Bacalhau com todos. E com muita saudade

Texto de Pedro Emanuel Santos | Fotos de Igor Martins/Global Imagens

“Gavião de Penacho; De bico p’ra cima; De bico p’ra baixo; Mais acima; Mais abaixo; Vai ao centro; Bota p’ra dentro!” O ritual é sagrado e não falha em cada início de jantar (ou almoço) de qualquer uma das 60 academias do bacalhau espalhadas pelo mundo.

Pelos quatro cantos, por onde a diáspora portuguesa se foi multiplicando ao longo de décadas, essa mesma diáspora tem nestes encontros uma forma de se sentir em terra natal, mesmo a milhares de quilómetros de distância da pátria que recusa deixar de sentir como sua.

Um badalo é agitado e pede-se silêncio e respeito pelo momento solene. Ao ritmo de cada rima do Gavião de Penacho – assim se chama a canção mote -, os copos do obrigatório vinho tinto ora se elevam, ora seguem em sintonia rumo ao brinde comum e início da refeição. É assim desde sempre. E o sempre, neste caso, tem 50 anos, tantos como os de existência da primeira destas extensões de Portugal cravadas pelo mundo.

A letra foi surripiada ao Orfeão Universitário do Porto, por onde passou Durval Marques antes de emigrar para a África do Sul e em 1968 por lá fundar, em Joanesburgo, a primeira Academia do Bacalhau, que, a partir de então, ganhou o estatuto que ainda hoje mantém: o de mãe de todas as academias do bacalhau. É atualmente presidida por José Contente, alentejano de São Martinho das Amoreiras (Odemira), 66 anos, há duas décadas em Joanesburgo como empresário de aluguer de máquinas para a construção civil, depois de outras duas décadas passadas em Moçambique.

Num país onde há 50 anos o apartheid era lei, os portugueses, apesar de brancos, eram comunidade longe da total inclusão. A visita de compatriotas era aproveitada para pretexto de confraternização com o mote de matar saudades. Foi o que aconteceu quando o jornalista Manuel Dias se deslocou à África do Sul em reportagem pelo jornal “O Primeiro de Janeiro” e, durante uma patuscada com emigrantes radicados em Joanesburgo, lhes sugeriu que criassem uma associação que os juntasse mais amiúde e fosse fonte de portugalidade além-fronteiras.

Durval Marques – falecido em abril passado – e três amigos (José Ataíde, Ivo Cordeiro e Rui Pericão, também eles já desaparecidos) aproveitaram a deixa e lançaram-se ao trabalho. Por razões óbvias escolheram o bacalhau como símbolo maior – à mesa não há prato que mais una os portugueses – e para todas as cerimónias futuras adotaram-no como obrigatório protagonista das refeições comuns. A data do arranque não poderia ser mais simbólica: 10 de junho, o Dia de Portugal.

Nos 20 anos seguintes à fundação, o conceito apenas foi pegando em terras sul-africanas. A partir do final da década de 1980, porém, deu-se a explosão para os restantes continentes e paragens. “Sempre com o lema ‘Amizade, Solidariedade, Portugalidade’”, frisa César Gomes de Pina, o homem que levantou a Academia do Bacalhau do Porto, criada em 1989, e a revigorou, ao ponto de a tornar a mais representativa das várias que em Portugal respigam o espírito das existentes Mundo fora.

Suazilândia, Namíbia, Moçambique, Angola, Venezuela, França, Canadá, Brasil, Estados Unidos, Luxemburgo, Austrália, Bélgica, Grã-Bretanha, RD Congo, Portugal. Em todos esses países, muitos deles em mais do que uma cidade, existem atualmente academias do bacalhau, autênticos pontos de reunião portuguesa fora das fronteiras da pátria. “Temos a obrigação de manter os laços entre os portugueses, de contribuir para ajudar quem mais necessita, sobretudo idosos e crianças, de manter a língua e de dar aos nossos filhos uma educação que valorize a cultura portuguesa”, explica José Contente.

“Temos a obrigação de manter os laços entre os portugueses, de contribuir para ajudar quem mais necessita, sobretudo idosos e crianças, de manter a língua e de dar aos nossos filhos uma educação que valorize a cultura portuguesa” (José Contente, fundador da primeira Academia do Bacalhau)

Além da canção comum que marca o início de cada encontro, os membros da Academia do Bacalhau possuem outros pequenos/grandes rituais que lhes conferem personalidade e características próprias. Como o tratamento entre pares. São os compadres – eles – e as comadres – elas. Assim se chamam para garantir igualdade; não há grau de instrução, profissão ou estatuto público que os distinga. “Nem o presidente da República é assim tratado, apenas como compadre Marcelo Rebelo de Sousa”, assevera César Gomes de Pina.

A história inicial fez-se em Joanesburgo, onde simbolicamente, meio século depois, se realizou (em outubro último) o Congresso Mundial que anualmente junta todas as academias do bacalhau. O próximo, em 2019, será no Porto.

Os congressos são espaço privilegiado para aglutinar as diferentes academias e como que transformá-las numa só durante vários dias. Uma massa de episódios de vida que têm em comum o afastamento de Portugal, a angústia da saudade, o ser estrangeiro em terra estranha. E há sacrifícios grandes que valem grandes alegrias para não recusar a presença.

“Um grupo de compadres da Venezuela chegou a fretar um avião inteiro que os levasse a um dos congressos”, lembra Joaquim Monteiro, emigrante em França e responsável pela academia de Rouen (França).

O número total de membros destes pedaços de Portugal é incerto. Por uma razão simples, a mobilidade da diáspora. “Há compadres que, por exemplo, estão pouco tempo num determinado país. Durante esse período inscrevem-se, mas, depois, partem para outro lado e deixam de fazer parte da academia onde se inscreveram”, resume José Contente.

“Seremos, somadas todas as academias, entre dois mil e três mil compadres e comadres”, calcula. Com o bacalhau a uni-los, como se fosse o mapa de um enorme Portugal.

Como escolher um bom bacalhau

O grande segredo por detrás da qualidade de um bacalhau está na cura. Garantem-no os especialistas na matéria, como Eugénio Teixeira, da quase centenária Casa Chinesa, no Porto, das mais procuradas quando é hora de escolher o principal ingrediente que vai preencher o prato no Natal.

“Tem que ser curado até oito meses. Quanto mais amarelo aparentar, mais no ponto está. É fácil perceber olhando para ele”, revela. Há outros pequenos/grandes truques para perceber se um bacalhau tem potencial.

Foto: André Rolo/Global Imagens

“Pegando nele, o peixe tem de ficar teso. Se vergar, é porque não foi bem seco e ainda contém humidade, pouco deve prestar”, explica Joaquim Fernando, da Feira do Bacalhau, igualmente no Porto, casa aberta desde 1925, que aposta na Islândia e na Noruega como as melhores proveniências do fiel amigo.

De resto, o ideal é que tenha até seis quilos e seja submetido a um processo de demolha que cumpra todos os requisitos, para que não perca atributos. Neste último pormenor há técnicas que podem ajudar – e muito – a melhorar o sabor do bacalhau.

“Deve demorar entre quatro e cinco dias e a água ser mudada diariamente, pelo menos duas vezes”, desvenda Joaquim Fernando. Detalhe importante encontra-se, também, na espinha central.

“A medula nunca pode estar seca. Partindo-a um pouco, é importante perceber se contém gordura, sinal de que o bacalhau é mais saboroso”, atira, por sua vez, a chef Inês Diniz. E é necessário separar bem rabos e lombos durante a demolha, “para que a água apure o melhor de cada uma das partes”.