Em Castro Laboreiro, ainda há nómadas que levam a casa às costas de inverno e de verão

Texto Carolina Pelicano Falcão | Fotografias Gonçalo Delgado

Curva e contracurva. Montanha adentro. Rochas de granito. Muitos carvalhos. Quem entra em Castro Laboreiro pelos caminhos do Soajo parece que desliza por um trilho secreto pouco percorrido, tal a estreiteza da estrada e a natureza em estado de graça. Num instante as nuvens se tornam o chão mais branco onde a vista pousa.

São dez da manhã mas, para Isalina Fernandes e Leonor Rodrigues, mãe e filha, já pouco falta para o jantar, que aqui quer dizer almoço. A esta hora, na mala da carrinha pick-up, à porta de casa, já se veem caixas empilhadas e cestas acauteladas, coroadas por uma tábua de passar a ferro. Não há dúvida: estamos no fim do verão.

De dezembro e março a população castreja foge das temperaturas baixas e da neve nas regiões mais altas e, no verão, do calor das regiões mais baixas.

Há meses que a estação estival ficou para trás no calendário, mas este dia de inverno assinala a mudança que o mesmo não regista: a tradição secular dos aglomerados à volta da vila de Melgaço, distribuídos pelas duas margens do rio Laboreiro, segundo a qual, duas vezes por ano, a população se desloca entre as terras mais altas, as brandas, entre os 1050 e os 1150 metros de altitude, e as mais baixas, as inverneiras (700 a 800 metros), num nomadismo cunhado pelo sabor das estações.

De dezembro e março a população castreja foge das temperaturas baixas e da neve nas regiões mais altas e, no verão, do calor das regiões mais baixas. As brandas são também os terrenos mais férteis, daí que a maior parte do ano seja passado nestas terras.

«É uma vida de ciganos», diz Isalina, de 72 anos, enquanto ciranda entre a lida da mudança. «Andamos sempre com tudo às costas.»

Aqui, em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, vivem umas 500 pessoas e já são poucas as famílias castrejas com as duas residências anuais. Mas Isalina e Leonor aqui estão para manter a história e a tradição. «É uma vida de ciganos», solta a mulher de 72 anos enquanto ciranda entre a lida da mudança. «Andamos sempre com tudo às costas.» Entra no galinheiro, ultrapassando certeira a gaiola onde já encurralou as galinhas. Agora é a vez de pegar nos coelhos pelas orelhas.

Enquanto trabalha tagarela. O galego sai-lhe boca fora com a naturalidade de língua materna. Estamos na raia, a Galiza é já ali. Toda a vida de Isalina, como a dos castrejos da sua geração, foi com um pé cá, outro lá. «Pronto, agora hemos a levar isto abaixo. Que trabalheira», resmunga enquanto pega nas gaiolas dos animais, com um sorriso que não denuncia lamentos.

Sentada no pátio da casa na branda de Padrosouro, um dos 46 aglomerados que compõem Castro Laboreiro, Isalina, com o lenço negro enfiado na cabeça, bochechas rosadas do frio, plainas brancas atadas às canelas e toda trajada de negro, é o retrato vivo da mulher castreja doutros tempos.

Apenas o gado faz a travessia caminhando. «Antigamente até os potes de cozinhar se levavam. Hoje só levamos para a outra casa a roupa de vestir», diz Leonor.

O som dos chocalhos que chega desde a estrada desperta-a. Não precisa de ver Rubia e Bonita, as vacas, para saber que são elas que chegam com Leonor. «Distingo-as pelo chocalho. Não há dois iguais.» De um salto se levanta para as ir pôr a pastar. Há que abastecê-las para a viagem desta tarde, rumo à inverneira de Canheiras. Apenas o gado faz a travessia caminhando. «Antigamente até os potes de cozinhar se levavam. Hoje só levamos para a outra casa a roupa de vestir», diz Leonor.

A mudança é bem mais simples agora. Isalina e Leonor põem tudo o que levam na carrinha. Antigamente tudo se fazia a pé e carregado em carros de bois: a roupa para vestir e para a cama, os utensílios domésticos e as ferramentas agrícolas, como uma romaria a cruzar as montanhas. «E por arriba dos carros de bois iam os gatos presos por uma corda», recorda Isalina, para quem estas histórias não são mais do que a sua própria. «Quando havia doentes, fazia-se-lhes uma caminha no carro de bois e lá se ia com elas por aí fora. Quantos não morreram por esses montes durante as mudanças!»

Não se sabe quão antiga é esta tradição. Segundo José Domingues, investigador da Universidade Lusíada do Porto, o primeiro registo a dar conta desta tradição data de 1527. Mas «não se torna difícil conjeturar que este nomadismo do Laboreiro tenha as suas raízes em deslocações de pastores, intrínsecas aos povos mediterrânicos de montanha, desde tempos muito recuados», escreve em Brandas e Inverneiras: o Nomadismo Peculiar de Castro Laboreiro (2007).

