Sabe que houve um estrondo. Uma onda de choque. Sabe que foi projetado da torre da viatura blindada em que seguia. Que se enrolou para cair. Sabe que, antes de “apagar”, ainda tentou erguer-se. Que quis reagir, mas não conseguiu.
Tudo o resto é um emaranhado de pixels desconexos, a ganharem forma pelos olhos dos camaradas que foram dar com ele prostrado no chão, em choque. Vinham atrás. Contam que, no momento da explosão, foi como se a primeira viatura tivesse desaparecido. Que, segundos depois, restava um enorme cogumelo de pó.
Contam que lá chegaram e deram com o primeiro-sargento dos Comandos, João Paulo Roma Pereira, morto. E com o primeiro-cabo Horácio Mourão a esvair-se em sangue. Contam que, naquela manhã de 18 de novembro de 2005, oito quilómetros a sul de Cabul (Afeganistão), aqueles “12 ou 13 quilos de TNT”, escondidos por debaixo de uma conduta de água e deflagrados pelos talibã, através de controlo remoto, tinham um objetivo claro. “Matar toda a gente.”
Sentado à mesa de um café de Vila Real, Horácio tenta contar mais. Além do estrondo. E do choque. E da queda. Mas, quase 13 anos depois, quando tenta lembrar-se daquele dia (e daqueles meses), a linha que separa a realidade da fantasia continua a ser frágil. A perder-se numa teia de vislumbres difusos.
“Às vezes, tenho flashes de memória, mas é difícil saber o que é real e o que não é”.
A confissão surge tão transparente como conformada. “O acidente afetou-me a memória recente. É como se tivesse tudo arrumadinho numa gaveta e alguém a rebentasse”, explica, ainda com notórias dificuldades na dicção.
E ainda assim sorri, orgulhoso e desarmante, a lembrar que é “um em dez milhões”. Porque sobreviveu. Porque, aos 24 anos, resistiu a um traumatismo cranioencefálico grave e a múltiplas fraturas. Porque aguentou uma cirurgia de urgência de várias horas, na Alemanha.
“Toda a gente me disse que tive muita sorte.” Porque suportou “oito meses em coma, dois deles em estado vegetativo” e dois intermináveis anos no Hospital Militar, em Lisboa. Porque, por obstinação, protagonizou uma recuperação milagrosa.
“Primeiro andava de cadeira de rodas. Mas na minha enfermaria era eu e dois paraplégicos. E queríamos ir ao bar. O Osvaldo [um dos doentes que partilhava a enfermaria com Horácio] queria fumar. Comecei a andar assim, a empurrá-lo para irmos ao bar”, lembra.
O rosto volta a abrir-se num sorriso. Seguiram-se anos de recuperação em Lamas de Olo, a aldeia de Vila Real em que nasceu. Sempre com a mãe a servir de força motriz. “Esteve sempre ao meu lado”. Mesmo quando teve – às vezes ainda tem – de lidar com a incompreensão alheia. “Há pessoas que me tratam como se fosse um maluquinho”, desabafa.
Os olhares de descrédito e os dedos apontados são parte da chaga que trouxe de um dos cenários mais perigosos e mortíferos do Mundo: desde que os Estados Unidos invadiram o Afeganistão, em 2001, já houve quase 3500 militares mortos no país, grande parte dos quais americanos.
Portugueses foram dois – um deles o sargento Roma Pereira que, naquele 18 de novembro de 2005, seguia ao lado de Horácio Mourão, na viatura que foi atingida pela detonação de mais de dez quilos de explosivos. Muitos outros portugueses têm passado por lá ao longo dos anos – mais de 3000, quase todos ao serviço das forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Atualmente, são perto de 200.
Mas o Afeganistão é apenas um dos muitos teatros de operações em que as Forças Nacionais Destacadas (FND) têm marcado presença. Desde 1991, quando se realizou a primeira missão portuguesa no estrangeiro – com uma equipa de observadores na Bósnia, ao serviço da Organização das Nações Unidas (ONU) -, os registos cedidos à Notícias Magazine pelo Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA) apontam para mais de 43 mil militares portugueses destacados em nome da pátria.
Longe do regime de obrigatoriedade imposto pelo Estado Novo, no tempo da Guerra Colonial, fazem-no por vontade: seja a de alavancar uma carreira militar para a vida ou a de poder viver uma experiência singular, cumprindo uma missão (ou várias) em nome da pátria, antes de retomar a vida civil. Nalguns casos, o bichinho nasceu do serviço militar obrigatório, extinto em 2001.
