Benedita Pereira: «Se algum talento tenho, é mesmo para isto»

Entrevista Alexandra Tavares-Teles | Fotografias Filipa Bernardo/Global Imagens

Acabou de se sagrar campeã nacional de futebol.
[Risos] Pois é, estou muito contente. O meu pai, a minha irmã e os meus sobrinhos vão muito ao estádio. A minha família é muito portista, mais os homens, é certo, mas a minha mãe e eu própria ainda fomos com eles algumas vezes. Depois de viver em Lisboa passei a vibrar muito mais. Para ser do contra e porque o FC Porto ganhava tudo.

Portuense, chegou a Lisboa em 2003, ano em que o Porto venceu a Taça UEFA.
Nunca mais esqueço. Um dia depois de o FC Porto ter vencido a final, soube que ia fazer os Morangos com Açúcar. E no ano seguinte ganhámos a Champions League. Vim de peito feito e continuei.

«Ganhámos.» Um portuense diz «ganhamos». Perdeu completamente o sotaque?
Na verdade, nunca tive muito sotaque «à Porto» e ao fim das primeiras semanas perdi o pouco que tinha, até porque sou muito influenciável. Curiosamente, o que mais me custou foi abrir a vogal nos pretéritos perfeitos. Lembro-me de ter sido corrigida pela diretora de atores. Hoje, poucos me identificam como sendo do Porto, o que é uma tristeza [risos]. Mas basta-me estar com os meus pais, muito alegre ou muito zangada e o sotaque volta.

E quando está muito zangada diz asneiras, certo?
Ai, isso digo, muitas mesmo. No mundo da televisão diz-se muitas asneiras. E eu, que já gostava, passei a abusar. Aliás, as pessoas pediam-me para as dizer porque «era diferente». Com mais alma. E eu concordo.

Com mais alma e na versão completa.
Com tudo. A assumir completamente [gargalhadas].

Vem para Lisboa com 17 anos para fazer Morangos com Açúcar. Como chega aí?
Estava no 12º ano, já tinha feito umas coisas esporádicas, mas este foi o meu primeiro trabalho a sério. Soube sempre que queria ser atriz. Andava, desde miúda, numa escola de teatro que o meu pai encontrou nas Páginas Amarelas. Era a única no Porto. Aos 8 anos já sabia que queria fazer teatro e televisão.

Para ser famosa?
Nada. Era o fascínio pelo palco. Estávamos nos anos 1990. Havia uma única telenovela portuguesa por ano, a produção nacional era diminuta. Na televisão vejo as coisas do La Féria e o Herman Zap. Achava que iria ser o Herman José em mulher [risos].

O meu critério é talvez mais apertado do que o da maioria das pessoas da minha geração em resultado do que tem sido a minha vida, pelo que já vi e quero fazer.

Há tradição na família?
Não há, mas também por uma questão de oportunidade. Se a tivesse tido, acredito que o meu pai teria enveredado por essa área. Mas nem lhe deram hipótese. Foi para Engenharia Civil como o pai dele. Eu era boa miúda, boa aluna, portanto deixavam-me fazer isso. Passei a estar muito atenta a castings.

Para perceber rapidamente que vivendo no Porto tudo seria mais difícil?
Claro. Vinha a Lisboa fazer castings. Depois entrei numa agência de modelos, por insistência da minha mãe e da minha irmã. Eu queria ser atriz, não queria ser modelo. Tinha medo de passar a ser tida como a gira burra. Já tinha esse estigma. Mas esses trabalhos fizeram-me bem, desde logo porque comecei a ganhar dinheiro com 16 anos. Nada mau. Através dessa agência fui fazendo cada vez mais castings também como atriz. E assim entrei no sistema.

Veio sozinha para Lisboa?
A minha mãe veio comigo umas semanas, para me ajudar a ambientar. Fiquei a morar num apartamento da família, o que ajudou a poupar dinheiro. Ainda fui ao Porto fazer os exames do 12º ano mas já não fui para a universidade.

