Como é que uma bactéria comum se torna mortal?

Texto de Sara Dias Oliveira | Fotografia de Shutterstock

É como uma guerra. Os antibióticos nascem para matar bactérias atingindo um alvo específico no seu interior. No entanto, há aquelas bactérias danadas que não morrem. Tornam-se resistentes, dão dores de cabeça aos profissionais de saúde, e podem matar.

Há várias formas de as bactérias tornarem-se resistentes. É uma luta. Tornam-se impermeáveis, como um escudo, ao antibiótico e ele não consegue entrar. Ou então destroem o antibiótico como se tivessem uma espada. Podem ainda alterar o alvo numa estratégia de camuflagem para enganar o antibiótico. Ou podem atirar o antibiótico para fora para que ele não atinja o alvo, como se tivessem uma catapulta à disposição. Sim, elas andam aí, estão no meio de nós.

Não é possível acabar de vez com elas, mas é possível amarrar-lhes as mãos respeitando alguns procedimentos. Não ouse tomar antibióticos sem receita médica e não pense despejar o restinho do antibiótico pelo cano da cozinha.

As bactérias que resistem são as mais fortes

Para ganhar estes poderes, estas bactérias têm genes de resistência, para fazer de conta que os antibióticos não existem. “É uma questão de seleção natural: as bactérias que não resistem ao antibiótico morrem; as que resistem continuam a multiplicar-se e passar os genes de resistência para as gerações seguintes”, explica Salomé Gomes, investigadora na área de microbiologia e professora do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto.

Toda a atenção é pouca. “A resistência das bactérias aos antibióticos ‘de primeira linha’, ou seja, aqueles usados mais habitualmente, aumenta a mortalidade por vários motivos: enquanto não se acerta com o antibiótico, a bactéria está sempre a multiplicar-se e a causar danos (sobretudo se o hospedeiro é frágil) que podem tornar-se irreversíveis; os antibióticos de segunda escolha muitas vezes são-no porque têm efeitos secundários negativos (afetam o fígado, os rins, etc)”, acrescenta a investigadora.

As “superbactérias” são variantes de bactérias patogénicas que adquiriram genes de resistência a antibióticos, ou por alterações acidentais nos seus genes durante a replicação ou por transferência de genes entre bactérias.

Estas superbactérias são tão danadas que podem matar. São tão oportunistas que até podem não causar doença em indivíduos normais, mas podem provocar infeções fatais, nomeadamente pneumonia e septicemia, infeções do sangue, em pessoas imunodebilitados. E o número de casos fatais de infeções por estas bactérias tem vindo a aumentar em ambiente hospitalar.

“Uma pequeníssima fração das bactérias é capaz de provocar doença, essas são consideradas bactérias patogénicas. As ‘superbactérias’ são variantes de bactérias patogénicas que adquiriram genes de resistência a antibióticos, ou por alterações acidentais nos seus genes durante a replicação ou por transferência de genes entre bactérias.”

O facto de uma bactéria ser patogénica, isto é, causar doença, não depende apenas das características genéticas da própria bactéria, depende também da resistência da pessoa. E essa resistência depende de muitos fatores: da genética, da idade, de outras patologias como cancro, diabetes, doenças respiratórias crónicas, entre outras “Daí que as pessoas mais sujeitas às consequências negativas das superbactérias sejam as mais frágeis, com sistemas imunológicos mais debilitados”, adianta Salomé Gomes.

Bactérias mutantes

Em fevereiro, a Organização Mundial da Saúde publicou uma lista de 12 bactérias para as quais é urgente o desenvolvimento de novos antibióticos. No topo da lista, estão nomes estranhos – Acinetobacter baumanii, Pseudomonas aeruginosa e Enterobactérias – de bactérias resistentes a um dos mais modernos antibióticos do grupo das penicilinas.

Mas o que se passa com estas bactérias que, de repente, resistem a tudo? As bactérias passam genes de geração em geração e também de umas para as outras dentro da mesma população. Reproduzem-se muito facilmente, crescem e dividem-se em duas, nem sequer é preciso haver duas para se multiplicarem. E fazem-no muito rapidamente. Numa hora uma pode multiplicar-se em oito, em sete horas em dois milhões. “Esta rapidez faz que durante a reprodução haja muitos erros quando se copia o material genético. Ou seja, as ‘células-filhas das bactérias tendem, não a ter os genes exatamente iguais aos da célula-mãe, mas genes com pequenas alterações, chamadas mutações. Algumas destas alterações, completamente ao acaso, acabam por resultar em resistência a antibióticos´”, refere a professora do ICBAS.