À semelhança das mulheres da sua geração, teve o marido – que morreu há quatro anos – emigrado em França por quatro décadas. «Só cá vinha uma vez por ano. Às vezes, de dois em dois», diz. «Tinha de ser, era preciso trabalhar.»

Isalina é filha de mãe solteira. Ela e cinco irmãos. «Todos filhos de pais diferentes. Mas a minha mãe nunca nos fez faltar nada. Todos aprendemos a ler e escrever. E sempre foi o campo que nos deu de comer.» Com a mesma valentia com que a mãe criou seis filhos sem qualquer marido, Isalina seguiu-lhe os passos. À semelhança das mulheres da sua geração, teve o marido – que morreu há quatro anos – emigrado em França por quatro décadas. «Só cá vinha uma vez por ano. Às vezes, de dois em dois», diz com naturalidade. «Tinha de ser, era preciso trabalhar.»

A independência é traço que lhe assenta na perfeição. Tanto ela como a filha Leonor viveram sempre do campo, sozinhas cuidaram do seu império. E não se pode dizer que seja coisa pouca. Se hoje a agricultura é ajudada por maquinaria, num passado recente a força do corpo era ferramenta vital. «Aprendemos a fazer tudo desde cedo», diz Leonor. «A cortar feno à foice, plantar, pastar o gado pelas montanhas, adubar os campos carregando estrume nos carros de bois, a domar as vacas. É preciso ensiná-las porque não nascem a saber trabalhar. Não é fácil, elas são bravas.»

«Quando era jovem, íamos para os montes fazer bailes. Era uma vida dura mas feliz. Veio o 25 de Abril, evoluiu tudo. Tínhamos um doutor todas as semanas, dinheiro, casas. Mas veio a televisão e foi uma desgraça, estragou o processo.»

Depois de deixarem a carrinha na inverneira de Canheiras, com a primeira remessa de pertences, mãe e filha fazem a segunda viagem da muda. Hoje contam com a ajuda de um vizinho, que lhes dá boleia outra vez até à casa de verão. Leonor põe-se agora ao comando do trator e, com a mãe sentada no atrelado, junto dos cães, começa a descer lentamente os trilhos até mais baixas altitudes, fazendo as curvas do caminho como se nelas se espreguiçasse.

A viagem é lenta, observa-se com vagar cada pedra, cada folha e cada ribeiro que cruzam o caminho. É tudo isto que Isalina vê também, de lenço negro ao vento, sentada no atrelado, afagando distraidamente a mão no focinho da cadela Lassie. «Esta é a terra do descanso, a terra da liberdade. Aqui ninguém nos invade.»

Castro Laboreiro é hoje uma vila de população reduzida, mas houve dias diferentes. «Quando era jovem, isto era uma alegria. Íamos para os montes fazer bailes, andávamos sempre por aí. Era uma vida dura mas feliz. Quando veio o 25 de Abril, evoluiu tudo. Tínhamos um doutor todas as semanas, dinheiro, casas.» Isalina vai puxando pela memória. «Mas veio a televisão e foi uma desgraça, estragou o processo. Antes juntávamo-nos a fazer serões a fiar. Está certo que hoje é um viver mais tranquilo, mas é um viver triste.»

Nesta travessia, a distância de uma casa à outra não se mede em quilómetros – serão uns dois ou três –, mas antes através da disposição das vacas em colaborar com um marchar sem desvios.

Depois dos dois carregamentos, falta o gado. Isalina já não voltará a subir à branda. Agora é hora de caminhar, como antigamente. Quem vem ajudar Leonor é a tia Amabélia. Juntas comandam a procissão bovina, falando com as vacas numa língua de urros e exclamações. Nesta travessia, a distância de uma casa à outra não se mede em quilómetros – serão uns dois ou três –, mas antes através da disposição das vacas em colaborar com um marchar sem desvios. Quem manda é a vara que Leonor e Amabélia carregam, para as vergastadas no lombo dos animais.

Uma hora depois, quando chegamos à inverneira de Canheiras, Isalina está à porta, com as mãos na cintura. Outra vez, os chocalhos denunciam. A mudança está feita. «Estou feliz da vida, ainda faço a tradição. A Leonor, por ela, ficava sempre lá em cima. Eu prefiro aqui. A casa lá de cima é melhor, mas gosto daqui. Foi a primeira casa que construí, há cinquenta anos. E foi aqui que morreu o meu marido. Eu, se calhar, também aqui morro. Enquanto mandar, havemos de fazer a muda. Quando morrer a minha filha fará como quiser.»

Comparada com a branda de Padrosouro, onde a casa parece estar plantada no céu, com vista limpa para qualquer rota sideral, aqui tudo é resguardado. Mas basta subir a escadaria que leva à cozinha para, do alpendre, ver que os colossais pedregulhos continuam a traçar o horizonte, irreverentes a brotar da terra. É esta a vista para os próximos meses. Até voltarem a subir a serra outra vez.