Casa da Criança de Tires: presos à liberdade de sonhar

Na Casa da Criança de Tires, em Cascais, vivem filhos de reclusas ou vítimas de negligência, abusos e maus-tratos. Neste acolhimento, que se pressupõe temporário, profissionais e voluntários são uma espécie de segunda família: protegem, educam e dão colo. Um local onde os dias cinzentos ganham cor. E uma nova esperança.

“A minha mãe mora ali”, conta Sofia, de sete anos, enquanto aponta para longe a partir da janela da casa que a acolhe, junto ao quarto onde dorme. O “ali” é o Estabelecimento Prisional de Tires (EPT) que fica na mesma rua e está suficientemente visível para matar saudades e atenuar a distância.

Sofia é uma das 12 crianças [dos 3 aos 13 anos] que estão a viver temporariamente na Casa da Criança de Tires (CCT), uma casa de acolhimento residencial que recebe filhos de reclusas do EPT ou crianças em situação de perigo ou vítimas de abusos, maus-tratos e negligência.

Desde a inauguração, em 2001, a instituição, que integra a Fundação Champagnat, já acolheu 124 menores. Uns ficam mais tempo do que outros, dependendo da pena que as mães estão a cumprir. A moradia de dois andares, com um espaço exterior privilegiado que inclui escorrega, baloiços e um pequeno parque infantil, alberga meninos com histórias distintas, mas com um denominador comum: é urgente construir novas memórias.

Os dias começam cedo e o despertador, às sete da manhã, é substituído por música. No primeiro andar localizam-se os seis quartos, cada um com espaço para duas crianças. Sempre que possível, juntam-se irmãos, para que haja alguma referência familiar. E mesmo quando há preguiça para ir para a escola há tempo para se distraírem com o que mais gostam.

Com dez anos, Pedro quer ser youtuber quando crescer. Lourenço, de cinco, não larga o Panda e o cão de peluche castanho, dois amigos que o ajudam a dormir mais descansado. Maria, de nove, tem cabelo bem comprido e sorriso fácil. É a dançarina do grupo e não deixa que o arrastado acordar lhe retire a energia. David, irmão de Maria, de nove anos, traz sempre consigo um terço azul. “É para me sentir mais perto de Deus”, justifica.

Ao subirmos as escadas, a música deixa antever o ambiente vivido. “Eu tou bem, tu também tá bem, todo o mundo aqui tá bem”, canta a brasileira Caroliina. No fundo, é mesmo para isso que a equipa de 12 técnicos e dez voluntários trabalha. Vai tudo ficar bem e a passagem pela casa, independentemente do tempo de estada, deverá ser positiva e marcante.

Dependendo das idades, algumas crianças já se vestem sozinhas. As roupas são devidamente preparadas no dia anterior e as rotinas interiorizadas. Suzanne Lourenço e Catarina Afonso integram um grupo de oito monitores que asseguram as 24 horas do dia. Partilham o turno da manhã, acompanham o acordar, preparam o pequeno-almoço, levam os meninos à escola (a pé ou de carro, dependendo das condições meteorológicas) e ajudam na manutenção da casa. Mas também dão colo, muito colo, sempre que é preciso.

À porta de casa, as mochilas, as lancheiras e os blusões para proteger do frio estão devidamente alinhados e pendurados junto à fotografia de cada um dos moradores. Todos eles conhecem o ritual. É chegado o momento de enfrentar um novo dia, aprender coisas novas, de ir para a escola, mesmo quando não apetece. É o caso de Lourenço, que ainda se demora uns minutos nas escadas do exterior. Cabisbaixo, assenta a cabeça na mochila e perde uns segundos a ganhar coragem para se juntar aos colegas.

Até aos três anos, os filhos das reclusas vivem na “Casa das Mães”, dentro do EPT, e ainda que devidamente protegidas crescem em ambiente prisional. Transitam depois para a CCT e a separação é dolorosa. Mas esse não é o único desafio. “São meninos com uma linguagem atrasada em relação a outras crianças da mesma idade, que só falam em refeitórios, celas, precárias e liberdade condicional. Vêm muito carentes”, sublinha Carla Semedo, diretora técnica. Quando chegam à casa, espera-os um trabalho de aquisição de linguagem e de competências que não tiveram até então, por estarem isolados do mundo exterior. Alguns deles nunca andaram de carro, nunca foram à praia, à piscina, não viveram as experiências próprias da infância.

