Texto de Pedro Emanuel Santos
“Há todas as condições para uma chef portuguesa arrecadar uma estrela Michelin. O céu é o limite.” O otimismo é de Justa Nobre, figura cimeira da cozinha portuguesa, porta-voz de uma classe praticamente esquecida: a das mulheres ignoradas pelos principais prémios gastronómicos internacionais.
Esta quarta-feira, vai fazer-se história. Pela primeira vez, Portugal acolherá a entrega das prestigiadas (e ambicionadas) estrelas Michelin para a Península Ibérica, cerimónia agendada para o Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa. Mas mais história ainda pode ficar registada nos livros se for quebrada uma aparente barreira de género que parece perseguir as chefs mulheres: dos atuais 23 restaurantes estrelados em território nacional, nenhum – isso mesmo, zero – tem a cozinha gerida por alguém do sexo feminino. Como é fácil perceber pela frieza dos números, por cá os afamados galardões são exclusivo masculino.
“É um mundo de homens. Eles gostam de competição, nós somos mais descontraídas, temos melhor postura, ligamos mais ao sabor do que ao aspeto do prato”, valoriza Marlene Vieira, chef responsável pelo Restaurante Panorâmico, em Oeiras, e por um espaço no Time Out Mercado da Ribeira, em Lisboa, um dos nomes femininos apontados à estrela Michelin de há vários anos a esta parte.
Justa Nobre aponta no mesmo caminho, o da quase obsessão dos chefs pelo reconhecimento público ao mais alto nível. Aos 61 anos, conta com nove restaurantes próprios no currículo ao longo da carreira – atualmente tem dois, o À Justa e o Nobre, ambos em Lisboa – e desvenda sabores das raízes transmontanas que recusa desleixar.
“A cozinha é um espaço machista. Os homens são muito egoístas, têm mais necessidade de protagonismo, são mimados. As mulheres preferem passar por discretas, pela retaguarda”, atira Justa Nobre num disparo só.
Ultrapassar preconceitos
Que não faltam candidatas a estrelas, isso não faltam. Nos bastidores da cozinha nacional são cogitadas possíveis vencedoras e, não fosse o secretismo dos exigentes agentes da Michelin durante o escrupuloso processo de avaliação dos restaurantes, todas essas possibilidades fariam agitar apostas durante meses a fio. Como o processo envolve métodos que parecem saídos de filmes de agentes secretos, é praticamente impossível avançar novidades sobre o que irá sair da cerimónia de dia 21.
Elisabete Pinto é uma das eventuais escolhas. Agora à frente do 1858 bbGourmet, na baixa do Porto, reconhece ser difícil chegar ao prémio por estar num “meio dominado pelos homens”, onde elas, as chefs, têm dificuldades de afirmação por estarem constantemente associadas “ao meio familiar, ao cuidar dos filhos, à menor disponibilidade para a profissão”. Preconceitos que Elisabete recusa acatar como impeditivos seja para o que for, à semelhança de outras camaradas de ofício que convivem com tal mantra, quase discurso oficial justificativo para o predomínio do homem na alta cozinha.
“Até admito que os homens possam ser mais afoitos e desinibidos em questão de visibilidade. A verdade é que, na cozinha, as mulheres são mais seguras e assertivas”, garante Inês Diniz, proprietária do recentemente encerrado Casa Inês, no Porto, chef “entre projetos”, que gosta de “transportar para o prato as memórias da comida da avó” e de cimentar a riqueza gastronómica nacional. “Talvez demore até o valor da mulher na alta cozinha ser devidamente reconhecido, mas isso não deixará de acontecer”, augura.
