Até que a voz lhes doa

Quase quatro décadas depois, Marante e os Diapasão seguem na estrada. Retrato de um concerto em Anadia (Foto de Maria João Gala/Global Imagens)

Andaram anos sem ter mãos a medir. Deram concertos atrás de concertos, cantaram músicas que se fizeram história e conseguiram discos de platina. Foram amarfanhados à saída dos espetáculos e chegaram a ser engolidos por fãs. Décadas depois, mudou quase tudo. Na música ligeira portuguesa, que fez deles heróis à escala nacional, já sobra pouco espaço para ídolos que arrebatem multidões. E ainda assim resistem. Victor Espadinha já não canta em qualquer palco: encontra refúgio no teatro, amor predileto. Marante e os Diapasão ainda rabeiam, e bem, por aí. António Calvário não está para estafas, mas não deixa a música nem por nada. E Lenita Gentil há muito faz do fado um lugar seguro. Mesmo que as motivações, os percursos e os estados de alma em tudo se desencontrem, une-os um só desejo: cantar até ao último sopro de vontade.

Victor Espadinha: a música meteu-se sempre com ele

Espadinha, na década de 1980, a preparar-se para o espetáculo “Sinbad, o Marinheiro”, no Casino Estoril

Jura que não vive – nem de recordações nem de ilusões. Tanto que nostalgia é palavra que não cabe nos 79 anos que completou esta semana. E, no entanto, foi graças a estes versos que, na viragem da década de 1970 para 80, arrebatou centenas de palcos pelo país fora. “De 1978 a 1985 quase todos os dias cantava. Era uma coisa incrível”, conta Victor Espadinha, sentado à mesa de uma esplanada solarenga do Estoril, olhar perdido nas memórias daqueles anos inebriantes.

“Ao fim de semana chegava a dar mais do que um concerto por dia. Numa altura, demos um espetáculo em Monte Gordo e no dia seguinte tínhamos um em Bragança. Nem dormimos. Arrancámos às quatro da manhã do Algarve e, às tantas, quando estávamos a atravessar a planície alentejana ficou tudo verde, a carrinha parou. Parecia um filme de ETs. Ainda hoje, eu e o Jorge Hipólito, que ia comigo, não conseguimos explicar aquilo. Aqueles anos foram uma loucura”, recorda, camisa às riscas, a deixar ver o peito, charuto na mão, as passas a pautar a cadência do regresso ao passado.

“Vou-lhe dizer o que digo sempre. Eu sou ator. Mas a música meteu-se sempre comigo. Não sei como é que isto aconteceu. Já lá vão muitos anos. Os meus discos venderam muito. As pessoas conhecem as minhas canções. Então a ‘Recordar é Viver’… até as crianças cantam aquilo. Vendeu mais de um milhão [de cópias]. Foi uma coisa que ficou”, diz, embevecido mesmo que não queira. “Foram anos memoráveis. Ganhei muito dinheiro”, acrescenta, irremediavelmente sincero.

Mas o calendário avança implacável. Mudam os tempos e os dias, as modas e os gostos, as loucuras e as vontades. Espadinha que o diga. “Já não faço aquelas coisas de levar o playback de orquestra debaixo do braço e ir para a discoteca. Fiz isso há muitos anos, quando não havia mãos a medir e a gente ganhava dinheiro em todo o lado. Agora só faço concertos com músicos ao vivo e a sério”, assevera, à boleia de um moscatel com gelo.

E mesmo que os espetáculos saiam bem mais caros – “tenho de pagar aos músicos todos, não é?” – garante que continuam a cair convites. “Há pouco tempo fiz um em Viseu, outro no Casino Estoril. Agora, em agosto e setembro, tenho mais dois ou três. Há muitos anos que tenho sempre concertos, um ou dois por mês”, diz o homem que, na década de 90, também brilhou ao lado dos Ornatos Violeta no tema “Ouvi Dizer”.