O acolhimento como último recurso

Segundo o Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens (CASA), coordenado pelo Instituto de Segurança Social, no ano de 2016 encontravam-se em situação de acolhimento 8 175 crianças e jovens. Desse total, 2 048 viveram em Centros de Acolhimento Temporário, em instituições com os mesmos moldes da Casa da Criança de Tires. Dez anos antes, tinham sido retirados às famílias biológicas 12 245 crianças e jovens, número que tem vindo a decrescer desde então.

Ter uma vida normal, garantir oportunidades que outros meninos da mesma idade têm, possibilitar dias felizes e proporcionar momentos marcantes são alguns dos objetivos desta casa de acolhimento. “Estamos presentes no dia-a-dia, na vida destes meninos, sentindo-os como nossos e possibilitando a cada um deles o que proporcionaríamos aos nossos filhos. Nem mais, nem menos”, destaca Carla Semedo.

“Estamos presentes no dia-a-dia, na vida destes meninos, sentindo-os como nossos e possibilitando a cada um deles o que proporcionaríamos aos nossos filhos. Nem mais, nem menos”
Carla Semedo
Diretora técnica da CCT

Em simultâneo, é feito um trabalho com as famílias, maioritariamente mães, para que ganhem competências de forma a terem os filhos de regresso a casa ou no momento de conclusão da pena de prisão. “O acolhimento só existe porque algo não está a correr bem numa determinada família. As instituições ajudam a salvaguardar os direitos destas crianças, protegendo-as, mas são sempre o último recurso, depois de já terem sido dadas várias oportunidades às famílias biológicas”, refere Renata Coelho, psicóloga na CCT.

Durante o acolhimento, as visitas das mães ou de familiares mais próximos são asseguradas e acontecem duas vezes por semana: na prisão ou na própria CCT, consoante os casos. “Tentamos ajustar a disponibilidade dos pais à nossa, pois temos de monitorizar os encontros”, explica Mafalda Silveira. Inicialmente, a equipa acompanha durante mais tempo, até para perceber como se está a desenvolver a relação. Quando tudo está encaminhado e corre bem, é dado maior espaço e margem para evitar constrangimentos na ligação familiar. É ainda dada aos pais a possibilidade de telefonarem, sempre que quiserem, para falar com os filhos.

O regresso depois das aulas é entusiasmante e assegurado pelos monitores Salomé Santos e Emanuel Carvalho, que vestem uma camisola azul escura com uma mensagem nas costas: “Quem nos ajuda a crescer”. O lembrete é útil para momentos de maior ansiedade.

Consoante as idades e os horários, os meninos vão chegando em grupos. “Portei-me bem hoje”, diz Lourenço, muito mais animado do que de manhã. “O meu dia foi bom, gostei de brincar com os meus amigos na escola”, adianta Pedro, que, além dos videojogos, é apaixonado por futebol e adepto do Barcelona. É um dos momentos mais marcantes do dia.

Para estas crianças, é fundamental que sintam que alguém as vai buscar, que não vão ficar esquecidas na escola. Algumas delas chegam à CCT depois de terem sido retiradas à família por ordem do tribunal ou por via das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) espalhadas pelo país. “A polícia pode ter de atuar em ambiente escolar, sem aviso prévio, trazendo-os para esta casa onde não conhecem ninguém”, alerta a diretora técnica.

“A polícia pode ter de atuar em ambiente escolar, sem aviso prévio, trazendo-os para esta casa onde não conhecem ninguém” Carla Semedo

O medo de voltarem a viver situações idênticas nem sempre desaparece, sendo algo muito referido e repetido. “Quando isso acontece, não conseguem despedir-se dos pais e vêm diretamente para aqui. É algo que os marca muito”, salienta Mafalda Silveira, assistente social na CCT.

Criar rotinas, proporcionar segurança

Depois do lanche, há trabalhos de casa para fazer, com a ajuda de voluntários. Ana Brito tem 71 anos e apoia o estudo destes meninos. A ex-professora mora em Queluz e há quase 12 anos que, uma vez por semana, visita a casa. Após o falecimento do marido, inscreveu-se numa bolsa de voluntariado. Foi a melhor decisão que tomou. “É uma casa cheia de vida e de alegria. Recebo muito amor por parte destas crianças”, admite.