As superbactérias ganham mais poderes quando estão nos seus habitats favoritos, ou seja, continuamente expostas aos antibióticos. Por isso, os hospitais são meios onde se movimentam à vontade porque mais facilmente retêm genes de resistência.

As superbactérias ganham mais poderes quando estão nos seus habitats favoritos, ou seja, continuamente expostas aos antibióticos. Por isso, os hospitais são meios onde se movimentam à vontade porque mais facilmente retêm genes de resistência. “Nos hospitais, essa exposição é constante, porque uma grande percentagem dos doentes hospitalizados, por uma razão ou por outra, precisam de tomar antibióticos e isso faz que as bactérias nos hospitais mantenham a resistência permanentemente e a passem a outras bactérias que vão chegando.” Não desarmam, portanto. “Fora do ambiente hospitalar, se não forem expostas a antibióticos, as bactérias tenderão a perder os genes de resistência.” E, dessa forma, não vale a pena continuar na guerra, se não precisam de escudos, espadas, catapultas.

As superbactérias também se sentem bem na pecuária, nos meios onde se cria gado. Aí a guerra também é dura por causa do uso generalizado, e controverso, de antibióticos na alimentação animal. “Para não correr o risco de perder explorações inteiras devido a um surto de uma doença infeciosa, os produtores começaram a usar antibióticos como profilaxia na segunda metade do século passado. Presume-se que isso contribuiu muito para o surgimento e propagação de bactérias resistentes. Por esse motivo, a legislação europeia atualmente proíbe o uso de antibióticos na alimentação animal”, refere a investigadora.

O que fazer

Elas estão no meio de nós, em todo o lado. As bactérias vivem no solo, na água, nos intestinos dos homens e dos animais. Convém não esquecer que foram os primeiros seres vivos a povoar a terra. “Algumas bactérias vivem em associação com os animais, tendo como habitat a pele, as vias respiratórias, o tubo digestivo, especialmente o intestino, etc. Multiplicam-se muito facilmente, desde que tenham nutrientes, água e uma temperatura adequada”.

Exterminar superbactérias é uma missão impossível, mas é possível evitar a sua propagação. Salomé Gomes relembra recomendações para que estas bactérias multirresistentes não ganhem a guerra. Nunca tome antibióticos sem receita médica. Com receita, siga escrupulosamente as indicações de posologia, ou seja, quantidade e duração do tratamento. Nunca elimine um resto de antibiótico pela pia abaixo, entregue-o sempre numa farmácia. Evite idas desnecessárias ao hospital. Mantenha o sistema imunológico saudável, na medida do possível. Já sabe, evite fumar, faça uma alimentação saudável, evite a diabetes. Lave as mãos com frequência, não é necessário usar antissético em casa e ter tudo desinfetado, basta que esteja limpo.

“Os médicos têm a responsabilidade de não receitar antibiótico sem antes confirmar o diagnóstico da infeção, de preferência com identificação do agente e caracterização do seu perfil de resistência”

As superbactérias andam debaixo de olho e há vários desafios. “Os profissionais de saúde têm uma tarefa muito difícil, que é evitar a propagação das bactérias em meio hospitalar. Os hospitais têm gabinetes dedicados à monitorização e controlo das infeções, por ser esta uma área crucial para manter bons cuidados de saúde. Os médicos que atuam na comunidade têm a responsabilidade de não receitar antibiótico sem antes confirmar o diagnóstico da infeção, de preferência com identificação do agente e caracterização do seu perfil de resistência (antibiograma)”, diz a especialista.

Uma tarefa que exige muitas mãos e cabeças. “Os investigadores e a indústria farmacêutica devem continuar a investir no desenvolvimento de antibióticos novos e/ou novas formas de combater as infeções bacterianas – que podem passar por medicamentos que estimulem o sistema imunológico, por exemplo”, conclui a investigadora.