A Bósnia que o cegou
A Bósnia, devastada por um conflito armado que se prolongou de abril de 1992 a dezembro de 1995, é, historicamente, um dos teatros de operações em que a presença portuguesa foi mais marcante – quase 7000 militares, entre 1996 e 2004. O tenente-coronel Augusto Pinheiro (57 anos) fez parte do primeiro contingente português no país, naquela que foi a mãe de todas as missões no âmbito da NATO.
Entrou para os comandos em 1985, com 24 anos. Por ele, tinha-o feito sete anos antes, com 17, mas o pai, que viveu de perto o Ultramar e veio de lá “muito chocado”, não permitiu. De nada serviu. Anos depois, após ter frequentado Engenharia no Técnico, em Lisboa, Augusto entrou mesmo para a Academia Militar, para prosseguir os estudos. Foi o número um do curso e ainda se sagrou campeão de pentatlo das Forças Armadas, em 1995. Tanto que, nesse ano, quando o desafiaram para comandar o Destacamento de Engenharia, na Bósnia, até andava em treinos para o Campeonato do Mundo.
Nada que tenha feito o então instrutor de treino físico e tiro pensar duas vezes. “Disse logo que sim. Um militar de carreira só brilha nessas situações. Claro que sabia que era uma missão de alto risco. Mas eu sou um operacional. Nunca fui um indivíduo de secretária. A minha vida era a desminagem todos os dias. Sempre gostei de fazer aquilo, da adrenalina. Nunca pensei no risco.” Dá-nos essa garantia mais de duas décadas depois de um daqueles dias impossíveis de esquecer.
Aconteceu a 2 de junho, quase meio ano após chegar à Bósnia, quando estava a abrir uma brecha no itinerário, em Praca. Como tantas vezes fez ao longo daqueles meses. Só que, naquele dia de 1996, teve o azar de tocar com a haste de sondagem (espécie de espeto que se enfia no chão para detetar material explosivo) numa PMA-3.
A explosão foi imediata. Augusto ficou semi-inconsciente. Lembra-se que deixou de ver. Lembra-se de ouvir um ruído ensurdecedor no ouvido direito, que rebentou. Tem uma vaga ideia de ouvir o primeiro-sargento Oliveira a dizer “deixe-se estar, que já o vou buscar”. E pouco mais. Sabe que foi transportado para Sarajevo. “Talvez de ambulância”. E que foi operado de urgência no hospital de campanha, antes de lhe induzirem o coma e o transportarem para Itália. Acordou dias depois, “sem saber onde estava”.
Seguiram-se longos meses de internamento e vários anos de viagens constantes entre casa e o hospital. “Às vezes saía por 15 dias e depois voltava a ficar internado.” Pelo meio, fez várias cirurgias. Aos olhos, ao tímpano, ao braço esquerdo. E ainda ao rosto. Tanto que se deu ao trabalho de contar: garante ter entrado 96 vezes na sala operatória (“às vezes só para tirar pontos”).
Chegou a ver 50% do olho esquerdo, mas, meses depois, um descolamento total da retina cegou-o. No olho direito, a recuperação foi total. “Mas ando sempre de óculos escuros. De manhã, à tarde e à noite. Para não mostrar o olho. E ainda tenho cicatrizes na cara. Uma espécie de manchas. As pessoas pensam que são problemas de pele.”
Nada disso lhe levou a vontade de viver a vida no limite, garante-nos, por telefone, a bordo de um cruzeiro de um mês e meio no Mar Adriático. Concluída a recuperação, voltou à Academia Militar para dar aulas. De fortificação de campanha e de organização do terreno. Está, por isso, habituado a que lhe façam perguntas sobre aquele episódio em Praca. “Conto sempre. Não tenho problemas. Faz parte do meu espírito”, reconhece Augusto.
Admite que, nos primeiros dois anos após o incidente, “tinha um sono muito intranquilo, uma imagem muito presente da bola de fogo e da explosão”, mas assegura que “foi tudo superado”.
“Não me considero um traumatizado de guerra. Sou um operacional, não sou um lamechas. Faz parte do ADN dos Comandos. Um militar de carreira deve ter pinta na vida.”
Por isso, apesar do calvário – e das cirurgias, e das cicatrizes e de ter perdido a vista esquerda para sempre -, ainda consegue recordar a experiência na Bósnia com carinho. “Foi uma missão fantástica. Quando a gente só faz aquilo, a adrenalina é como se fosse uma droga. Apesar do risco elevadíssimo, e de antes daquele episódio ter assistido de perto a alguns acidentes, ia para uma operação de desminagem como quem vai tomar café. Agora, olhando para trás, acho isso extraordinário”, sublinha.
