Na saúde e na doença. Até que o cancro os separe

O cancro é uma chaga que carregam ao peito. A imagem do corpo mutilado arrasou-lhes a autoestima. Em alguns casos sentenciou-as à solidão. Feridas, viram a doença e o amor entrar em colisão. Foram abandonadas pelos companheiros, que não aguentaram dividir o peso deste combate. Há ainda histórias em que o sentimento se diluiu, de mansinho, pelos dias, até acabar. Outras vezes, optaram elas por se libertar de relações em que a intimidade desapareceu com a mama amputada. Mas também há espaço para os que viram além da mastectomia e da menopausa precoce. Os que perceberam que a feminilidade e a sexualidade não se esgotam na aparência. Sete vidas viradas do avesso, às voltas com o sofrimento, onde entram sempre outros atores, como os pais e os filhos. Pela voz delas e deles. Os que fazem o caminho das pedras com os olhos postos numa nuvem chamada amanhã.

NEGLIGÊNCIA

A conversa aconteceu 15 dias depois de terem reatado a relação. Assim que Ana Lopes, atualmente a residir em Albergaria-a-Velha, percebeu que tinha um problema disse ao então namorado que entendia se ele quisesse seguir com a vida dele. Ele disse que não, que ia continuar ao lado dela. Só que “a pior solidão é aquela que sentimos quando estamos acompanhados”, conta Ana, 40 anos, retrospetiva. “Lembro-me de querer partilhar com ele as minhas idas ao IPO, como eram os meus dias quando eu ia lá, e ele dizia-me que já estava farto de ouvir falar sobre aquilo.”

Na intimidade as coisas não voltaram ao que eram. “Sentir que ele não me procurava ou quando eu o procurava ele me recusava era muito complicado.” Durante o processo, Ana recorda que comentava com o ex-namorado que o sentia cada vez mais distante. O trabalho foi sempre apontado como desculpa. “Acho que nunca teve consciência da gravidade do meu problema, porque o minimizava muito.” Ele atirava-lhe: “Se os médicos não dizem que morres em seis meses, é porque é um cancro fácil de ultrapassar.”

A mágoa cresceu a par do vazio. “Eu queria estar com pessoas, sair daquelas quatro paredes, queria ir ver um pôr-do-sol, queria ver o nascer do sol, queria a companhia dele, queria uma série de coisas que ele, pura e simplesmente, negligenciou.” A gota de água aconteceu depois de Ana descobrir que o ex-namorado já procurava a atenção de outras mulheres. “Acho que ele nunca quis ficar numa posição de desistir, de ser aquele que saía, porque depois as pessoas iriam apontar o dedo: ‘abandonaste-a na altura em que ela mais precisava’. Realmente fui eu que decidi terminar a relação porque não havia condições. Ele já estava fora há muito tempo. Eu só não tinha sido avisada.”

DETERMINAÇÃO

O sorriso de Carmen ao amamentar o pequeno Manuel é tão infinito como o de qualquer mãe. E a fome com que ele lhe agarra o peito é tão natural como a de qualquer bebé. Ainda que não se veja, atrás deles está Nuno, o companheiro e pai, que segura uma das duas cadelas que a família adotou. E estão também dois gatos a cirandar pelo T1. O amor cabe nos sítios mais pequeninos. Nasce sem se saber bem como, cresce e multiplica-se.

Foi o que aconteceu nesta casa. Algo impensável quando, há nove anos, Carmen Correia soube que tinha cancro de mama. Foi o confronto com a finitude dos dias que aproximou os dois amigos de Lisboa. “A doença fez-me ver o quanto eu precisava dela na minha vida”, diz Nuno, sereno. Carmen ouve, sem levantar o olhar. Há de dar-lhe resposta, mais adiante. Depois de contar como deixou de se sentir mulher ao perder uma mama. Depois de recordar como juntos ultrapassaram a pressão da sociedade para que se “resguardasse” dos olhares públicos. Usando peruca, não indo à praia, ficando em casa. Todos os que olharam Carmen sem a sentenciar à morte salvaram-na. Sobretudo “o Nuno”. Que a fez sentir especial, mesmo quando a quimioterapia a punha a vomitar, ou lhe causava diarreia.

Descobriu que estava apaixonada durante o terceiro tratamento. “Pensava que ia morrer. Estava horrível. Pálida, inchada, careca. Mas no momento em que ele olhou para mim, senti-me a pessoa mais bonita do mundo. Para o Nuno, eu nunca fui uma mastectomia. Eu era a Carmen, simplesmente.” Quando tudo passou, riscou da lista a possibilidade de ter filhos. Haveria de recuperar a vontade. A custo. Com o apoio do companheiro. E porque o Nuno esteve sempre lá, hoje, o sorriso de Carmen, aos 36 anos, ao amamentar o pequeno Manuel, é tão infinito como o de qualquer mãe.

