Descobriu que tinha cancro quando estava grávida. E fez uma escolha

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Texto de Nelson Marques (retirado do livro Filhos da Quimio) | Fotografias de Sara Matos/Global Imagens

Naquele final de tarde de maio de 2008, quando Anabela Oliveira desligou a chamada no telemóvel e um rio de lágrimas começou a correr­‑lhe pelo rosto, foi como se o mundo à volta dela parasse. Como sempre, depois de um dia de trabalho no Parque das Nações, regressava a casa num comboio apinhado da Linha de Sintra.

Mas agora, depois de receber aquela notícia, foi como se a carruagem tivesse, subitamente, ficado vazia. Não via ninguém. Quando a locomotiva parou e ela saiu na estação de Massamá todo o bulício da cidade se tornou silencioso como uma floresta remota. Só ouvia o restolhar das folhas das árvores, a melodia dos pássaros e o sussurrar do vento que lhe beijava a cara. Isso e aquela voz trovejante na cabeça: «Vais morrer.» O seu mundo estava prestes a desabar.

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Soube que tinha cancro mal atendeu o telemóvel. Dias antes, tinha­‑se submetido
a uma colposcopia – uma técnica usada frequentemente para realizar uma biópsia do colo do útero – para ver se era maligno o pequeno tumor que a obstetra lhe descobrira durante uma consulta de rotina. (…) O desfecho não era propriamente uma surpresa.

«O médico olhou para mim e disse­‑me: “Sou sincero consigo, não gostei do que vi”.» Mas nada a preparara para aquele momento. Como podia ter um tumor logo agora que ia ser mãe?

Soube que as perspetivas não eram animadoras quando fez o exame, numa clínica em frente ao espaço da antiga Feira Popular de Lisboa. «O médico olhou para mim e disse­‑me: “Sou sincero consigo, não gostei muito do que vi”.» Mas nada a preparara para aquele momento. Como podia ter um tumor logo agora que ia ser mãe?

(…) Anabela estava devastada. Desejava que aquele telefonema que recebeu no comboio nunca tivesse acontecido, que tudo não passasse, afinal, de um engano. «Ouvimos a palavra cancro e pensamos “vou morrer”. O nosso mundo desaba por completo.» Durante dois dias não conseguiu parar de chorar. Depois limpou as lágrimas, recompôs­‑se e não voltou a fazê­‑lo durante toda a gravidez.

Foi como se a fonte tivesse secado. Estava pronta para a luta. Tinha 33 anos e estava grávida de 13 semanas. Meses antes, tinha tido um aborto espontâneo e aquela era, muito provavelmente, a sua derradeira oportunidade de ser mãe: se o tumor se confirmasse, ia ter de remover o útero e provavelmente também os ovários. Queria muito aquele bebé. «Pensei: “Vou ter o meu filho. Não vou morrer”.»

«houve uma certa pressão para eu decidir. Enervei­‑me, pedi­ calma aos médicos. Aquilo não era o mesmo que escolher a cor de um carro.» Precisava de tempo para decidir. Precisava de sair dali.

No dia seguinte, como previsto, foi ter com a Dra. Sara Valadares à MAC. A médica explicou­‑lhe que tinha um carcinoma do colo do útero, a segunda causa de morte por cancro nas mulheres com menos de 44 anos. Grau III, o mais grave. Foi encaminhada para o IPO de Lisboa, para ficar a conhecer o protocolo de tratamento.

Entre 1996 e o final de 2013, a instituição recebera nove mulheres grávidas com o mesmo tipo de tumor. Só duas decidiram interromper a gravidez, mas o caso de Anabela era delicado porque tinha ainda muito tempo de gestação pela frente. «Fui a uma consulta com três ou quatro médicos e uma ou duas enfermeiras.

Disseram­‑me que não havia muita experiência com este tipo de tumores durante a gravidez e que a melhor opção era abortar. Ninguém me disse “vamos tentar, força!”. Disseram­‑me que devia pensar bem porque era perigoso para mim.» Sentia­‑se numa posição impossível: era ela ou o bebé. Manter a gravidez podia custar­‑lhe a vida.

Anabela avisou os médicos que não queria abortar. Quis saber se não era possível ir monitorizando a evolução do tumor e manter a gravidez enquanto fosse possível. «Perguntei: “O risco é assim tão grande? O tumor vai crescer de um dia para o outro?” Houve uma médica que me disse logo que tinha de assinar um termo de responsabilidade [consentimento informado] assumindo que tinha conhecimento de que corria risco de vida, mas que mesmo assim não queria tratamento.»