Os estilhaços do Iraque
O tenente-coronel António Quadrado – hoje, aos 42 anos, Comandante do Grupo de Intervenção de Operações Especiais da GNR – também olha o passado sem mágoa. Por muito que ainda carregue com ele estilhaços da Guerra do Iraque. Literalmente. Para percebermos porquê, temos de recuar a 2003. Em março, à boleia da guerra global contra o terrorismo, espoletada pelos atentados de 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos, de George W. Bush, lideraram uma coligação militar multinacional que invadiu o país e que por lá ficou até 2011.
Bem antes, em julho de 2003, o Governo português decidiu-se pela participação da GNR, mais concretamente do Subagrupamento ALFA, nas operações de paz e segurança no território iraquiano. António Quadrado era o segundo-comandante do contingente da Guarda Nacional Republicana, formada por 140 efetivos. “Fazíamos o policiamento da cidade de Nassíria. Só que era um policiamento com viaturas blindadas”, conta.
Até porque o cenário andava longe de ser pacífico. “Nassíria é uma cidade entre dois rios, com várias pontes que funcionavam como pontos estratégicos. Por vezes, sobretudo quando não havia patrulha, as milícias irrompiam, bloqueavam os acessos e procuravam tomar o controlo. Nos quatro meses em que lá estive, aconteceu por duas vezes.”
O episódio mais crítico que António Quadrado viveu no Iraque aconteceu numa dessas situações, quando, nos primeiros dias de abril de 2004, o Subagrupamento ALFA foi chamado a prestar apoio a uma equipa de paraquedistas das forças italianas. Ao contornarem a cidade por um itinerário secundário, para entrar pela parte norte de Nassíria (as milícias tinham ocupado as pontes na parte sul), italianos e portugueses depararam-se com uma emboscada.
Os primeiros tiros mereceram resposta por parte dos militares, motivando um cenário de fogo cruzado. Depois o barulho ensurdecedor dos morteiros. As granadas a rebentar ali tão perto e a situação a ficar tão crítica que a necessidade de retirada era cada vez mais gritante.
A adrenalina era tanta que António Quadrado nem percebeu logo que tinha sido ferido. Foi atingido pelos estilhaços de uma granada, mas, a princípio, nem sentiu dor. Essas só chegaram depois. Depois de se desenvencilhar da emboscada e respirar de alívio, com os seus homens em segurança.
“Fui para o hospital de campanha, mas não fui intervencionado porque o estilhaço ficou alojado perto do nervo ciático e só havia duas opções: cortar o quadríceps, sendo que as possibilidades de recuperação eram quase nulas, ou retirar o estilhaço por endoscopia. Mas havia a hipótese de ficar numa cadeira de rodas. Optei por não mexer e o meu corpo acabou por absorver o estilhaço, formando uma espécie de quisto à volta”, revela-nos.
O episódio teria sido argumento mais do que suficiente para pedir para regressar. Mas, para ele, “não era opção”. “Fomos todos juntos, tínhamos de voltar todos juntos.” Por isso, depois de duas semanas de repouso, voltou ao ativo. E passado um mês até se viu numa outra emboscada, dentro da cidade. Desta vez sem consequências de maior. “Mas a minha primeira reação foi levar a mão à perna.”
Nos tempos que se seguiram, confessa, qualquer barulho mais forte o deixava em sentido. Mas garante que foi uma reação passageira. Quinze anos depois, admite que há um “trauma” que fica sempre, que “o medo e o stress existem”. “Mas costumamos dizer que é isso que nos faz sobreviver. Tentamos transformar isso em aprendizagem.”
Até ao momento, passaram pelo Iraque – outro teatro de operação de alto risco – mais de 200 militares portugueses, sem qualquer baixa mortal a registar. O mesmo não se pode dizer de outros cenários. Segundo dados do EMGFA, houve, desde 1991, 17 militares portugueses a morrer em teatros de operações: cinco na Bósnia, quatro em Timor, dois em Angola, um em São Tomé e Príncipe, um na Indonésia, dois no Afeganistão, um no Kosovo e um, o mais recente, no Mali, na sequência de um atentado terrorista. Os acidentes com explosivos e os acidentes de viação têm sido a causa de morte mais comum.
A efervescência centro-africana
Depois há os feridos. Não há números oficiais, mas os relatos foram-se acumulando ao longo dos anos. Os episódios mais recentes aconteceram na República Centro-Africana (RCA), com dois militares a ficarem feridos, na sequência de confrontos diretos com grupos armados – um com um estilhaço de granada no ombro, outro com uma pedrada na perna.