Não fosse a representação e teria escolhido que curso?
Pensei em Jornalismo. Mais tarde, já nos Estados Unidos, passei por momentos em que me perguntava o que estava ali a fazer, se não seria melhor enveredar por outros caminhos. Mas só de pensar nisso ficava muito infeliz. Tenho muita admiração pelas pessoas que têm talento para fazerem muitas coisas. Eu, se algum talento tenho, é só mesmo para isto.

Hoje, olhando para trás, com o que ficou desses primeiros tempos?
Foi uma grande loucura. Muito muito trabalho, muito cansaço, mas também muita alegria e muita risota. Aconteceu-me uma data de mudanças: uma cidade diferente, o início da minha vida adulta, novos amigos. Fiz aí os meus amigos para a vida. Na verdade, nunca tive muitos amigos no Porto. Vivia muito focada nos estudos, no teatro, nos trabalhos de modelo. E também porque me identificava pouco com as pessoas. Em Lisboa, de repente, foi «ah, as minhas pessoas». Escolhi-as e fui escolhida. Senti-me livre, senti que podia ser eu.

E hoje, quase 15 anos depois?
É igualmente a loucura. No início da minha carreira era o que viesse. Hoje, faço escolhas. O meu critério é talvez mais apertado do que o da maioria das pessoas da minha geração em resultado do que tem sido a minha vida, pelo que já vi e quero fazer. Por vezes, penso que gostava de ser menos informada, teria menos objetivos, não seria obrigada a tomar decisões nem sempre fáceis e de que tenho medo de me arrepender.

Toma-as sozinha?
Falo com alguns amigos antigos e sempre com o meu pai. E, claro, com a Cecília [Mateus, agente da atriz] e com a minha manager internacional. Já trabalhamos juntas há muitos anos. Há momentos para tudo e as decisões levam em linha de conta coisas como «agora apetecia-me estar mais em Portugal» ou «ter mais dinheiro».

O dinheiro é sempre importante.
Devo dizer que não sou muito inteligente nesses assuntos. De facto, o dinheiro é o que conta menos na minha decisão. Até agora tenho-me aguentado e optado por trabalhos que me estimulem e dos quais goste muito. Não há coisa pior do que estarmos num projeto a meio gás. Já senti isso por breves momentos e não é coisa de que goste. Mas, claro, há trabalhos em que só falta acenarem-nos com as notas, e eu também penso nas coisas que quero fazer além da profissão – viajar, se calhar comprar uma casa, enfim, não sendo uma prioridade, está sempre lá porque eu tenho de viver.

«Versailles só aconteceu porque tinha acabado de recusar um trabalho. Há coisas que acontecem por uma razão.»

Nesse contexto, em que lugar se encaixa Versailles – prazer, dinheiro?
Versailles
só aconteceu porque tinha acabado de recusar um trabalho. Há coisas que acontecem por uma razão.

Acredita no destino?
Acredito, embora por vezes fique lixada e o confronte: «Então, destino?»

Fale-me da série. A terceira temporada estreou-se ontem em Portugal. Interpreta Isabel, uma infanta de Portugal.
A minha manager internacional é americana e tem os pés em vários mercados. Um deles é o inglês. Esta série, sendo filmada em França, é falada em inglês e, mais de que isso, com british accent. Sendo eu especialista em sotaques, propôs o meu nome.

A série está em 180 países. É uma grande montra.
Se é. Participar nos três últimos episódios desta temporada foi uma experiência fantástica. Só entrar naquele guarda-roupa já é muito bom.

Os portugueses nem sempre são bem tratados em produções de época.
É verdade que a minha dama de companhia é mais velha e tem um ar mais sisudo, próprio de um país mais conservador e católico, mas a equipa estava muito entusiasmada com a minha personagem porque, vindo ela de Portugal, tinha um guarda-roupa um pouco diferente. Mais para a frente, curiosamente. Devo dizer que estou um bocadinho irreconhecível com uma cabeleira preta, gigante, que pesava um ou dois quilos. Ia para a caraterização umas três horas antes.