De vez em quando, e mediante um termo de responsabilidade, leva alguns a jantar fora e ao cinema. É uma espécie de avó, das que fazem todas as vontades. E quando eles se vão embora da CCT as emoções ficam ao rubro. “É um misto de sensações. De tristeza, por um lado, mas de satisfação, por saber que vão regressar às suas casas e famílias ou que têm uma vida melhor à espera.”

“É uma casa cheia de vida e de alegria. Recebo muito amor por parte destas crianças”
Ana Brito
voluntária na CCT

Ana Catarina e João Pinto, de 20 e 21 anos, são voluntários há um ano. É com um brilho nos olhos que o casal de namorados fala da missão que os ocupa três horas todas as sextas-feiras. Os meninos tratam João por “mister”, por ter sido treinador de futebol de algumas crianças que passaram pela casa. “Senti alguma curiosidade em vir conhecer a instituição mas o que me levou mesmo a decidir foi estar aqui”, conta, não escondendo a emoção que sente quando o portão da casa abre e os meninos correm para o seu colo.

Ana Catarina sempre gostou de crianças e começou a acompanhar o “mister” na experiência “de enorme responsabilidade”. Ajudam a dar o jantar, a vestir os pijamas e participam em algumas atividades. Saem por volta das 22 horas com a sensação de dever cumprido. “Não tinha noção de que estes meninos precisassem tanto de um carinho ou de um abraço mas é muito bom sentir que lhes deixamos um pouco de nós”, remata.

A “Sala dos Segredos” abre as portas todas as tardes. A psicóloga faz as honras da casa. É altura de desabafar, desenhar, fazer jogos ou dar largas à imaginação. “Podem simplesmente ficar em silêncio ou zangarem-se com a vida”, frisa Renata Coelho. Nesses encontros, é feito um trabalho emocional em que se tenta perceber o que é estar separado da família, como é viver numa instituição e onde se prepara o futuro.

“Trabalhamos o projeto de vida de cada um, que pode passar pelo regresso à família biológica ou pela adoção”, explica a psicóloga. O gabinete é acolhedor e está decorado com mensagens deixadas pelas crianças que por ali vão passando. Num dos quadros, pode ler-se que “não ter novidades boas” e “esperar” são motivos de irritação. No dia e hora marcados, é vê-las a tocar à porta para mais uma sessão. Sem falhas, nem esquecimentos.

As rotinas são muito importantes. “Todas elas têm uma intencionalidade terapêutica e tudo o que fazemos está pensado no sentido de potenciar alguma mudança interior nos meninos. Muitos deles, quando acordavam, em suas casas, não sabiam se iam tomar banho, comer ou ir à escola”, realça Carla Semedo. “Todas as regras estabilizam as crianças e a sequência um pouco repetitiva de tarefas acaba por dar-lhes uma certa segurança”, acrescenta Renata Coelho.

Os meninos começam a interiorizá-las desde cedo. Carolina, que quer ser monitora numa instituição ou polícia “para proteger os outros”, enuncia algumas regras sem ter de refletir muito. “Tomar banho, arrumar as mochilas, não bater nos amigos e nos adultos, estudar, não ter sapatos na sala azul [espaço dedicado às atividades dos meninos e onde é preferível que estejam descalços para poderem saltar e brincar à vontade] e não sair do portão da casa.”

Muitas destas crianças cresceram em ambientes disfuncionais, em autogestão, a cuidar dos irmãos e sem tempo de viver a infância. “Tentamos aliviar essa carga e fazê-las perceber que precisam de brincar e de continuar a ser crianças”, explica a psicóloga clínica.

Gestos que marcam pela diferença

Paralelamente à escola, uma vez por semana, têm aulas de natação, de meditação, fazem vela. E aos domingos, de 15 em 15 dias, em parceria com a Terra dos Sonhos, praticam bodyboard, num programa intitulado “Onda de Emoção”, com o objetivo de levar as crianças a aceitar a sua história de vida, a comunicar de forma mais positiva e a melhorar a autoestima.

“Tentamos prepará-las para um futuro melhor, de maneira a que as experiências que aqui vivem influenciem positivamente as suas escolhas”, sustenta Carla Semedo. Uma das atividades mais recentes intitula-se “Refresco de filosofia” e oferece uma metodologia que as ensina a superar a ideia de exclusão e de abandono, aumentando a noção pessoal face ao mundo e o sentimento de pertença.