Victor Espadinha num ensaio caseiro, no Estoril, ao lado de Renato Júnior, um dos músicos que o acompanha (Foto de António Pedro Santos/Global Imagens)

Não são muitos mas, garante, servem o intento: no caso, o de complementar o teatro, a arte que lhe continua a merecer uma paixão assolapada. “Não troco o teatro por nada. A partir de setembro tenho de ver como vou fazer, porque começo os ensaios de uma nova comédia, no Teatro Eunice Muñoz, e às sextas e sábados estou ocupado. Aí, torna-se mais difícil dar concertos”, justifica o ator que, entre um sem fim de peças de teatro, brilhou na série televisiva “Os Malucos do Riso”.

Ainda por cima, os que aí vêm não são uns concertos quaisquer: “Tenho a sorte e algum mérito de ter grandes músicos comigo. O meu pianista, o Renato Júnior, é o melhor que aí anda. Atuo em palácios, em teatros, em casinos. De vez em quando faço umas brincadeiras, quando são discotecas muito grandes. Faço só piano e voz.”

Mas também dá uma porrada de negas. “Há certos sítios onde não vou cantar. Não vou. Não é ser elitista, mas eu não tenho nada a ver com aqueles sítios onde se cantam músicas pimba. As minhas músicas são mais intimistas. Por isso, quando me convidam para aquelas festas das terrinhas, peço grandes cachês, uma coisa tipo Estados Unidos”, conta, numa gargalhada que faz crer que os anos não passaram por ele. E a confissão prossegue. “Depois dizem-me: ‘Ah, senhor Espadinha, sendo assim não dá.’ É melhor do que dizer que não vou. Não vou dizer, ‘não vou porque vocês são uns pimba’. Não vou dizer isso.” E vai rindo, numa honestidade desconcertante.

A mesma com que lembra os dois anos em que esteve preso em Moçambique, durante a Guerra Colonial. “Por não querer matar ninguém. Quem me safou foi o Almeida Santos, do PS, aquele que morreu há pouco tempo. Esse gajo era um grande amigo.” A mesma com que recorda os anos passados em Londres, em que tanto lavou pratos como brilhou no palco. “Fui a um casting e passei. Fiz o cara branca do ‘Money makes the world go around, the world go around’”. Trauteia o tema do musical “Cabaret” no meio da esplanada. “Nem sempre é fácil, mas quando acreditamos em nós a gente cai e levanta-se, cai e levanta-se. E quando damos por nós já andamos sempre em pé.”

A regra vale-lhe para toda a vida. “Não tenho nostalgia de nada. Nem nunca me senti em declínio. Já me senti à rasca, nunca em declínio”, sublinha, como quem se está a borrifar para os discursos politicamente corretos. O registo mantém-se quando lhe perguntamos se acha que as novas gerações ainda gostam das músicas dele. “Acho que não. Não devem ligar. Não sei. Mas os jovens hoje também comem hambúrgueres e quando era miúdo isso não existia. Os jovens bebem cerveja aos litros e quando era miúdo não bebia.”

É um problema da música ligeira? Responde com outra pergunta. “Eu não sei. O que é isso da música ligeira? Eu não sei o que isso quer dizer. Para mim há música boa e má, música de que gosto e música de que não gosto. Não percebo por que as pessoas põem rótulos à música.” Concorda que há mais protagonistas e cada vez menos palcos, mas também faz questão de lembrar: “O que eu sei é que o Rui Veloso tem sempre trabalho, o Carlos do Carmo tem sempre trabalho. No teatro, o Ruy de Carvalho tem sempre trabalho. Quando não têm, regra geral, é porque não souberam acompanhar. Tiveram um êxito ou dois e o nome foi sendo esquecido. Há muitos cantores e cantoras que estão por aí em grandes dificuldades. Como há atores.” E reconhece: “A coisa mais difícil na carreira de um artista, seja ele qual for, é ter um sucesso, ganhar um dinheiro com aquilo e depois o sucesso acabar. É tramado um gajo manter-se sempre na mó de cima.”

A culpa, defende, é também da cultura que impera por cá. “Há muita falta de memória em Portugal. Este país não existe, é um país à parte. Se estiver uma semana em Londres a ver televisão, vê que os pivôs dos noticiários são todos velhos. Porque têm a força do percurso feito e uma coisa dita por eles ganha outro impacto. Você olha para o Elton John… Ele tem 80 e tal anos [tem 71] e se quiser trabalha todos os dias. Nós é que somos um país sem memória e mal-agradecido. E a culpa não é do povo. É da política.” Por momentos, a negatividade ameaça ofuscar o discurso jovial e otimista.