Não é a primeira vez que faz trabalhos internacionais. Fale-me dessas experiências, desde logo feitas com orçamentos decentes.
E que dão para perceber que em Portugal fazemos milagres. Cada vez tenho mais essa noção. Temos gente muito talentosa mas sem dinheiro muita coisa falha. Desde logo, o tempo. O realizador de Versailles, que veio do cinema, estava nervoso porque, dizia, em televisão tudo é mais rápido. Nos EUA fazem-se cinco ou seis cenas por dia. Nós, em Portugal, gravamos vinte por dia, se for uma série, ou quarenta por dia, se for uma novela. Ele a queixar-se e eu a rir-me.

Em 2017 participou num episódio da série Blacklist, contracenando diretamente com James Spader.
Essa foi gira, estava em Nova Iorque e os diretores de casting já me conheciam. Foi uma coisa muito pequena mas que valeu bem a pena, mais não seja pelo James Spader. São experiências especiais em que somos sempre muito bem tratados. Naturalmente, o James Spader é quem manda naquilo; não sendo o realizador, é como se fosse. É uma pessoa muito simpática.

Ainda em 2017 fez Os Últimos Dias da Humanidade, encenado por Nuno Carinhas. O que lhe dá o teatro?
Fico cheia de saudades só de pensar nesse trabalho. Dá-me um processo muito diferente porque é muito transformador. É ir ao pormenor, é viver em conjunto os momentos de conquista e de falha, é ir mais fundo e correr um risco que é viciante.

O ator de teatro é mais ator?
São preconceitos que felizmente estamos a quebrar. Não só porque há muita qualidade em televisão e cinema mas também pela questão financeira. É muito difícil viver só de teatro.

«Não tenho experiência pessoal [de assédio], a não ser a de ser mulher que leva com iropos desde miúda. No meio, em Portugal, não passei por isso. Talvez exista mais pudor porque é mais pequeno. Nos EUA, é uma realidade.»

Em 2007 decidiu ir estudar representação para Nova Iorque. Que argumentos pesavam para ficar?
Desde logo uma proposta de trabalho praticamente irrecusável – o papel de protagonista numa novela. Foi um grande teste à minha vontade, mas fui. Tinha 22 anos e queria experimentar o mundo. De resto, já me tinha comprometido com a Daniela Ruah. Fomos as duas.

Falou em momentos de raiva em Nova Iorque. Que defeitos tem a cidade?
O ritmo avassalador, o clima duríssimo –muito frio no inverno e muito quente no verão – e o custo de vida, que é caríssimo.

Como vivia?
Aluguei um apartamento com a Daniela. Tinha juntado algum dinheiro e foi com esse dinheiro que vivi uns tempos. Os meus pais pagavam-me o curso, porque só o apartamento, um T2 minúsculo, custava por mês três mil dólares.

É o que se chama uma pessoa poupada?
Tenho alguma noção das coisas e sempre que posso poupo. Mas não sou muito de não fazer na vida o que quero. Se isso acontecer, vou ficar preocupada e pensar mesmo na vida. Até agora, sem esbanjar, tenho conseguido algum equilíbrio.

Em que ganhou o primeiro dinheiro?
Em trabalhos de publicidade, tanto fotografia como anúncios. Foram os primeiros cheques. E ganha-se bem, sendo eu ninguém e comparando com Portugal. De três em três meses chega-nos um cheque a casa. Mas não se pense que é fácil arranjar esses trabalhos. Por cada casting há imensas pessoas.

Quanto tempo já esperou nessas filas?
O máximo creio que foram duas horas. Eles tentam ser organizados e fazem a marcação. Como sou sindicalizada não podem fazer-me esperar mais do que um certo tempo, ou então pagam. Ali não fazem farinha com os atores.

