Caxias: um hospital atrás das grades

O topo da colina é guardado por uma capela pintada de branco. Aos pés dela o Mundo parece estender-se em cascata. A oeste, o Oceano Atlântico. Nas restantes frentes, o casario mistura-se com o vaivém do tráfego diário. Aquele podia ser um qualquer lugar. Só que “o exterior não é compatível com o sofrimento interior”. As palavras são de quem conhece bem a realidade dentro dos muros coroados com arame farpado. No S. João de Deus, a única unidade hospitalar prisional do país, quem paga pelos erros espera com paciência que a saúde melhore. Para quem cuida não há outra forma de levar os dias a não ser com profissionalismo e humanidade.

Simão deixou-se levar pelas vozes. Acabou detido por tentativa de homicídio. Os primeiros três (ou quatro) meses passou-os no Estabelecimento Prisional da Polícia Judiciária de Lisboa. Depois, foi transferido para Caxias, no reduto Sul, onde esteve mais três meses. Em tribunal, declararam-no inimputável. Por causa das vozes. Das visões. Da esquizofrenia.

Quando foi a uma consulta no hospital prisional, conta que a médica notou logo que ele “não estava bem”. Andava “cansado”. Perguntou-lhe “se queria ficar para repousar”. Aceitou. “Começaram a cuidar de mim e descobriram que eu tinha esquizofrenia.” Simão não é o nome verdadeiro do jovem de 24 anos que se sente tranquilo na sua história.

No lusco-fusco de uma sala de reuniões, no edifício da Direção do Hospital Prisional de S. João de Deus, em Caxias (Oeiras), responde às perguntas, pausadamente. “Estou aqui há quase um ano. Tenho uma data de comprimidos para tomar, mas já são menos. Entretanto, entrei numa fase de evolução, que me fez reduzir a medicação. Agora, tenho a doença controlada.”

São muitas as histórias que atravessam o portão verde do S. João de Deus. O estabelecimento, que deve o projeto ao arquiteto Rodrigues Lima, começou a ser construído em 1950, pelas Brigadas de Trabalho Prisional. Inicialmente, só tinha um pavilhão, contíguo à capela, destinado a tratar reclusos com patologias infetocontagiosas. Foram anos assombrados pela tuberculose. O espaço ficou pronto em 1953.

Um segundo complexo haveria de ser inaugurado a 18 de setembro de 1962, pelo então presidente da República, Américo Thomaz, e pelos ministros da Justiça e das Obras Públicas, João Antunes Varela e Eduardo de Abrantes Oliveira. As mais de 100 camas da unidade tornaram possível a assistência clínica e hospitalar aos reclusos que não tinham condições de tratamento nas pequenas enfermarias dos estabelecimentos prisionais onde cumpriam pena.

Mas, verdadeiramente, o grande passo deu-se em 1981. O que poderia ser só um detalhe mudou tudo. Por portaria, alterou-se o nome do estabelecimento. Em vez de “Prisão-Hospital” passou a chamar-se “Hospital-Prisão”. Ainda hoje, o S. João de Deus é a única unidade do género no sistema prisional português. E mantém-se praticamente inalterada no que toca à estrutura de funcionamento: prestar cuidados de saúde especializados à população reclusa de todos os estabelecimentos prisionais do Continente e das Regiões Autónomas. E, pelas suas características, é considerado um estabelecimento prisional de alta segurança e de elevado grau de complexidade de gestão.

“Aqui, o modelo é exatamente igual ao de um hospital normal. Por exemplo: os reclusos que precisem de uma consulta de ortopedia vêm a uma consulta externa. Não é externa para a comunidade livre, é externa para as prisões. São atendidos e, se precisarem, medicados. Depois, voltam para o estabelecimento prisional de origem ou ficam internados. No caso de ficarem, assim que recebem alta, regressam ao local onde estão a cumprir pena”, explica Maria João, enfermeira-diretora.

A unidade tanto recebe utentes em ambulatório como consultas de diversas especialidades (psiquiatria, gastroenterologia, diabetologia, neurologia, cirurgia, entre outras). Também presta cuidados em regime de internamento (infeciologia, medicina interna, cirurgia, cuidados continuados, etc.). E ainda dá apoio de fisioterapia, patologia clínica e imagiologia. Todas as outras especialidades que os utentes necessitem, e que o S. João de Deus não contempla, terão de ser consultadas fora dessas portas, em unidades civis.

