Texto de Filomena Abreu
Porfírio Valente e Maria de Lourdes saíram de Portugal há 60 anos, em busca de uma vida melhor. Assentaram no bairro dos Campos Elíseos, em São Paulo, no Brasil, onde em 1954 compraram uma casa. Na altura, aquele centro era caracterizado por imponentes moradias e largas avenidas.
Depois de tomarem conta de uma mercearia, na alameda de Glete, mesmo em frente ao prédio que habitavam, nunca sonharam que o futuro pudesse reservar-lhes outra coisa que não fosse segurança e estabilidade. E foi para isso que sempre trabalharam. Mas o destino trocou-lhes as voltas. A morada dos ricos mudou de cara nos anos 1990, quando o bairro foi invadido por consumidores e traficantes de droga. Foi assim que o paraíso paulista se transformou na “cracolândia”.
Nas duas últimas décadas, o governo tentou resolver o problema. Intensificaram as intervenções da polícia, instalaram equipamentos culturais nas imediações – como a Sala São Paulo e o Museu da Língua Portuguesa -, com a esperança de revitalizar a zona. Porém, o problema persistiu. Decidido, o governo não desistiu. Enquanto a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana patrulhavam as ruas, as intervenções urbanísticas continuaram. Em março, o estado inaugurou 914 apartamentos erguidos após uma Parceria Público-Privada. E também está já prevista a construção de uma escola de música e de um terminal de autocarros, com a possibilidade da empresa que vencer o concurso poder vir a construir um centro comercial.
Já para o quarteirão onde viviam os portugueses, a chamada “quadra 36”, ocupado por casas, pensões e pequenos negócios, os planos eram outros. De acordo com uma reportagem da BBC Brasil, o casal foi obrigado pelo poder público a abandonar o apartamento onde vivia, porque ali vai nascer a nova unidade hospitalar – Pérola Byington, que será “uma referência no atendimento de mulheres”, diz o governo. O plano já era conhecido desde 2015.
Assim, os idosos portugueses são uma das mais de 200 famílias que saíram. Quase sete meses depois das expropriações, os antigos moradores ainda tentam reconstruir a vida. A BBC conta que “alguns não tiveram qualquer auxílio do Estado”, outros foram viver em espaços de sem-abrigo ou em favelas, longe do centro. E, “um terceiro grupo, como Porfírio e Maria de Lourdes, teve as suas antigas propriedades derrubadas e ainda não recebeu indemnização por isso”.
O casal de portugueses passou a viver nos anexos da mercearia. “Comprei [a casa] com o meu dinheiro. Não roubei de ninguém, não. Está tudo registado, pagava todos os impostos. Um dia, chega um funcionário da prefeitura e fala: ‘sai fora daqui’. E eu e a minha senhora tivemos de sair de mãos abanando. Até agora não recebi um centavo. Isso é justo?”, relata o marido.
Um outro português deu um testemunho idêntico na mesma reportagem. Manuel Fernando Moreira, de 63, chegou à região ainda pequeno, quando os pais emigraram de Portugal para São Paulo. Na década de 1960, o pai comprou uma das casas e abriu um bar em frente – comércio depois herdado por Manuel Fernando. “Chegamos muito antes do crack [droga]. Eu jogava bola na rua, pegava o bonde [elétrico] na frente de casa para andar pelo centro”, lembrou. Em abril tiveram de sair. Naquele imóvel de 320 metros quadrados moravam 21 parentes do comerciante.
“Deram um mês para a gente sair. Depois, vieram e derrubaram tudo”, garantiu à BBC. Agora, diz que vive de favor na casa de um afilhado. O resto da família também foi acolhido noutra zona da cidade. Manuel Fernando Moreira diz que até agora a família não recebeu nenhum centavo pela propriedade expropriada pelo governo, nem qualquer ajuda do poder público. “A gente pagava 5 mil reais [1180 euros] de IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano] todos os anos, tinha todos os documentos certos. Perdi também o meu bar, que foi aberto pelo meu pai há 60 anos e era sustento meu e do meu filho. Estou vivendo de favor, dormindo no chão. Isso não tem explicação”, lamentou.
A reportagem fala ainda de um conjunto de trâmites legais que foram ignorados nas expropriações. “A retirada dos antigos moradores foi contestada pelo Ministério Público, que chamou as remoções de ilegais. Desde 2014, a quadra 36 foi classificada pela prefeitura como uma Zeis (zona especial de interesse social), porção do território que deve ser preferencialmente destinada a moradia social para pessoas de baixa renda.”
Por lei, todas as áreas com esse selo devem ser geridas por um conselho formado por membros do poder público e da sociedade civil. Isso significa que qualquer mudança no local deve ser aprovada. Ao pedir que os moradores fossem retirados daquela zona, o governo “não informou a Justiça que a quadra 36 era uma Zeis, como manda a lei”, segundo o promotor de Habitação e Urbanismo Marcos Vinícius Monteiro dos Santos. O conselho gestor só foi formado dois dias antes do início das desapropriações e, por isso, a intervenção no território não terá sido votada.
“O poder público desconsiderou a legislação. Além disso, os moradores deveriam ter sido cadastrados e, na saída, já terem uma alternativa habitacional garantida. Isso não aconteceu, por isso consideramos a ação ilegal”, disse o promotor ao repórter brasileiro. Inicialmente, a Justiça aceitou os argumentos do Ministério Público e impediu as remoções. Mas, dias depois, “um desembargador liberou todos os processos”.
Um dos responsáveis pela construção do hospital, Ricardo Tardelli, afirmou à BBC News Brasil que a Secretaria Estadual da Saúde já depositou as indemnizações das famílias, mas alegou que “é possível que haja problemas burocráticos que impeçam a retirada do dinheiro”.
Os despejos na “cracolândia” devem continuar nos próximos meses. Os quarteirões 37 e 38, onde moram centenas de pessoas, são os próximos.