O charuto dura, o pessimismo desvanece-se tão depressa como o fumo. Mérito da música, a paixão secundária que, há décadas, o mergulhou no frenesim de uma grande história de amor. Foi lá atrás, é certo. Mas o que vem à frente ainda lhe dá motivos para sorrir: “Uma canção romântica pode ser foleira cantada por um gajo e uma grande canção cantada por outro. Mas a minha música, a música romântica, nunca tem os dias contados. Tal como o sexo não tem os dias contados. E o amor. Vão existir sempre.”

Marante: um romântico que recusa render-se

O mundo é exagero, mas lá que se tem fartado de correr o país, isso tem. É dia de Sardinhada de Santo António no Vale Santo, em Anadia, e Lucília Manuela, 67 anos, não descola do palco. É lá que está António Luís Cortês Marante, o ídolo de há quatro décadas. É lá que está o Agrupamento Musical Diapasão, a banda com 38 anos que se confunde com o cantor. “Venho vê-lo sempre que posso. É a melhor voz que há. Não o troco por ninguém”, esclarece a gaiense, para que não restem dúvidas. O telemóvel, onde a foto de Marante faz a imagem de fundo, não a deixa mentir.

Nem o telemóvel nem a filha, Alexandra Manuela, 37 anos. “Lá em casa só toca Marante ou Diapasão. Mais nada”, assegura, ela que também já se fez fã do cantor, mesmo que por osmose. “Tenho de a trazer, tive de gostar obrigatoriamente”, atira, o sorriso a querer denunciar que está ali mais por vontade do que por obrigação.

Lucília e a filha chamam a atenção numa plateia ainda despida. A chuva não ajuda, a timidez alheia ainda menos. Muitos dos que marcam presença na sardinhada preferem, a princípio, continuar à mesa, sentados nos bancos compridos que convidam à sardinha e à broa, ao tinto e ao caldo verde. “Tenhamos muita ou pouca gente, tocamos sempre com a mesma vontade”, garante Nelo, o baixista que, a par de Marante, resiste desde os primórdios da banda. “Mas normalmente temos muita gente”, apressa-se a dizer o vocalista, o cabelo semi-ruivo a rarear à frente e o penteado que sobreviveu à moda e ao passar dos anos.

“Dentro da cidade do Porto ainda temos muita gente que nos segue. Há pessoas que vão de propósito do Porto a Bragança só para nos verem. Nós, às vezes, nem nos apercebemos o quanto a gente gosta de nós. Apercebemo-nos de uma minoria, mas temos pessoas que gostam de nós em todo o Mundo”, vinca Marante, sorriso de menino que resiste, 69 anos depois.

Em Anadia, o pezinho de dança vai levando a melhor sobre a timidez. Ao terceiro ou quarto tema, já são vários os casais que se movem ao som da música, uma mão no cintura e outra a segurar a do parceiro. Mesmo que a chuva insista em não dar tréguas. “O carinho das pessoas é parte do que nos faz continuar. E o sentirmo-nos bem. Depois, é o que fazemos em prol da música portuguesa desde o primeiro dia. Soubemos sempre criar um espaço para nós. E há músicas do primeiro disco que canto até agora”, orgulha-se. Nelo completa: “Gostamos do que fazemos, damo-nos bem. Isso é o essencial. Tiramos frutos disto.”

Quase quatro décadas depois, Marante e os Diapasão seguem na estrada. Retrato de um concerto em Anadia (Foto de Maria João Gala/Global Imagens)

E ainda assim não há como negar que tudo mudou. “Em 1996, dei 32 espetáculos num mês”, recorda Marante, que chegou a ser futebolista profissional do Salgueiros e que se orgulha de ter ajudado os Diapasão a conseguir 20 discos de prata, nove de ouro e um de platina. Em 1989 até se aventurou numa carreira a solo, mas a banda nunca ficou para trás. E assim correu o país de lés-a-lés, ao ritmo frenético de êxitos como “A Bela Portuguesa”, “Garçon” e “Dá-Cá Dá-Cá Dá-Cá”.