Todas as sextas-feiras, antes de jantar, a voluntária Maria Adelaide organiza uma sessão de chi kung (ginástica terapêutica chinesa), em conjunto com os meninos que vivem com as mães no estabelecimento prisional, como forma de fomentar a socialização. “É uma oportunidade desses meninos nos conhecerem. Se um dia mais tarde vierem morar para cá, a entrada já não será tão assustadora”, observa Vera Pinto, animadora sociocultural na CCT.

Sempre que possível, são organizadas atividades proporcionadas por empresas. “Felizmente, temos muitos convites e avaliamos as propostas consoante as necessidades.” A instituição recebe vários tipos de donativos, também a nível particular, pois há sempre necessidade de roupa para ambos os sexos, dos 3 aos 13 anos, produtos de higiene ou de limpeza da casa. No Natal são vendidas agendas e outros produtos para ajudar a angariar fundos e manter a instituição sustentável.

Aos fins de semana, algumas crianças vão passar dois dias a casa da família biológica e outras ficam na CCT. Tudo depende da fase do processo e se existe autorização para essa alternativa. Mas, para que tal aconteça, têm de ser dados alguns passos. Quando cada criança entra na casa é feito um plano de intervenção em que se define o que é esperado que as famílias atinjam em determinada altura, é assinado um compromisso e são feitas reavaliações regulares.

“Os filhos deveriam ser a prioridade destas mães. Não nos podemos substituir à família na vontade de quererem que os meninos regressem a casa, mais do que desejamos que eles saiam da instituição. Às vezes, o que percebemos é que as mães se sentem aliviadas pelo facto de os filhos viverem aqui. Eles até estão bem, estão felizes, fazem atividades, vão à escola e têm boas notas”, diz Carla Semedo, alertando para a falta de pressa que arrasta no tempo a possibilidade de as famílias se organizarem. “Não podemos esperar um, dois, três anos… Temos de ponderar sempre o tempo útil destas crianças.” Quando não se verifica uma mudança efetiva, sobretudo em situações de negligência e de maus tratos, o projeto de vida alternativo pode passar pela adoção.

Mafalda Silveira não lida bem com as famílias mais desligadas, que não telefonam para os filhos ou não procuram ter notícias. “Gosto mais de trabalhar com famílias que até podem não ter competências, mas que estão empenhadas e interessadas em ter os filhos de volta. Por outro lado, é difícil ver as crianças tão envolvidas e motivadas em regressar a casa e não sentir qualquer esforço parental para que tal aconteça”, defende. Os voluntários que estejam há um ano na CCT podem integrar o programa “Família Amiga” e levar os meninos para casa no fim de semana ou nas férias com a devida autorização do tribunal e da CPCJ. Qualquer pessoa que queira ajudar ou tornar-se voluntária pode fazê-lo, bastando contactar a instituição. A porta está aberta e existem diversas formas de ajudar.

Para os que ficam na casa durante o fim de semana, a sexta-feira termina com música, dança e uma sessão de cinema. No dia da visita da “Notícias Magazine”, o silêncio para a exibição do filme “Madagáscar 3” acalmou a agitação do dia. Enquanto a luz baixa e veem o filme, vivem os próprios sonhos. Alguns meninos não resistem e acabam por adormecer. Ainda bem. O momento de dormir é dos mais complicados.

Vera Pinto costuma acompanhar a hora de deitar e revela as estratégias que utiliza para a tornar menos penosa: “Quando estão mais tristonhos, dizemos-lhes que esta é uma casa de fantasia, uma passagem, que vão embora dentro de pouco tempo e que irão lembrar-se desta fase com um sorriso”.

E a verdade é que a CCT é muito mais do que uma casa de acolhimento temporário. É a família de cada um dos meninos. Não substitui os pais, mas também se zanga, conta a verdade, ajustada à idade de cada um, impõe a ordem, dá colo e está lá para tudo o que for preciso. Amanhã, é um novo dia, uma nova oportunidade. De crescer bem. E de ser feliz.

(Nota da redação: os nomes das crianças citadas ou referidas neste artigo são fictícios, por forma a salvaguardar a respetiva identidade.)