“É uma das missões de alto risco em que as FND estão atualmente. A par do Afeganistão, do Iraque, do Mali”, elucida o comandante Pedro Coelho Dias, porta-voz do EMGFA. A culpa é da guerra civil que deflagrou no país em 2012 e que envolve o governo da RCA, os rebeldes da coligação Séléka e as milícias anti-balaka.
“O cenário é volátil. Qualquer situação aparentemente simples se pode tornar complexa num ápice. Os grupos armados controlam determinadas áreas e não há vazios de poder. Isto é, quando se afasta um grupo armado de um determinado local, há sempre outro disposto a ocupar aquela área”, contextualiza o tenente-coronel paraquedista João Bernardino, um dos 160 militares que compõem o contingente português na RCA, ao serviço da ONU – além destes, ainda há mais 45, integrados numa missão levada a cabo pela União Europeia.
No caso da equipa de João Bernardino, que está sediada em Bangui, trata-se de uma força de reação rápida da MINUSCA, a missão de estabilização integrada da ONU. “Somos uma espécie de reserva mais musculada. Somos chamados à ação quando há necessidade de fazer face a uma situação mais complexa. Na prática, somos a força com mais capacidade e com mais meios. Uma espécie de último reduto”, explica, chamando a atenção para o trabalho de solidariedade que tem sido levado a cabo pelos militares portugueses na RCA (ver factos e números).
Mas as Forças Nacionais Destacadas, nos mais diversos teatros de operações, cumprem, muitas vezes, missões de outro cariz. “As ações de cooperação no domínio da Defesa, que são missões de capacitação e formação das organizações militares de países amigos, representam uma parte importante do trabalho que é feito pelas FND. É o que estamos a fazer atualmente em São Tomé e Príncipe, por exemplo, com um trabalho de capacitação da guarda costeira local”, refere o porta-voz do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA).
Até porque, frisa Pedro Coelho Dias, a qualidade e a competência das forças portuguesas é “reconhecida internacionalmente”. O porta-voz do EMGFA admite ainda que, apesar do peso crescente das ações de cooperação no domínio da Defesa, as missões humanitárias e de paz continuam a ser “as mais mediáticas e aquelas em que há mais risco”.
Seja quando é preciso intervir para ajudar em situações de catástrofes ou conflitos ou para salvaguardar a segurança de portugueses que se encontram em países com contextos políticos turbulentos ou democracias frágeis.
O orgulho de Bissau
O almirante Fernando Melo Gomes – hoje, aos 72 anos, reformado, depois de uma carreira cheia na Marinha que o levou a Chefe do Estado-Maior da Armada – liderou uma dessas missões. A “Missão Crocodilo”. Foi em 1998, na Guiné-Bissau, na altura em que uma tentativa de Golpe de Estado conduzida por Ansumane Mané (antigo chefe do Estado-Maior), com o propósito de derrubar o então presidente Nino Vieira, mergulhou o país numa sangrenta guerra civil.
Sobre os homens do almirante Melo Gomes caía a missão de resgatar, em segurança, os portugueses que se encontravam na Guiné-Bissau. Bem como outros cidadãos de países amigos. Mas a operação – que, ao longo de um mês, valeu o resgate bem-sucedido de 1237 pessoas – esteve longe de se cumprir sem incidentes.
Desde o fogo que andou a rondar os navios portugueses na primeira evacuação, em Bissau, ao impacto de munições de morteiro sentidas a bordo da fragata Vasco da Gama. Ou à situação, que ainda hoje não consegue explicar, em que um navio senegalês – Nino Vieira tinha solicitado a ajuda do Senegal – apontou armas à Vasco da Gama. “O nosso princípio era não tomar partido. Mas, se fôssemos atingidos, tínhamos de retorquir. E acredite, é mais fácil combater do que esperar”, aponta, antes de garantir que, em situações assim, o medo mal tem lugar: “Nessas alturas, as pessoas só pensam no que vão fazer naquele momento.”
Quando voltou, ficou o orgulho. Vai dizendo, voz embargada, que a guerra “não é uma coisa bonita”, mas recusa ter uma visão “maníaco-depressiva” das experiências por que passou. “A gente não se esquece, mas nós funcionamos por gavetas. E eu prefiro guardar as coisas boas.”
Mesmo que entre as duas passagens pela Guiné-Bissau – já lá tinha estado em 1973, na altura da Guerra Colonial – tenha visto a morte passar-lhe à frente dos olhos e enfrentado a perda de dois dos seus homens, que ainda hoje faz questão de homenagear todos os 10 de junho. “Todos os anos vou a Belém, onde está gravado o nome deles [no Monumento aos Combatentes do Ultramar]”. O tom animado e bem-disposto esmorece, de súbito. As lágrimas parecem querer fugir.