E agora? “Os concertos são muito menos, claro. E tivemos de baixar os cachês, porque era isso ou não fazer. Eu prefiro sempre atuar com a banda, mas quando não podem pagar atuo sozinho. Em setembro, por exemplo, vou a Paris.” Até lá, em mês e meio, os Diapasão têm perto de 25 concertos previstos.

Nada mau. Ainda assim, o desabafo: “Há muitas festas que deixaram de acontecer. A vida está mais cara e há cada vez menos apoios”, lamenta o cantor, que dá conta de um cenário ainda mais sombrio: “Sei de vários artistas que são convidados para festas e que depois veem os convites cancelados por falta de verbas. A tendência tem-se intensificado de há cinco/seis anos para cá. Antigamente havia mais festas do que artistas. Agora, há cada vez mais conjuntos. Alguém tem de ficar em casa. Temos obrigatoriamente de saber lidar com isso. Mas ainda bem que os novos cantores aparecem. Afinal, quem escolhe é o público”, justifica, num encolher de ombros conformado.

Desistir, no entanto, continua a não ser opção. “Costumo dizer que o mais importante não é chegar lá acima, é mantermo-nos”, atira, sublinhando que mudar o registo em que se movem desde os primórdios também está fora de questão – “o músico, quando quer mudar, normalmente perde-se”. Nelo ajuda a dar a receita para a sobrevivência: “Vai-se fazendo o que se pode. Isto entrou um bocado em declínio em termos de espetáculos mas ainda conseguimos manter um certo nível. Não é como antigamente, mas ainda rabeamos por aí. E bem.” E a música romântica, também entrou em declínio? Marante abana a cabeça. “Não. A música romântica vai prevalecer sempre. As novas gerações também são românticas, ou acha que não? Depende é da música. O que acho é que cada vez é mais difícil escrever canções de amor.”

Maria João Gala/Global Imagens

Às tantas, o anfiteatro a céu aberto de Vale Santo já está tomado por dezenas de pessoas que dançam em frente ao palco. E até por um comboio humano, que circula indiferente à chuva que cai a cântaros. Protegida por um dos poucos abrigos do espaço, Eugénia Porto não dança mas vai trauteando tudo o que é música. Tem 63 anos e garante que é fã de Marante há metade deles. “Onde ele estiver, aqui perto, vou sempre ver”, jura, antes de avançar para os porquês: “Gosto tanto. Isto é música popular, que entra no ouvido. É música que a gente gosta. Este casal que está aqui comigo ainda há uns dias me convidou para ir ver o Salvador Sobral aqui perto, mas aquilo é música que não me entra.”

Marante, já a dançar com os braços em cima do palco, não a ouve, mas vai dando uma garantia que promete deixar Eugénia feliz. “Eu? Pendurar as botas? Pode escrever aí que só penduro as botas quando tiver um cabide.” À segunda, o tom é mais sério, mas a mensagem mantém-se: “Só quando Deus quiser. Por mim, vou cantar sempre. Nem que seja de dois em dois anos. Mas nunca vou deixar de cantar.”

Lenita Gentil:o encanto do fado e o desencanto do país

Lenita Gentil foi longe. Em parte graças a este tema, “Eles foram tão longe”, de 1982. Deu cartas em festivais pelo país fora e fartou-se de brilhar além-fronteiras. “Estive no México, na Roménia, na Grécia. Ganhei festivais em Portugal e em Espanha. Aliás, ganhei um no Palácio de Cristal, em que participou o Julio Iglesias, na altura ainda conhecido apenas por ser guarda-redes do Real Madrid. Os festivais foram uma coisa muito gratificante para mim. Ainda por cima fiquei sempre em lugares honrosos: quarto na Grécia e na Roménia, segundo no México”, recorda, à distância de umas quantas décadas.

Na altura, “havia muitos programas de música portuguesa na televisão – e boa música, não é como agora, em que nos programas de domingo só se vê pimba”. E toda a popularidade que daí advinha. “Havia muito a mania dos autógrafos. Quase nem podíamos sair do palco que éramos logo amarfanhados. Na altura, até ficávamos um bocado chateados com aquilo, porque as pessoas não nos largavam. Mas, no fundo, era giro. Pelo menos interessavam-se. Atualmente, quando acabo de cantar, as pessoas raramente vão ter comigo.” O relato, desassombrado, é desbobinado antes de um espetáculo em Talaíde, pequena povoação de São Domingos de Rana, concelho de Cascais.