Anualmente, a média de população internada no hospital-prisão ronda os 700 doentes. Já nas consultas externas o número sobe para cerca de 12 mil. No total, o estabelecimento, que conta com 242 profissionais, é composto por três edifícios: o Pavilhão Clínico (com 135 camas, mais 14 destinadas ao isolamento clínico); o Pavilhão Administrativo e a Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental, onde, num anexo, os reclusos participam nos serviços de manutenção do hospital.

“Esta unidade não está vocacionada para o cumprimento de penas. Pode acontecer, mas aquilo que se pretende é que as pessoas, depois de estabilizadas, regressem ao estabelecimento prisional onde estavam detidas”, acrescenta Ana Cabral, diretora do S. João de Deus.

Contudo, as exceções existem. Principalmente na Clínica de Psiquiatria, onde Simão está a ser tratado. No caso dele, a medida que o tribunal lhe decretou refere que o utente terá de cumprir entre três a dez anos de internamento. No processo de reabilitação de qualquer doente, o corpo clínico preocupa-se em diariamente puxar os utentes para um contexto de normalidade. Com ocupações diárias, como o trabalho na lavandaria ou noutros serviços.

“Aqui, tenho condições que me ajudam imenso a organizar a minha vida”
Simão

“Aqui, tenho condições que me ajudam imenso a organizar a minha vida”, diz Simão. E enumera. Todos os dias faz a cama, trata da higiene pessoal, trabalha na cozinha a lavar louça e, quando é preciso, também ajuda a empratar. Mas o mais importante é que já prepara a sua medicação sozinho. “No futuro, vou saber tratar de mim.”

Toda essa autonomia levou Simão a pedir recurso. “Evoluí muito e gostava de fazer o tratamento em ambulatório, para poder ir para casa. Eu era inimputável perigoso, mas a perigosidade já passou. Já não tenho visões, nem ouço vozes.” O S. João de Deus foi a sua salvação. “Se eu estivesse numa prisão normal, estava com a cabeça toda lixada.”

A questão dos inimputáveis é muito sensível dentro da unidade prisional. É essa a designação atribuída às pessoas que não podem ser responsabilizadas por um facto punível, uma vez que se prova não terem as faculdades mentais e a liberdade necessárias para avaliar o ato que praticaram. Quando assim é os tribunais não aplicam penas de prisão, mas medidas que podem passar por tratamentos hospitalares.

“Se eu estivesse numa prisão normal, estava com a cabeça toda lixada”
Simão

Determina o Código Penal, no n.º 1 do artigo 91, que “quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie”.

Dispõe depois o n.º 2 do artigo 126 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade que o internamento é executado preferencialmente em unidade de saúde mental não prisional. É aí que reside o problema. Ana Cabral confirma que o hospital prisional sempre recebeu pessoas inimputáveis.

“Atualmente até temos bastantes. Estão aqui a ser acompanhadas por nós porque lhes foi decretada uma medida de internamento, mas também podiam estar num hospital civil. Os tribunais decidem e elas são colocadas aqui, porque há indicação de que a pessoa necessita de ser internada num local para tratamento com condições de segurança associadas, e nós temos as duas coisas.” Acontece que, por causa disso, o serviço está lotado.

A Psiquiatria está dividida em duas alas. A dos agudos, com 19 camas para homens e oito para mulheres. E a ala das evoluções prolongadas, para as pessoas que demoram mais tempo a recuperar, tem espaço para 24 utentes. É nesse pavilhão que a gestão das camas se faz com maior dificuldade. Domingos Silva, psiquiatra no hospital, detalha as principais patologias que levam os utentes àquele pavilhão.

“Esquizofrenias, depressões com intenções de suicídio, algumas situações de distúrbios afetivos, psicoses maníaco-depressivas e também temos muitos débeis mentais, que não deveriam estar aqui porque estão a ocupar vagas de doentes em crise nas cadeias.” O médico defende que, apesar de o hospital psiquiátrico ter menos carga negativa do que uma prisão, o que reduz o estigma de quem está preso, “a verdade é que, se houvesse estruturas mais ajustadas à realidade, algumas destas pessoas estariam melhor lá fora”.

Maria João reforça a mensagem e atribui alguma responsabilidade ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). “O facto de o SNS não ter respostas adequadas não serve de desculpa para ter estas pessoas dentro da prisão. Na minha opinião, a grande maioria dos doentes mentais que nós temos aqui podiam estar lá fora. E até vou dizer mais – se calhar, podiam nunca ter cometido crimes e entrado na prisão se tivessem sido acompanhados devidamente e em tempo útil.”

