Bodypainting: a moda das telas vivas

Há quem faça um esboço prévio, em papel, detalhado ao mais ínfimo pormenor, para que nada falhe na hora H. Outros optam por ter apenas um “moodboard” (conjunto de imagens num quadro) a servir de inspiração. Depois são horas de paciência. E não são uma nem duas. São às cinco e às seis. O resultado é coisa para deixar muito boa gente boquiaberta. Eis, em pinceladas breves, o “bodypainting” – ou, em bom português, a pintura do corpo.

O fenómeno não é novo mas tem vindo a ganhar fãs. E palcos: sejam os muitos festivais de verão, casamentos ou festas de arromba de estrangeiros (e não só) endinheirados. “Tem crescido”, garante, sem hesitações, Maria João Teixeira. Esta lisboeta de 42 anos sabe do que fala: além de se ter aventurado no “bodypainting” ainda na década de 1990, numa altura em que pouco se ouvia falar do fenómeno, abriu, há mais de dez anos, uma escola de maquilhagem em que, entre outras coisas, ensina a arte de pintar o corpo.

Do alto de tanta experiência, Maria João faz questão de lembrar aos mais distraídos que o tempo em que as pinturas corporais eram atração exclusiva de momentos festivos já lá vai. “Trabalho muito com aniversários e festas, mas o ‘bodypainting’ está a ganhar muita força a nível empresarial e corporativo.” Ana Tulha, maquilhadora profissional, confirma a tendência: “Faz-se cada vez mais em ambientes conservadores e mais institucionais, como os lançamentos de marcas. Ainda há pouco o município da Guarda nos contratou para fazermos ‘bodypainting’ numa feira de turismo, com decorações alusivas à cidade.”

Tulha, portuense de 33 anos que se dedica ao “bodypainting” há dois, tem feito um pouco de tudo. Desde pinturas corporais em bailarinas que dançam em tronco nu na montra de um bar (ver caixa) à caracterização de raparigas que se transformam em “árvores vivas”: “No casamento do Luís Neto, o futebolista, fizemos quatro ‘mulheres-árvore’, que estiveram no jardim a receber os convidados.” Um exemplo “menos convencional” entre um rol de pedidos que se tem vindo a amontoar. “A ideia que tenho é que, a cada trabalho que faço, aparecem outros”, partilha, para legitimar a teoria de que este é um fenómeno em crescimento.

Explicações? Várias. Maria João tem uma na ponta da língua: “O facto de cada vez se trabalhar mais com adereços ajuda. Antigamente, o ‘bodypainting’ fazia-se em miúdas despidas, só de fio dental. Há uns anos estive numa feira internacional de maquilhagem, em Londres, e vi que eles já usavam muito os adereços. Desde então, tenho trabalhado muito com isso também. E acho que a partir do momento em que se começa a tapar o peito e o rabo, o ‘bodypainting’ é mais bem acolhido. Não há o risco de chocar.”

Nisto, Maria João há muito que não tem mãos a medir. “Na passagem de ano estive em Marrocos a fazer ‘bodypainting’ às bailarinas que animavam uma festa. As festas de luxo também são um nicho de mercado importante no ‘bodypainting’. Ainda há pouco tempo estive a trabalhar na festa de uns russos que vieram a Portugal celebrar um aniversário.”

Há um pouco de tudo, resume Ana Tulha: “É uma coisa acessível e transversal. O ‘bodypainting’ vai dos festivais ao empresário milionário que quer meninas pintadas a fazer de estátua numa festa”, conta a maquilhadora, para ajudar a explicar a moda.

De Max Factor a Demi Moore
Não que pintar o corpo seja coisa da modernidade. Já em tempos imemoriais, à boleia das culturas tribais, se coloria o corpo, ora como forma de representar identidade pessoal e experiências passadas, ora para proteger do mau olhado e das forças malignas. Tanto que ainda hoje é usada como forma de expressão de muitos povos indígenas.