“Jogar para a Liga dos Campeões”
A atual ausência de mulheres premiadas com estrelas Michelin não é fenómeno que Portugal ostente isolado e que seja surpreendente num universo específico que mistura criatividade, exigência, entrega e qualidade. A estatística interna apenas acompanha a tendência mundial, basta lembrar a exiguidade de chefs femininos premiados a nível global – apenas 5% do total, segundo os números contabilizados depois de analisados os famosos Guias Michelin, e tendo em conta as estrelas atribuídas para 2018. Valor que acompanha médias de anos anteriores e que sempre colocaram as estrelas no feminino nunca acima de patamares pouco superiores aos tais 5%.
Na história, apenas por duas vezes chefs portuguesas conseguiram tal distinção. Os tempos eram outros e a necessidade de valorizar a cozinha tradicional ajudou a que Júlia Vinagre (restaurante A Bolota, na Terrugem, Elvas, em 1992 e 1993) e Maria Alice Marto (restaurante Tia Alice, em Fátima, de 1993 a 1996) liderassem cozinhas que foram exceções à regra.
“A estrela Michelin é como jogar para a Liga dos Campeões; é preciso lidar com uma adrenalina e uma pressão constantes. São 16 horas diárias de trabalho muito duro”, explica Ricardo Costa, chef do restaurante do Hotel Yeatman, em Gaia, e portador de duas estrelas Michelin. “As mulheres são muito fortes psicologicamente. Porém, o instinto feminino leva a que quase abdiquem da carreira de chefs em função da família”, justifica.
Um documentário da francesa Vérane Frédiani mergulhou no agitado mundo dos chefs e concluiu o quase óbvio depois de estudar o desempenho de cerca de 50 mulheres com grandes responsabilidades em reputadas cozinhas de restaurantes espalhados por dez países e de recolher os respetivos testemunhos. Em “A La Recherche Des Femmes Chefs” (“Em Busca das Mulheres Chefs”, tradução livre para português), são denunciadas as dificuldades com que se deparam as mulheres para garantir afirmação num espaço amplamente dominado pelo sexo oposto.
“A cozinha não tem por que ser só dos homens. É verdade que a vida particular das mulheres por vezes rouba tempo. São os filhos, é a família, é a casa. Mas nós somos tão boas como eles”, assegura Carla Conde, que há seis anos abriu o Calça Perra, em Tomar, e rapidamente o transformou em referência. “Não é por falta de tempo que nos dedicamos menos à profissão, isso é desculpa que não vale. Basta dizer que trabalho todos os dias entre 12 e 13 horas. E não me queixo.”
“As coisas estão a mudar”
No documentário de Vérane Frédiani é enfatizada a constante luta das mulheres por igualdade de posto e são descritos os múltiplos obstáculos a ultrapassar para conquistar uma afirmação que deveria ser natural, mas que necessita de carimbos especiais em passaportes salpicados de mentalidades antigas que se desejavam ultrapassadas. Como a tal recorrente associação da mulher ao universo do lar e da família, fator supostamente impeditivo de mais horas passadas à frente das melhores cozinhas e consequência para a menor afirmação delas em ambiente em que o homem aparece retratado como único capaz de resistir à pressão constante e aflitiva da profissão, às elevadas cargas horárias exigidas, à liberdade para criar, ao espírito de constante entrega ao trabalho.
“Por vezes, o lado materno das chefs inibe-as de estarem mais presentes na cozinha e chega uma altura em que têm que optar entre um lado e o outro. É uma questão de cultura. Embora sinta que as coisas estão a mudar.” A convicção é de Tiago Bonito, chef do Casa da Calçada, em Amarante, uma estrela Michelin que “seria excelente manter este ano”, e vai ao encontro da ideia generalizada de que família e a pressão constante são conceitos que não combinam e acabam por prejudicar a mulher que ambicione afirmar-se na cozinha.