Processo legislativo em curso

À NM, o Ministério da Justiça elucidou que, à data, o país dispõe de duas unidades de psiquiatria forense prisional (Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Caxias e a Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo) e de duas unidades de psiquiatria forense não prisional (uma no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, antigo Hospital Júlio de Matos, e outra no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Unidade Sobral Cid).

Revelou ainda que “está em curso o processo legislativo para a regulamentação das condições de internamento de cidadãos inimputáveis em unidades de psiquiatria forense do SNS”.

A regulamentação irá, por exemplo, permitir “clarificar os critérios de internamento” dos utentes. Devendo “apenas ser internados nas unidades de psiquiatria forense dos Serviços Prisionais aqueles cidadãos cuja situação requeira especiais medidas de segurança, devendo os restantes ser internados nas unidades de psiquiatria forense do SNS”.

O Ministério da Justiça adiantou ainda que tem a intenção de “reorganizar a Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Caxias, de forma a que a mesma seja classificada como Unidade de Psiquiatria Forense Prisional, vocacionada para funcionar como unidade de ingresso inicial”. Passaria, assim, “a efetuar o acolhimento inicial dos indivíduos declarados inimputáveis pelos tribunais”, para que, depois, sejam “sujeitos a um processo de avaliação, antes de ser escolhida a unidade de internamento onde cumprirão a medida de segurança (prisional ou não prisional, de acordo com as exigências de segurança que o caso requeira)”.

Também o Ministério da Saúde reconheceu que, “de facto, o número atual de lugares disponíveis em unidades forenses tem sido insuficiente para as necessidades”. Pensar em soluções seria premente. Foi com esse objetivo que “o Programa Nacional de Saúde Mental esteve diretamente envolvido na elaboração de uma proposta de regulamento do funcionamento das unidades forenses”, juntamente com o Ministério da Justiça, “tendo aproveitado a oportunidade para iniciar, no âmbito da Direção-Geral de Saúde, um projeto de melhoria do sistema forense no país, que será apresentado em 2019”.

A verificar-se, a Clínica Psiquiátrica do Hospital S. João de Deus passará, em breve, a contar com mais camas para receber urgências. Como, por exemplo, no caso de haver uma tentativa de suicídio dentro de um estabelecimento prisional, o que obriga a que o recluso em causa seja diretamente encaminhado para o S. João de Deus. E que seja devidamente acompanhado.

O ambiente em que estão inseridos e a dedicação dos profissionais que lhes é votada assumem um caráter importantíssimo na eficácia da recuperação, que também se prevê que seja no menor tempo possível. Outra componente fundamental na recuperação é a ligação dos reclusos ao quotidiano. Todos os aniversários são assinalados num quadro. O mesmo se passa com as efemérides. O festejo dessas datas é encarado como terapêutico. “A preparação das pessoas para o regresso à liberdade, com a maior competência possível, é um dos nossos objetivos”, refere Ana Cabral.

Uma vez que a duração do tratamento em psiquiatria não é fixada no tempo, o doente só abandona as instalações do S. João de Deus quando os médicos o consideram apto para se integrar na sociedade, sem representar risco para si ou para os outros. Todavia, há uma média que coloca os doentes na ala de evolução prolongada cerca de duzentos e poucos dias. Mas alguns estão lá desde que o serviço abriu, em 2014. Motivo? Falta de apoio familiar ou dificuldade em encontrar instituições que os possam acolher e tratar, após saírem do hospital-prisão.

A libertação dos reclusos não é da responsabilidade do S. João de Deus. Pertence ao tribunal de execução de penas ou ao tribunal da condenação. De qualquer modo, o que o hospital-prisão faz, no caso da doença mental, é um encaminhamento. “A pessoa vai para a família, e nós ajudamos a estabelecer uma ligação com os serviços de saúde da comunidade. Ou vai diretamente para uma instituição, quando não tem família. E ainda há a hipótese de regressar ao estabelecimento prisional, caso raro”, esclarece a diretora.

Ainda que já não seja parte responsável, o hospital prisional não perde o contacto com os reclusos. Não existe uma regularidade, mas pelo menos duas ou três vezes por ano, dependendo dos casos, a unidade liga às famílias ou às instituições para saber como estão os utentes. Mas o contrário também acontece. “Por vezes, temos pedidos de ajuda de familiares, porque estão com dificuldades, porque há qualquer coisa que não corre bem, e sabem que estamos disponíveis. E então ligam e nós fazemos o que está ao nosso alcance para ajudar”, sublinha Ana Cabral.

