O meu beco sem saída

Notícias Magazine

Nasci e vivo no Beco do Carrasco, em Lisboa. Não é verdade, mas se o leitor começa a desconversar acabo já a crónica. É um pouco tradição de família, o meu pai nasceu no Pátio do Carrasco. Também não é verdade, mas também é a última vez que previno: posso continuar?! Bom, o carrasco do pátio é diferente, é ao pé do Limoeiro, na antiga freguesia do Castelo, e o meu, o do beco, é na freguesia da Misericórdia, quem sobe a Rua do Poço dos Negros vira à direita antes de chegar à Calçada do Combro.

Os endereços bizarros do meu pai por Lisboa, de uma colina para outra, perseguido pelo homem da forca (ou machado e cepo, os meus sonhos de garoto variavam), instalaram-me a dúvida e um dia fui sondar o mistério. O périplo não foi por razões familiares – não descendemos de Belchior Nunes Carrasco, o homem de Quinhentos que deu o nome aos algozes (está na internet, logo aconteceu) –, pois somos Fernandes desde o primeiro filho de um Fernando que decidiu homenagear o pai.

O Pátio do Carrasco tinha e tem um grande estendal de roupa que o atravessa, vasos e gaiolas. Talvez o Camões tenha lá morado (é uma ideia que vendo ao Turismo de Lisboa) porque no pátio há uma tradição macaense, embora deturpada. Em Macau, os velhos vão passear a sua gaiola com o pássaro para o jardim Lou Lim Ioc; no pátio lisboeta, os pequenos vasos de manjerico estão em gaiolas para não serem roubados.

O meu pai mudou-se do local de nascimento porque tinha uma ambição. Acontece que o seu pátio natal ficou batizado à custa de um triste, Luís dos Santos (1806-1873), célebre por ter sido o último carrasco de Portugal. É certo que foi referido por Camilo em Noites de Insónia, mas sempre por más razões. De gente afamada, ainda, no pátio morou Ana Gertrudes, a mãe da Maria Severa Onofriana, fadista célebre de quem não ficou voz mas uma frase: «Morro sem ter vivido.» Se isso anima um destino… O meu pai já tinha sido desenhado por Roque Gameiro, ele é o garoto mais pequeno, no sopé da escada exterior do pátio, da série de aguarelas Lisboa Velha (tenho vários sonhos a comprová-lo). Sabendo que a continuar ali não ia mais longe, o meu pai passou o arco que abria o seu pátio ao mundo e nunca mais voltou.

Ele foi viver, como já disse, para o Beco do Carrasco. Os quatro prédios paralelos espelhavam-se mutuamente em rosa-lisboeta e o do fundo tinha a fachada de azulejo – estreito, os carros que entram saem em marcha-atrás, e há um só candeeiro de ferro forjado. Foi lá que nasci com a esperança que o meu pai alimentava para os filhos: no Beco do Carrasco nasceu Pina Manique. Quer dizer, ter nascido num beco empedrado com nome do mais vil dos funcionários, tanto que se escondiam com um capuz para exercer a função, não impediu chegar-se ao topo da carreira de aplicar justiça: Diogo Inácio de Pina Manique foi intendente-geral da Polícia, serviu o marquês de Pombal e a rainha D. Maria I. O meu pai não queria tanto, só que eu fosse qualquer coisa na vida.

Todos os dias saio do meu beco e vou para o Beco do Imaginário, voltando à colina do meu pai, para os lados do Castelo. Do Martim Moniz subo pela Mouraria pela Rua dos Cavaleiros, Calçada de Santo André, e é à direita, uma viela de falso sem saída. Gosto dela porque é um beco que tem uma nesga por onde escapar e nome, Imaginário, que me ajuda a encontrar os assuntos para crónica, sempre factuais e realistas (juro). E não escrevo em casa porquê? Porque nela tenho uma caixa de correio cheia, o que me faz viver numa angústia. Todos os dias, cinco panfletos, três cartas, mil propostas: «Não quer vender a sua casa? Temos a melhor oferta!» Não posso, tenho de cumprir a ambição do meu pai, ser alguém. E não querer sair da sua rua é um direito consignado pela placa toponímica de quem vive onde vivo. Beco é sem saída.