Estava profundamente perturbada com todo aquele ambiente, sentia o peso avassalador de ter de ser ela a decidir algo tão importante. «Foi como se me atirassem aos leões, houve uma certa pressão para eu decidir. Enervei­‑me, pedi­‑lhes calma. Aquilo não era o mesmo que escolher a cor de um carro.» Precisava de tempo para decidir. Precisava de sair dali.
Anabela recusou o tratamento, consciente do risco que se preparava para correr. (……)

Durante cinco meses, ao mesmo tempo que o filho se desenvolvia no seu ventre, teve um tumor a crescer dentro dela. A evolução da doença foi seguida de perto pelos médicos, com ressonâncias magnéticas regulares: de menos de um centímetro quando foi detetado, o tumor chegou aos seis centímetros. Se invadisse os tecidos vizinhos teria de abortar de imediato, porque correria risco de vida. Teve sorte. «Foi crescendo sempre para fora, mas nunca para os lados. Os médicos diziam que parecia um repolho.»

(…) Às 34 semanas de gestação, deu entrada na MAC num sufoco angustiante. Só conseguiu voltar a respirar quando a levaram para fazer uma CTG (um exame de diagnóstico que permite avaliar os batimentos cardíacos do bebé, bem como a quantidade de oxigénio de que este dispõe) e ouviu o coração do bebé bater energicamente. «Parecia um cavalo: tum­‑tum, tum­‑tum, tum­‑tum…» É a última coisa de que se lembra.

Pouco depois estava a ser levada numa maca para o bloco operatório. Após o parto, por cesariana, Diogo foi levado para os cuidados intensivos: apesar das injeções de betametasona que a mãe tomara para ajudá­‑lo a desenvolver os pulmões, nascera com uma insuficiência respiratória. Só saiu de lá passados nove dias.

Um mês mais tarde, a 18 de novembro de 2008, Anabela foi internada no IPO para realizar uma histerectomia radical, um procedimento cirúrgico para a retirada do útero quando existe neoplasia maligna em estágio avançado. Contra a opinião dos médicos que a acompanhavam, quis conservar os ovários, para não entrar em menopausa precoce. Na operação, os cirurgiões conseguiram extirpar por completo o tumor. Não teria necessidade de fazer quimioterapia ou radioterapia.

Em abril de 2009, cinco meses após a cirurgia, Anabela começou a sangrar abundantemente quando tentava retomar «uma vida sexual normal» com o marido. Os fantasmas do cancro, ainda bem vivos, voltaram. De manhã, ligou à ginecologista.
– Dra. Sara, estou a sangrar…
– Vá já ao IPO – ordenou a médica. É melhor ver isso. No IPO, o especialista que a acompanhava encaminhou­‑a para uma TAC. «Disse­‑me que parecia ter algo na vagina, mas que não me assustasse.»

Dias depois, voltou à consulta para conhecer o resultado do exame. Não tenho boas notícias – disse o médico. É um tumor maligno, mas não se preocupe. Temos armas para vencer isto.

O Diogo costuma dizer: “A minha mãe salvou a minha vida porque eu também salvei a vida dela”.»

Foi um duche frio. «Pronto, lá vamos de novo», pensou Anabela, irrompendo num pranto convulsivo. O tumor era pequeno, mas, desta vez, teria de fazer quimioterapia e radioterapia. «Explicaram­‑me que iria começar a quimio dali a três semanas e estava em lista de espera para a radio, depois ligavam­‑me a avisar.

Quem é que se sente confortável a esperar três semanas e depois ainda aguardar um telefonema para lhe dizer quando é que começa outro tratamento?» Por sugestão do patrão da empresa onde trabalha, optou por fazer os tratamentos na Clínica Universidade de Navarra, em Pamplona, Espanha.

Anabela, o marido e o filho, Diogo, de apenas seis meses, ficaram alojados dois meses num apartamento a poucas centenas de metros da clínica. Era uma distância curta, mas as pernas fraquejavam­‑lhe depois de cada sessão (seis horas) de quimioterapia. «Ao início sentia­‑me bem.

Na primeira vez, levei o computador para ver uns filmes com o meu marido, deram­‑me algo para não ficar maldisposta. Pensei: “Se calhar vou fazer isto com uma perna às costas”. Meia­ hora depois, já não queria ver o filme. Aquela treta é mesmo forte. Começamos a ficar apáticos, sem reação, sem forças.»

A sogra e a mãe revezaram­‑se para lhe dar apoio. Vinha tão exausta que nem conseguia cuidar do bebé. Ficava nauseada, sem apetite, só queria deitar­‑se e descansar. Travava todos os dias uma imensidão de pequenas batalhas: levantar­‑se, encontrar forças para comer ou para falar, procurar algum conforto apesar das dores, das náuseas, do cansaço. Não tinha vontade de nada.