Tudo isto não se resume apenas ao zelo profissional e ético. O vínculo que se cria entre cuidadores e reclusos, nessas circunstâncias, não é difícil de entender. A enfermeira-diretora encontra rapidamente o fio à meada. “A ligação entre profissionais e doentes aqui dentro é diferente. Logo à partida, porque eles até podem ter visitas, mas não são tão assíduas como as dos hospitais do SNS. Depois, há pessoas que estão cá internadas há muito tempo. E, por outro lado, isto de se assinalar o dia de aniversário com bolo – porque a pessoa está sozinha – é uma coisa que nos marca a todos.”

O que acaba por exigir dos profissionais “competências acrescidas”. E, por fim, “também é preciso acreditar que temos alguma coisa a dar a estas pessoas”, assegura Maria João. O que significa isso na prática? “Que, às vezes, ficamos a saber que a pessoa X cometeu um crime violento pelo televisor e que no dia seguinte vai estar à nossa frente para receber tratamento. Emocionalmente, é uma gestão complicada.”

A dificuldade de gerir emoções

Utentes que são reclusos e reclusos que são doentes. Alguns com históricos pesados. O “Vampiro do Linhó”, condenado por ter matado dois reclusos e por lhes ter sugado o sangue. João Cerqueira Pinto, o homem que asfixiou a filha de seis anos até à morte em S. Mamede de Infesta, Matosinhos. Adelino Briote, conhecido como “o monstro de Barcelos”, acusado de quatro homicídios – entre as vítimas havia uma mulher grávida de oito meses. Carlos Silvino, “Bibi”, suspeito de envolvimento no escândalo de pedofilia com crianças da Casa Pia. Esses são só alguns dos utentes recebidos em S. João de Deus.

“Pode haver a ideia de que pelo facto de as pessoas estarem presas não há o mesmo investimento, mas aquilo que a senhora enfermeira diz é absolutamente verdade. Por se pedir aos profissionais uma exigência maior, isso significa que o desgaste afetivo também vai ser maior. E os utentes reconhecem o respeito e o humanismo com que são tratados. Sabem que estamos aqui para que se sintam melhor, é essa a nossa missão”, corrobora Ana Cabral. Nesse sentido, continua a diretora, é importante que os grupos que ali trabalham, vigilância incluída, “tenham sensibilidade para perceber que é um mundo um bocadinho diferente dos estabelecimentos prisionais. Embora nunca nos possamos esquecer que é uma prisão, ainda que tenha uma natureza diferente”.

Essa diferença é sentida por todos. Apontada por todos. Enaltecida por todos. Dos guardas aos reclusos. Hugo, vamos chamar-lhe assim, tem 66 anos. Esta não é uma estreia no sistema prisional. Mas é a primeira vez nesta unidade. Detido por posse e e tráfico de droga, foi mandado para casa com uma pulseira eletrónica. Uma infeção deixou-o em maus lençóis.

“Às vezes, esqueço-me que estou preso, principalmente na minha situação, como trabalho no bar, tenho sempre o dia ocupado”
Hugo

“Cortaram-lhe a via biliar, parte do pâncreas, metade do estômago e a vesícula.” Acabou a recuperar no S. João de Deus. “Às vezes, esqueço-me que estou preso, principalmente na minha situação, como trabalho no bar, tenho sempre o dia ocupado.” Hugo tem razão. Apesar de a remodelação continuar a não passar de um desejo, a arquitetura dos edifícios ajuda os reclusos a abstraírem-se da dura realidade em que estão inseridos.

Os corredores largos e com azulejos, bem como a luz natural que enche o espaço, são duas características marcantes do hospital-prisão. Do ponto de vista humano, só tem boas referências para dar. “Desde a mulher da limpeza até à senhora diretora, são todos cinco estrelas.” Em tudo “é uma prisão modelo”. Ele sabe. “Já estive num estabelecimento e posso comparar, não tem nada a ver.”

A experiência é partilhada por Bartolomeu Canhoto, mas do outro lado da barricada. Ele é um dos chefes do corpo da Guarda. Trabalha no São João de Deus há 17 anos. Mas, antes, esteve no Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus. “É completamente diferente.” A começar pelo mais simples. “Aqui, o guarda prisional também está diretamente em contacto com o recluso. Todas as carências ou problemas que o recluso tem, nomeadamente afetivos, nós também tentamos ajudar a ultrapassar, reencaminhando-os para os diversos serviços.” A pressão “também é muito menor”. Só há uma coisa que parece ser igual: “A carência de meios humanos e materiais, como as viaturas. Isso não muda em relação a outros estabelecimentos”.