Um espetáculo de fado, que a música ligeira há muito tempo é um cenário longínquo. Há demasiado tempo, admite. “Até tenho saudades de cantar alguns temas. Os espetáculos são outros, o género de música também. Até o convívio entre os artistas. Mas quem sabe se, depois do disco que vou lançar em setembro, o próximo não é assim uma coisa diferente”, augura, de calça de ganga e camisa, nas horas que antecedem a atuação da noite.

De intérprete de música ligeira a fadista. Ou como, décadas depois, Lenita Gentil continua a sentir-se “nascida para cantar”. (Foto de António Pedro Santos/Global Imagens)

Para já, com 69 anos feitos, o álbum que prepara é de fado, o estilo musical que a desassossegou nos anos 80 e se fez amor para a vida. “Na altura convidaram-me para ir fazer um mês ao Faia [em Lisboa] e pedi um dinheirão, a ver se não aceitavam, porque não gostava do ambiente das casas de fados. Mas sempre adorei o instrumento guitarra portuguesa e fui-me apaixonando por estas coisas todas. Já estou no Faia há 30 anos”, diz, antes de surgir transfigurada, vestido e cabelo esticado, a soltar o vozeirão por Talaíde e arredores.

Além do Faia, vai tendo outros espetáculos: uns quantos nas várias povoações de São Domingos de Rana em julho, Alcochete, Barcelos e Alcobaça em agosto. Tudo fado. Nada de música ligeira. Não que isso lhe provoque algum desânimo. O desencanto, assume sem rodeios, existe, mas não por estar centrada no fado. Antes pelo “país que põe de lado gente com carreira e valor”.

“Da minha geração, o único que ainda canta é o Marco Paulo. E o José Cid, que ainda está no ativo. De resto, cantores de música ligeira do meu tempo, não estou a ver. A Tonicha, a Adelaide Ferreira, uma cantora extraordinária… foi tudo posto de lado por esta gente que anda para aí e faz parte de tudo o que é júri de programas de televisão. A Mariza, a Ana Moura, a Cuca Roseta. E as pessoas que têm valor e fizeram uma carreira são postas de lado. Não posso conceber que um país faça uma coisa destas”, argumenta, a frustração bem patente na voz.

Até porque também ela se sente, de quando em vez, posta de parte. “Claro. Se fazem isto com esta gente toda, acha que não fazem comigo?”, questiona, antes de assumir a nostalgia dos tempos áureos: “Sinto, sinto, mas nem quero pensar nisso. Sinto que a vida passa a correr.”

Promete não desistir, ainda assim. “É como um prémio de imprensa que recebi em tempos. Lá diz: ‘Lenita Gentil, nascida para cantar’. É mesmo isso. Eu adoro cantar, sentir.” Por isso, a futurologia não tem nada que saber: “Como diz a minha colega e amiga Maria da Fé, vou cantar até que a voz me doa. Vou cantar até Deus querer. Só se sentir que já não estou bem ou que perdi faculdades é que vou parar.”

António Calvário: os tons inalterados dos 80

O jovem António Calvário, no tempo em que vivia mergulhado na correria dos espetáculos e era “engolido” por fãs assim que saía à rua.

Os 40 anos que separam o lançamento de “Mocidade” da atualidade não bastam para o ver falar do fim. Mais: à beira de completar oito décadas de vida, António Calvário recusa viver de saudade. “Nostalgia? Nada disso. Não sou muito amarrado ao passado. Gostei das coisas boas que fiz, mas, como nunca parei, fui-me adaptando à nova realidade”, responde, de pronto. A mocidade, essa, mantém-na viva, ora na aparência física – seco, bronzeado, cabelo ainda pintado de loiro, impecavelmente conservado -, ora nos hábitos. As aulas de canto, a que faz questão de ir todas as semanas, são um deles. É lá que o encontramos, no número 88 de uma rua de Almada.

