lança também uma linha de vernizes.

O sucesso tem Cristina Ferreira como epicentro, mas também assenta noutros alicerces sólidos: é o caso da viseense Inês Mendes da Silva, 36 anos, CEO e diretora executiva da Notable, empresa de consultoria de marcas e personalidades. Licenciada em Comunicação Social e Cultural e com vasta experiência em relações públicas, assessoria de imprensa e “personal branding”, Inês é, simultaneamente, assessora e braço direito de Cristina.

Destaque ainda para Tiago Froufe, 35 anos, o homem-forte da Luvin, empresa que gere a presença de personalidades e marcas em ambiente digital e que tem a própria Cristina como sócia. É a Luvin que planeia com detalhe todos os momentos da marca Cristina Ferreira, sobretudo a nível digital – dos locais para as sessões fotográficas ao design das páginas do blogue, passando pela gestão das redes sociais.

Nesta estrutura, tudo é pensado ao pormenor. Basta recordar o lançamento do perfume MEU, para homem, em outubro de 2016. O convite dizia apenas: “Together in the dark. 23.13h. Moda Lisboa.” Quase ninguém sabia ao que ia. A incógnita estendeu-se às redes sociais e ao blogue, com a publicação de imagens em tons de cinza que sugeriam a possibilidade de um ataque informático. Mas não. Foi apenas e só um golpe de marketing.

E a culpa é do cabo
Mas, além do efeito toque de Midas da marca Cristina, a aposta da SIC também deve ser lida num outro contexto: o da perda sucessiva de audiências dos canais generalistas. Segundo dados da Comissão de Análise de Estudos de Meios (CAEM), a RTP perdeu, nos últimos dez anos, 12,3% de share. Já a SIC teve uma quebra de 8,4%, contra os 10% da TVI, que, ainda assim, continua a liderar, com perto de 20% do share. Se se reduzir o período de análise aos últimos seis anos, passa a ser a SIC quem mais perde – 5,3%, contra os 4% da TVI.

Quem fica a rir é o cabo. “É uma tendência irreversível, que se observa há muitos anos. Os canais temáticos do cabo e as redes de streaming têm vindo a ganhar força. Há um afastamento da televisão clássica, sobretudo entre os jovens”, sustenta Rui Cádima, professor catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa.

E o que é que a aposta em Cristina Ferreira tem a ver com isto? Tudo, garante o estudioso da área da comunicação. “Claro que as duas coisas estão relacionadas. Esta transferência tem de ser vista nesse enquadramento geral. As audiências não estão a ser assim tão boas e há que tentar contrariar isso.

Além de que há uma tentativa, por parte da SIC, de abanar a estrutura da TVI e recuperar a liderança de audiências, que há muitos anos é da TVI. Resta saber se a Senhora Televisão vai ser suficiente para bater o Senhor Televisão [Manuel Luís Goucha].” Ou, por outra, se a “mulher do momento”, vai conseguir, também na SIC, fazer valer o toque de Midas.