E seguiu o percurso tradicional, trabalhar em cafetarias, em restaurantes?
Não, mas fiz de «vaso» em vários eventos. Cumprimentava as pessoas e estava ali umas horas. No mínimo recebia 80 dólares.

Viveu lá oito anos.
E desses oito anos houve momentos de muita desilusão e de deceção. Contratos assinados que depois não foram avante.

Como lida com a adversidade?
Vou-me abaixo. Choro, fico furiosa, e talvez por isso passa rapidamente. Aprendi a lidar com a expetativa. Protejo-me, se bem que lá no fundo nunca desacredite. E vou sempre à luta.

Por isso lhe chamam furação Benny?
Pois, é isso. Tenho muita energia. Normalmente sou a alma da festa, gesticulo muito, falo muito alto, conto piadas e sou a primeira a achar-lhes graça [gargalhadas].

Já esqueceu a ideia de ser o Herman feminino?
O Herman é um génio e não sei se tenho talento para esse género de comédia. Julgo que as sitcoms e as comédias românticas são mais a minha medida. É um nicho muito fechado, onde é muito difícil entrar, mas a verdade é que estou a fazer cada vez mais comédia. As coisas estão a aparecer e eu agradeço.

Nasceu em 1985. Pertence à chamada geração millennial, a mais bem preparada de todas, a mais mimada e egoísta, dizem. Concorda?
Temos acesso a muita informação, vimos tudo. Quando era criança, havia dois canais televisivos, a internet lenta, os telefones fixos. Quer dizer, conhecemos o analógico e o digital. Talvez por isso digam que somos a geração mais bem preparada. Mas há o reverso: o acesso a toda a informação pode ser uma bênção ou uma maldição. Se eu não conhecesse tanto, não tivesse visto tanto, estava talvez mais tranquila. É também uma geração muito idealista.

Porém, pouco envolvida política e ideologicamente?
É verdade. Manifestamo-nos nas redes sociais, na rua, temos causas mas descremos do sistema político. Eu descreio. Mas há pessoas incríveis e movimentos muito importantes.

Como o #MeToo.
Não tenho experiência pessoal a não ser a de ser mulher que leva com piropos na rua desde muito miúda. No meio, em Portugal, não passei por isso. Talvez haja mais pudor tendo em conta que é um mundo bem mais pequeno. Nos EUA é uma realidade. Os relatos daquelas mulheres e daqueles homens partem-me o coração. O abuso de poder é horrível.

Tem 32 anos. Daqui a dez vê-se onde e a fazer o quê?
Gostava muito de poder continuar a escolher. O que mais me fascina é trabalhar com pessoas diferentes, em diferentes lugares do mundo, em línguas diferentes. Nas gravações de Versailles dei comigo a pensar «foi isto que eu imaginei para a minha vida». É para isso que eu trabalho todos os dias, mas nunca descurando Portugal. Não saí daqui por achar que isto é pequeno. É pequeno para quem quer fazer outras coisas, mas não o digo com menosprezo. Adoro trabalhar em Portugal e sinto saudades muitas vezes.

Um sonho?
Trabalhar com Paul Thomas Anderson.

Uma atriz completa?
Cate Blanchett. Até a ler a lista telefónica seria interessante.

Vai muito ao cinema?
Vou mais ao teatro, vou todas as semanas. O cinema não anda a entusiasmar-me. Ainda que contadas de maneira diferente, as histórias têm sido sempre as mesmas. O meu filme preferido de há muito tempo foi Phantom Thread. É uma lufada de ar fresco, e logo com o enorme Daniel Day-Lewis. O resto tem sido mais do mesmo. Preciso que o cinema me traga algo de novo e não tem trazido. Tenho encontrado isso em televisão.

Um prémio.
Trabalhar com estas pessoas mas, claro, estar nomeada para um Óscar. Nem precisava de o ganhar.

E se ganhasse, como começaria o discurso de vitória?
CONSEGUI [gargalhada]!