Já a primeira manifestação do “bodypainting” moderno data de 1933. Na altura, o polaco Maksymilian Faktorowicz, considerado o pai da cosmética moderna, chocou mentalidades ao pintar, numa exposição em Chicago, a modelo Sally Rand, deixando-lhe grande parte do corpo (nu) exposto. A ousadia de Sir Max Factor, como ficou conhecido, não bastou para disseminar o fenómeno, mas deixou o bichinho na mente de muitos artistas.

Décadas depois, no auge da revolução sexual e do movimento hippie dos anos 60, o “bodypainting” ganha força numa escala internacional. Mas é preciso esperar até aos anos 1990 para ver o fenómeno chegar a patamares mais “mainstream”. Para isso muito contribuiu uma histórica capa da revista americana “Vanity Fair”, de 1992, com Demi Moore. À primeira vista, a atriz norte-americana parece estar de camisa, blazer, gravata e calças. Mas não: Moore estava despida, com o corpo todo pintado, simulando roupa. Já nesta década, em 2011, o videoclipe de “Somebody that I used to know”, de Gotye, tornou-se janela privilegiada para o “bodypainting” – ou não tivesse chegado aos 800 milhões de visualizações no YouTube.

Arte ou decoração?
Tudo “empurrões” para uma forma de arte que se vem massificando, à escala nacional e internacional. Arte? Pois. Apesar da dimensão que o fenómeno tem conhecido, a inclusão do “bodypainting” na esfera artística continua a não ser consensual. “Tenho dificuldade em relacionar-me com isso enquanto arte. A mim parece-me mais um decor. E decorar não é propriamente fazer arte”, aponta Eglantina Monteiro, professora de Antropologia da Arte durante mais de 20 anos. Prefere falar antes numa “coisa carnavalesca” que também funciona como “catalisador de relações”. “Num festival em que toda a gente se pinta, por exemplo, o ‘bodypainting’ tem um força atrativa, de chamar a atenção.”

Maria João Teixeira discorda. “Um elemento decorativo? E um quadro não é elemento decorativo? O ‘bodypainting’ é uma fonte de arte: tanto na conceção do desenho e dos adereços como na própria pintura”, argumenta a professora de “bodypainting”, fiel a esta “dama” há mais de duas décadas.

Afinal, o que é preciso para fazer “bodypainting”? “Tintas dermatológicas”, esclarece Maria João. “É importante que seja sempre feito com tintas dermatológicas”, reforça, em forma de alerta. Tudo para evitar reações alérgicas. Já para remover as tintas… não tem nada que saber. “Sai com água normal. Também se pode tirar com desmaquilhante, mas água normal basta.”

A quem queira aventurar-se no “bodypainting”, Maria João aponta um pré-requisito obrigatório: largas doses de paciência. “Muitas pinturas exigem cinco a seis horas de trabalho. Claro que, se forem só pequenos apontamentos na cara ou nos braços, é uma coisa rápida. Cinco, dez minutos. É o que se faz em festivais. E há pessoas que chegam a estar mais de quatro horas na fila para conseguirem fazer”, garante, antes de resumir, em poucas palavras, a magia do “bodypainting”: “É como se fossem telas vivas!”

Uma montra feita de corpos pintados
Sara Barros já era fã de “bodypainting” e há muito seguia o trabalho de Joana da Silva. Por isso, quando quis acrescentar algo diferente às festas “Baixa Clubbing”, promovidas pelo Baixa Bar, no Porto (Sara é uma das proprietárias), a ideia de ter bailarinas pintadas a dançar na montra do bar surgiu-lhe com naturalidade. “Queríamos algo com uma imagem mais forte e ousada”, justifica.

Depois, foi contactar a artista e pôr mãos à obra. Desde então, uma vez por mês, Joana da Silva e Ana Tulha encarregam-se do “bodypainting” das bailarinas – “bodypainting” UV, para sobressair no escuro. “É como fazer um desenho em negativo. Temos de pensar as cores todas ao contrário”, explica a artista. E a ousadia, tem sido bem acolhida pelo público? “Muito. As pessoas param todas ali a olhar, a tirar fotos. Toda a gente fala naquilo.”