Devia ter feito cinco sessões semanais, mas após a quarta as suas defesas estavam tão em baixo que não pôde continuar.«O médico veio ter comigo e disse: “O teu corpo não vai tolerar a quinta. Depois apanhas uma corrente de ar e pode ser fatal.”»

As 25 sessões de radioterapia, durante cinco semanas (uma por dia), ainda lhe custaram mais. «Marcavam a tinta­‑da­‑china os sítios onde o laser devia queimar e cada sessão durava 20, 30 minutos, já não me recordo bem. A partir da vigésima foi muito complicado. Sentia­‑me muito mal dos intestinos, com muitas dores de estômago…»

«Às vezes tenho vontade de chorar. Se calhar aquilo que não chorei durante este processo está aqui dentro para chorar. Mas tento olhar para o meu filho, que está cá e é saudável. e eu também sou saudável.»

Fez ainda braquiterapia, que consiste em introduzir longas agulhas na vagina para dirigir a radiação diretamente sobre as células tumorais, um método ultra localizado muito mais preciso do que as radiações externas clássicas, cujo feixe alargado ataca o tumor mas também tecidos sãos que o rodeiam. Depois de concluir os tratamentos, realizou uma ressonância magnética, que não revelou nenhuma sombra suspeita. O tumor tinha desaparecido.

Há mais de sete anos que Anabela não tem qualquer sinal da doença. Uma vez por ano, faz exames e vai a uma consulta de rotina no IPO para garantir que não houve alterações. (……) Não vive obcecada com o cancro, mas confessa que há momentos em que se sente «mais deprimida».

«Sou sincera: às vezes tenho uma vontade incrível de chorar, não sei porquê. Se calhar aquilo que não chorei durante este processo está aqui dentro para chorar. Mas tento olhar para o meu filho, que está cá e é saudável, e eu também sou saudável.»

Só lamenta não poder voltar a ser mãe: sempre sonhou ter três ou quatro filhos. Gostou tanto de estar grávida que não se importava de passar por tudo de novo. Antes da gestação de substituição ter sido aprovada no Parlamento português, ela e o marido chegaram a contactar uma instituição na Polónia, destino cada vez mais popular para quem quer uma barriga de aluguer, e procuraram em sites de venda de óvulos mulheres que fossem parecidas com ela.

Acabaram por desistir da ideia. «Fez­‑me um pouco de confusão, embora fosse tudo legal. Sei lá se têm alguma doença… Tenho um filho, já é bom. Se fosse pelos médicos, nem este teria tido.»

Diogo tem agora 8 anos. É apaixonado por cinema – adora a saga Guerra das Estrelas e os filmes da Marvel – e passa a vida a dizer à mãe que quer ser ator. «É uma criança muito teatral, divertida, adora pôr as pessoas a rir. Quer ir para o teatro e a professora dele diz que ele tem imenso jeito, que devia pô­‑lo numa escola.»

Sócio do Sporting desde o primeiro dia de vida, já pediu aos pais para ir para as escolinhas do clube de Alvalade. A mãe nunca lhe escondeu que tinha tido cancro quando esteve grávida dele. «Se eu não tivesse engravidado o tumor não se teria desenvolvido tão depressa e eu não teria feito exames naquela altura. Ele costuma dizer: “A minha mãe salvou a minha vida porque eu também salvei a vida dela”.»

Histórias do cancro

Filhos da Quimio reúne cinco histórias de cinco mulheres que enfrentaram o cancro enquanto estavam grávidas. Com os dilemas e angústias que esta condição e este diagnóstico implicam numa mulher e respectiva família. Este é o primeiro livro de Nelson Marques. Jornalista há 18 anos, começou no Público, colaborou com a Notícias Magazine, Visão, Sábado e Volta ao Mundo e integra atualmente os quadros do Expresso. Tem reportagens publicadas no The Guardian, El Mundo e The Jerusalem Post. Há vários anos que escreve sobre cancro, é o único português galardoado pelo European Best Cancer Reporter Award e foi um dos vencedores, em 2016, do Prémio de Jornalismo da Liga Portuguesa Contra o Cancro.

O livro será apresentado no dia 28 de fevereiro, às 19h00, na Fundação Champalimaud, com a presença de Nelson Marques (autor), Leonor Beleza (presidente da instituição), Raquel Soeiro (uma das pacientes retratadas no livro) e Mafalda Anjos (diretora da Visão). A entrada é livre.

Filhos da Quimio Nelson Marques Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos 80 páginas; 3,5 euros