A dor da perda e os flashes da miséria
Paulo Carvalho (45 anos), atualmente técnico superior de gestão financeira na Câmara Municipal da Lisboa, também sabe de cor os contornos da angústia da perda. Foi para os paraquedistas em 1995. Inicialmente, “a intenção era ingressar na PSP” – algo que nunca se concretizou. Mas ir numa missão sempre foi um objetivo. Por isso, quando a oportunidade de ir para a Bósnia surgiu, nem pensou duas vezes. Mesmo que o pai – que esteve no Ultramar – tenha chorado “baba e ranho” quando soube e que a namorada (hoje esposa) tenha ficado consumida de preocupação.
Ainda hoje se lembra bem do primeiro impacto, quando lá chegou. “Tudo destruído. Edifícios, estradas. Só escombros.” Situações críticas vividas na primeira pessoa apenas uma: um apedrejamento, sem feridos a registar, quando escoltavam um grupo de muçulmanos para as primeiras eleições que houve na Bósnia.
Quando olha para trás, não hesita em classificar a missão como uma experiência positiva. Mas nunca mais esqueceu o dia em que, a meio da patrulha, soube, via rádio, que dois companheiros tinham morrido. As explicações vieram depois: a viatura blindada em que seguiam ficou sem travões e caíram numa ravina.
“É uma revolta grande. Naquele dia, quase ninguém falava. Toda a gente é família ali. Somos irmãos de armas.” Entrelaça as mãos, nervoso.
A voz sai-lhe amargurada, sem disfarçar a emoção. É como se voltasse a sentir o pulso àquela angústia, mais de 20 anos depois.
É uma das chagas que a guerra – ou o que se segue à guerra – deixa. Outra é a da realidade que se encontra nos teatros de operações. Imagens de pobreza extrema e de desespero que ficam como tatuagens para a vida. Eduardo Silva (26 anos) também o sentiu. Esteve no Kosovo, em 2015, porque “sempre quis ir para uma missão”. E apesar de o cenário vivido no país, naquela altura, ser já de serenidade crescente e risco diminuto, a realidade assumia, por vezes, contornos esmagadores.
“Encontrámos lá uma miséria brutal. Quando estávamos a fazer as carreiras de tiro, os miúdos chegavam ao ponto de querer ficar com os invólucros das balas, para derreterem e fazerem algum dinheiro. Sempre que podíamos, dávamos-lhes da nossa comida. Essa parte humana é um bocadinho chocante.”
No terceiro ano do curso de Medicina Dentária, já longe das lides militares, Eduardo sente sobretudo um “orgulho imenso”. “Por saber que estava a fazer algo de útil por Portugal.” E saudades. Do convívio. Dos camaradas que lhe ficaram para sempre. Tanto que, garante, ao lado deles, ainda hoje ia para uma missão “onde quer que fosse”.
A angústia de perder tudo
O testemunho de Horácio Mourão, o transmontano que, aos 24 anos, no Afeganistão, foi projetado da torre da viatura blindada em que seguia – e que se lembra do estrondo, da onda de choque, de se enrolar e de pouco mais – valida a tese de que os “irmãos de armas” ficam para a vida.
Mesmo quando a vida é virada do avesso. “Têm estado sempre comigo. São uma grande ajuda. Ainda hoje, quando vou à Carregueira [Regimento de Comandos], sou recebido com passadeira vermelha”, orgulha-se. Eles foram parte do “milagre” – e a mãe, que nunca o abandonou e que ele faz questão de visitar todos os dias. Sem exceção.
Depois do calvário, formou-se no Instituto Português de Fotografia. Dedicou-se à pintura e à escultura, para ocupar o tempo. E hoje até já corre – “uma hora, uma hora e meia por dia” -, mesmo que nunca tenha recuperado totalmente de uma das pernas. Mas, como no lema que aprendeu assim que chegou aos Comandos (“Mama Sumae – prontos para o sacrifício”), a resiliência fala mais alto.
Mais alto que a chaga. Mesmo que a chaga seja inapagável. Até porque nunca mais voltou a conseguir trabalho.
“Isto de não poder estar no ativo revolta-me. A minha ideia, quando fui para aquela campanha, era voltar, acabar os estudos, na Escola Técnica do Exército, e seguir a carreira militar. Mas perdi isso. E tinha namorada. Fiquei sem namorada. O pior é esta angústia. Esta angústia de perder tudo.”