Crianças com excesso de presentes? Não tem de ser assim

A postura da família Cavaco relativamente ao Natal foi mudando ao longo dos anos, conforme foram sendo pais. Rute e Tiago têm quatro filhos: Maria, 14 anos, Marta, 12, Joaquim, 11, e Caled, 8. A época festiva é hoje bem mais simbólica do que há uns anos.

“No início, era um disparate. Temos uma família muito grande e tinha de guardar metade dos presentes que os miúdos recebiam na arrecadação”, confessa a mãe, dedicada a tempo inteiro a esse papel. “Ainda tenho alguns brinquedos guardados que nunca foram abertos”, acrescenta.

Rute é a mais velha de cinco irmãos e a partir do nascimento dos sobrinhos houve uma regra que se impôs. “Todos os irmãos e avós dão uma verba livre por criança”, diz, confessando que tem noção que nem todas as famílias funcionam assim na época natalícia.

Os dias que antecedem o Natal são passados tranquilamente e sem grande stresse. Rute junta o dinheiro transferido pelos familiares e compra, ela própria, os presentes que os filhos desejam, dentro de determinados limites. “Normalmente, fazem uma lista de livros ou CD e são muito sensatos naquilo que pedem.” Rute coloca o valor remanescente num mealheiro que vai utilizando durante o ano naquilo que a família chama de “plano especial” e que se consubstancia em saídas ao cinema, concertos e outro tipo de programas.

Nos últimos anos, as festas de aniversário foram substituídas pela mesma estratégia: o aniversariante decide o que quer fazer e onde quer comemorar. “Já chegámos a ir passear de autocaravana durante um fim de semana”, conta Rute. A ideia é contrariar a cultura consumista enraizada na sociedade, passar tempo de qualidade em família e proporcionar momentos, também eles dispendiosos, mas que certamente ficarão na memória dos pequenos.

“O excesso de presentes atualmente é uma forma de as pessoas se desculpabilizarem pelo pouco tempo que passam em família” (Ana Galhardo Simões, psicoterapeuta)

Ana Galhardo Simões é psicoterapeuta corporal no Espaço CresSer, em Carcavelos, concelho de Cascais, e denota nas consultas que dá a crianças e jovens que é precisamente o tempo de qualidade a fazer a diferença. “As crianças e jovens não falam dos presentes que receberam, mas dos momentos que passaram e das memórias que têm com os avós e com os pais… O excesso de presentes atualmente é uma forma de as pessoas se desculpabilizarem pelo pouco tempo que passam em família”, defende.

Rute e Tiago Cavaco e os filhos Maria, Marta, Joaquim e Caled vivem hoje o Natal de uma forma bem mais simbólica do que há uns anos (Foto: Jorge Amaral/Global Imagens)

Acabar com os exageros e incutir valores
O Natal pode surgir como uma oportunidade de crescimento e de aprendizagem para os pais, familiares e cuidadores. “Esse é um trabalho diário, de todos os momentos com a criança, para desenvolver valores como a partilha, a solidariedade, a importância de desfrutar e saber cuidar dos brinquedos que têm, da ideia de que não é possível ter tudo, construindo, assim, a tolerância e a frustração”, explica Rita Castanheira Alves, psicóloga clínica infantojuvenil e de aconselhamento parental, responsável pelo projeto “Psicóloga dos miúdos”.

Rute tenta incutir nos filhos que cada família faz as próprias opções individuais. “As nossas não são melhores nem piores, são aquelas em que acreditamos”, partilha, adiantando que o que mais a marcou na infância foi a disponibilidade que os pais tiveram para usufruir de momentos em família e não os presentes que recebeu. “Confunde-se muito a ideia dos presentes que damos com o amor que demonstramos, o que é algo muito fútil”, reforça.

Também Ana Galhardo Simões denota que este pode ser um ponto de avaliação em ambiente de consulta. Não é raro receber, nas suas sessões, crianças e jovens que se sentem reconhecidas ou amadas pelos outros através dos presentes que recebem. “Se um filho pede prendas regularmente, e ao longo do ano, há que perceber qual é o vazio presente para ter essa necessidade. Por outro lado, é curioso receber adolescentes em consulta que comentam que os pais tentaram dar-lhes um presente excessivo para compensar, de alguma forma, a falta de presença no dia-a-dia.”

Há ainda que pensar nas dinâmicas dos pais divorciados. As separações também podem implicar alguma desestabilização nesta época do ano. “É dramático. Alguns pais vivem em guerra para ver quem é que dá mais e melhor. Acho que o ideal é que os pais se assumam como coeducadores da criança, independentemente de estarem separados, e que, no mínimo, conversem sobre os presentes”, observa a psicoterapeuta corporal que sugere que os pais optem por ofertas em conjunto, no caso de presentes mais caros, como, por exemplo, um computador ou uma bicicleta.

“Alguns pais vivem em guerra para ver quem é que dá mais e melhor. Acho que o ideal é que os pais se assumam como coeducadores da criança, independentemente de estarem separados, e que, no mínimo, conversem sobre os presentes” (Ana Galhardo Simões)

O próprio espírito consumista do Natal faz-nos viver a quadra de forma acelerada e stressada. “Para mim, é uma época muito tranquila porque tenho poucos presentes para comprar, na verdade”, sublinha Rute. A mãe e os quatro filhos aproveitam também para desenvolver algumas lembranças simbólicas realizadas com os filhos para oferecer e considera que os filhos estão perfeitamente enquadrados a essa dinâmica. E vai mais longe: “Julgo que, se eles vivessem um Natal como antigamente, ficariam chocados, até porque também já têm noção de quanto é que as coisas custam”.

Dicas e estratégias para mudar hábitos

Juntámos algumas dicas que podem ser úteis para contornar a avalanche de presentes que as crianças recebem nesta época.

• Antecipe as estratégias desta época do ano antes do dia em que se trocam presentes. “Os pais podem aproveitar a carta ao Pai Natal como uma ferramenta lúdica para explicar à criança um conjunto de valores e ideias: a partilha, a necessidade de tomar decisões, a escolha, a frustração, entre outros”, sugere Rita Castanheira Alves.

• Se os seus filhos recebem demasiados presentes, e uma vez que a memória em determinada idade “é relativamente curta”, selecione alguns brinquedos e jogos para guardar e ir apresentando ao longo do ano como uma novidade e que pode ser útil para entreter numa tarde de fim de semana.

• Envolva a criança na escolha de brinquedos que já não usa ou não brinca, mas que estejam em bom estado, selecione uma instituição que acolha crianças e entreguem presencialmente. “É uma forma de perceberem que existem outras vidas e realidades. Naquele momento, eles vão possibilitar que um conjunto de crianças tenha acesso a um Natal melhor porque partilharam algo. É uma forma de dar outro espírito a esta época”, sublinha Ana Galhardo Simões.

• Incentive os seus filhos a criar lembranças originais com a participação dos próprios que vão ao encontro de valores importantes para a formação da personalidade e para a vida. “Só se encontra o equilíbrio desta forma. Como pais e educadores, temos que introduzir algumas atividades durante este mês, para que eles tenham uma noção mais correta do que é o Natal”, conclui a psicoterapeuta corporal.