“Ra-ra-ra-ra-raaaa”, afina Calvário, olhos postos no professor Diogo Novo que, ao piano, vai ditando a cadência. “São aulas de manutenção. Devem fazer-se a vida inteira, sabe? Eu comecei com aulas de canto quando tinha 15 anos. Agora vou a caminho dos 80. E nunca parei. Ajudam a manter a voz mais solta, mais clara. E também servem para corrigir alguns vícios que se vão adquirindo com o tempo.” Tem a mão esquerda aberta sobre a barriga, o braço direito vai subindo e descendo suavemente, como que a marcar o ritmo do “ra-ra-ra” crescente. O apreço que tem pela voz assim o exige. “Ai sim, sim, a voz continua a ser o meu bem mais precioso. Quando estou constipado ou rouco ou assim, fico logo imensamente preocupado. Mas depois passa”, atira, num sorriso meigo.

De resto, aos 79 anos, orgulha-se de continuar a cantar “nos mesmos tons de sempre”. E de se manter na estrada, pois claro. “Em setembro, reinicio a preparação do espetáculo ‘Da revista ao musical’, que estreámos em março e que vai andar pelo país todo a partir de outubro. Nos últimos tempos estive em Mangualde, no Algarve, no Casino da Figueira da Foz.” Ou como a música ainda lhe serve de dínamo para a alegria do dia-a-dia. Mesmo que já sem o fulgor de outros tempos – por opção, garante. “Vou tendo algumas solicitações, aquelas que considero suficientes. Poderia ter mais, mas já não vou naquela de andar para aí a correr, de ficar estafado. Nesta altura do ano prefiro fazer uma pausa para gozar férias. A não ser que me aparecesse assim um espetáculo fora do vulgar.”

Calvário numa aula de canto, que não larga nem quando está prestes a fazer 80 anos.

Tempos houve em que a popularidade era tal que tinha de sair de casa acompanhado por polícias de motorizada. Era o tempo do nacional-cançonetismo, em que foi coroado Rei da Rádio e vencedor do “Grande Prémio TV da Canção Portuguesa”. Foi o tempo, 1964, em que se tornou o primeiro a representar Portugal no Festival Eurovisão da Canção, na Dinamarca. Em que era engolido por fãs quando saía à rua. Mulheres, sobretudo mulheres.

Mais de meio século depois, a adoração ainda não se perdeu. “Há um grupinho que ainda me acompanha. São umas distintas avós. E é giro porque vão as fãs, as filhas das fãs, as netas das fãs. Continuo a manter uma ligação forte ao núcleo duro do meu clube de fãs”, alegra-se, sentado à mesa da sala de ensaios. E continua a sentir o pulso à afeição popular: “Ainda recebo todas as manifestações de carinho possíveis e imaginárias. Quando entro no supermercado, há logo quem me venha dar beijinhos, dizer isto e aquilo.”

É como se o apreço do público fosse o combustível que o mantém na estrada. “Sempre que entro em cena, as pessoas têm uma maneira estrondosa de me receber. E o artista vive do aplauso. Sinto-me muito acarinhado com a forma como ainda sou recebido”, exulta, com o ar de quem espera que nunca seja diferente. Mesmo que a música, a música como a conheceu, tenha levado uma volta de 180 graus. “Há mais gente a cantar. Muita gente, muita gente. Depois não há lugar para todos. E se formos a ver, desses miúdos que aparecem agora nos concursos da televisão, são raros os que ficam.”

Nada que o apoquente. “Eu sinto-me feliz com a carreira que tenho, porque nunca fui esquecido”, diz, uma pontinha de vaidade mal disfarçada. Deixar de cantar? “Nunca. Vou cantar até que a voz me doa. Vemos aí várias figuras que cantam até bastante tarde. O Charles Aznavour tem 90 anos e ainda canta, o Tony Bennett, a nossa Celeste Rodrigues… Por que é que não hei de cantar? Enquanto sentir o carinho das pessoas vou cantar. Claro que pode acontecer entrar num palco e levar uma grande vaia. Aí vou pensar: ‘António, está na altura de arrumares as botas.’ Felizmente, não é o caso”, orgulha-se, numa gargalhada que aspira à eternidade.