E esse aspeto tem cada vez mais impacto no dia-a-dia do estabelecimento prisional. É que à restrição da liberdade soma-se um estado de saúde debilitado, cada vez mais agravado pela idade avançada dos doentes. “Os presos de 2018 não são os presos de 2000. A população está muito envelhecida. Há uma quantidade enorme de cadeiras de rodas aqui dentro. E com patologias que necessitam de amputações, como demência e diabetes, a aumentar. Pessoas que saem daqui já com 80 anos. Muitos já chegam doentes. Outros adoecem cá. Vamos ter cada vez mais doentes dentro do sistema prisional. Há que pensar nisso”, alerta Ana Cabral.

Maria João tem uma ideia do rumo que se deveria tomar. “Este hospital serviu bem quando abriu. Serviu até muito bem na época do boom da SIDA, deu resposta a centenas, se não milhares, de doentes que passaram por aqui naqueles anos, mas, neste momento, as patologias são outras, as necessidades são outras e o hospital não está preparado para isso.”

A enfermeira refere-se à estrutura arquitetónica. “Precisamos de unidades mais pequeninas.” Fala da necessidade do cuidado adequado a cada doença. “Temos muitos utentes oncológicos, muitos doentes em fase terminal.” E a conclusão parece-lhe óbvia: “Isto precisa de obras sérias. O espaço físico tinha de ser repensado. Reestruturar o interior do hospital, em algumas áreas, em alguns pisos”. Fazer, “pelo menos, mais um pavilhão”. Os que existem já não têm capacidade.

E, por fim, o básico. “Investir em recursos humanos.” Porque de nada adiantaria “fazer grandes obras e pavilhões, ter camas bestiais e depois não haver profissionais de saúde”. Parece muito? E é. “Mas é uma gota de água no país inteiro”, sugere Maria João. Já Ana Cabral sabe que “em todos os serviços públicos há dificuldades”. Aliás, adianta, “basta ir a um hospital público para ouvir falar do mesmo: dificuldade”. O dinheiro é sempre pouco. E no São João de Deus o problema tem, obviamente, base económica.

Um caminho de confiança

Mas os lamentos não esperam respostas a curto, médio ou longo prazo. “Nós sabemos o que o sistema precisa, sabemos que poderíamos dar mais resposta. Não estamos perdidos no nosso objetivo, não temos é dinheiro.” Mas, como em tudo na vida, “as coisas vão-se fazendo, paulatinamente, com esforço, mas consegue-se”. Por exemplo: “No nosso serviço de medicina, que vai abrir no quarto andar, vê-se uma diferença imensa e a melhoria que isso vai trazer aos doentes, que é algo fundamental. Mas também aos profissionais. Todo o ambiente muda, porque antes estava tudo velho”.

Sobre a reabilitação do hospital-prisão, o Ministério da Justiça recorda que o S. João de Deus teve “algumas obras de melhoramento” recentemente. E que, não há muito tempo, “foi assinado um protocolo com a Câmara Municipal de Oeiras que permitiu requalificar um espaço de recreio”. Acrescentou ainda que “o hospital também recebeu mais enfermeiros (dos 64 novos que entraram no quadro), psiquiatras e auxiliares de ação médica”. Antes disso, em fevereiro do ano passado, foi criada, no hospital, “a primeira unidade nacional de cuidados de saúde continuados para reclusos. Por fim, fala nas obras do 4.º piso: “No âmbito do internamento em medicina, iniciará, em breve, funcionamento uma unidade de cuidados especializados”. Terá de ser um dia de cada vez.

No alto da colina, próximo à igreja pintada de branco, de onde o Mundo parece estender-se em cascata, é revelado um segredo. “Independentemente de nós, profissionais de saúde, sermos ou não católicos, acreditamos que só o S. João de Deus nos pode ajudar a ultrapassar as dificuldades que vamos encontrando”, frisa a diretora. A escassos metros dali, uma estátua do patrono do hospital-prisão ergue os braços aos céus. Na base, uma frase curta: “Fazei o bem, irmãos”. Talvez a confiança dos profissionais no santo seja tão grande como a do S. João de Deus neles.