O impacto de “A La Recherche Des Femmes Chefs” foi tal que após ter sido lançado surgiu um espontâneo movimento internacional intitulado #michelintoo. Que remete para as estrelas Michelin (ou falta delas para elas) e para o #metoo, que nasceu nos EUA depois das denúncias sobre múltiplos casos de abuso sexual sobre atrizes por parte do produtor de Hollywood Harvey Weinstein e rapidamente saltou fronteiras. Redes sociais, sobretudo Facebook e Instagram e Twitter, multiplicaram a hashtag e reclamaram direitos iguais para homens e mulheres cozinheiros. Aquando da entrega das estrelas Michelin em França, no início do ano, em que em 57 restaurantes premiados apenas três eram de mulheres chefs, utilizadores reclamaram que os prémios refletiram que “o predomínio masculino na cozinha profissional francesa faz recuar aos tempos da Idade Média”.
Inês Diniz é, ela própria, testemunha de como aos poucos os chefs foram trilhando rotas próprias e acabaram por chegar a metas há algumas décadas impensáveis. “Lembro-me que quando comecei – e já tenho 54 anos – praticamente não havia rapazes a fazer o que eu fazia. As coisas foram evoluindo, tomando outros rumos, a visibilidade passou a ser maior. Eles foram-nos ultrapassando em mediatismo, foi uma evolução natural”, desfia.
Mais de 100 anos de história
O guia Michelin foi dado à estampa pela primeira vez em 1900. O objetivo era simples: oferecer a quem comprava pneus da marca francesa um livro organizado e atualizado de estabelecimentos de restauração e hotelaria que podiam ser encontrados pela Europa durante grandes viagens. O sucesso foi tremendo e o guia passou a ser editado com regularidade e exportado para outros países. Hoje, chega a mais de 20.
As estrelas – de primeira, segunda e terceira categorias -, foram atribuídas pela primeira vez em 1926. E passaram a distinguir restaurantes portugueses três anos depois, em 1929. Mas por pouco tempo. Com o início da II Guerra Mundial, em 1939, o guia foi temporariamente suspenso. Apesar de ter sido retomado após o final do conflito militar, em 1945, o certo é que só em 1974, ano em que a democracia viu a luz com o 25 de Abril, voltaram a ser avaliados restaurantes portugueses.
Ainda assim, nunca por cá foi atribuído o galardão dos galardões: as três estrelas Michelin, autêntico nirvana de excelência. Duas estrelas foi o máximo conseguido por restaurantes nacionais, o que aconteceu pela primeira vez em 1936 com O Escondidinho, ainda hoje de portas abertas na Rua Passos Manuel, no centro do Porto. Mas sem estrela alguma, entretanto perdida. Só mais de seis décadas depois igual reconhecimento foi garantido, em 2002, ao Vila Joya, em Albufeira, que ainda conserva o título.
“A diferença para os homens é zero”
Mais de um século passado, a alta cozinha continua mundo de homens? Ou é possível sonhar com um grito de liberdade das mulheres chefs traduzido em mais estrelas Michelin que lhes reconheçam a dedicação, o trabalho e a entrega?
Apesar de reconhecer que a “intensidade da restauração pode obrigar a abdicar de muita coisa”, Pedro Lemos, cujo restaurante homónimo, no Porto, é um dos que atualmente ostenta o prémio, não vê nas mulheres papel menor nas cozinhas de gabarito. “Pelo contrário, trabalho com uma equipa em que 50% são mulheres e a diferença para os homens é zero. São exatamente iguais”, considera.
“É tudo uma questão de tempo”, acredita, por sua vez, Marlene Vieira. Porque “fomos fechados durante anos a fio” e isso levou a um predomínio masculino nas cozinhas que é difícil contornar. “A mudança de mentalidades existe, é verdade. O problema é que demora a ser concretizada”, lamenta.
Numa coisa estes e outros chefs de ambos os sexos estão de acordo: já era hora de nos novos tempos da alta cozinha uma portuguesa ganhar o direito a arrecadar uma estrela Michelin. E essa hora vai chegar mais cedo ou mais tarde. No caso, mais tarde do que cedo.