MEDO

Quando a viu sem cabelo, a pequena Isabel disse com inocência: “Ó mãe, tu és bonita, mas estás um bocadinho feia.” Bastou Diana Duarte não levar a filha dois dias seguidos à escola para que a menina desconfiasse que algo não estava bem. “Tive de arranjar uma maneira de lhe explicar. Não era a mesma coisa que uma gripe, mas ela não tinha entendimento suficiente para perceber a gravidade da situação.” Em todo o caso, realça a mãe, “ela tem sido excecional ao longo de tudo isto”. Enlaçadas uma na outra, excecionais têm sido as duas. Tiveram o suporte do ex-namorado de Diana. “Uma pessoa por quem tenho imenso carinho e uma gratidão enorme. Deu-me todo o apoio que podia imaginar.”

A relação acabou entretanto. “Estivemos juntos três anos, sendo que um, praticamente, foi comigo estando doente.” Um amor jovem que não resistiu ao desgaste dos dias, recorda Diana. Há um ano, quando tinha 25, um alto na axila deixou-a alarmada. Se se tivesse guiado pelo diagnóstico do médico que viu os seus exames teria sido tratada com alguns meses de atraso. Na altura, disse-lhe que estava tudo bem, não era nada de grave e para voltar daí a seis meses. “Se calhar já não ia a tempo, mesmo que fizesse todos os tratamentos. As pessoas têm de procurar segundas opiniões.” Agora, a lisboeta tenta retomar o ritmo de vida. Mas confessa que tem receio que volte a acontecer. “Tenho nódulos no outro lado, que para já não são malignos, mas é uma coisa que me assusta profundamente. Eu não quero passar por isto outra vez. Tenho 26 anos, tenho uma filha pequena e quero viver a minha vida.”

HUMILHAÇÃO

“Ele tinha muito o hábito de me dizer, olha a unimama.” No olhar de Célia Silva continua a morar a tristeza que as palavras do ex-marido lhe causavam. “Dizia isso à frente de qualquer pessoa.” Naqueles dias em que ela andava em tratamentos valeu-lhe a mãe, entretanto falecida. As duas enfrentavam o mesmo problema, o cancro de mama. Em menos de um ano foram ambas operadas. “O acompanhamento que não existiu por parte do meu ex-marido foi compensado pela minha mãe. Ela estava sempre presente. Era ela quem tratava de mim.”

Não doeu apenas a falta de apoio. Mas uma presença burocrática e implicativa. “Se eu tivesse de ir a Coimbra, ele era capaz de servir de motorista. Largava-me lá, mas não me acompanhava a nenhuma consulta”, recorda Célia, 44 anos. “Mesmo que fosse acompanhar-me à sala de quimioterapia, só fazia espalhafato, só gozava, só dizia palermices. Não era aquela pessoa de estar ali com algum sentimento. Gozava um bocado comigo…”

No meio disto, e com uma filha ainda pequena, “a intimidade foi sobrevivendo”. A separação deu-se quando Célia, que reside em Ílhavo, descobriu que o ex-marido já andava envolvido com outra pessoa.

Numa das conversas que tiveram, aquando da separação, o ex-marido chegou a dizer-lhe que se deviam ter separado quando souberam que ela tinha cancro. Hoje, ela concorda. “Se calhar teria sido melhor. Podia ter-me permitido viver a vida de uma outra forma.”

Depois de cada um ir para o seu lado, a tristeza deitou-a abaixo. Reergueu-se com a força do combate que tinha travado. “Então eu fintei a morte e agora vou-me deixar ir para a morte por causa disto? Enquanto a gente está aqui é para lutar.” A prótese que colocou há dois anos e meio ajudou-a a recuperar a autoestima. “As pessoas ou nos aceitam por completo ou não aceitam.”

ABANDONO

Estavam juntos quando notaram que ela tinha um caroço no peito, há pouco mais de um ano. Foi ele quem a acompanhou durante a operação e nos tratamentos. Levava-lhe comida e pijamas lavados. No dia no aniversário, tocou-lhe piano no IPO. Depois de tudo o que tinha feito, as palavras eram acessórias, mas mesmo assim ele proferiu-as. “Disse à minha família toda que íamos conseguir, que eu era a mulher da vida dele.” Mas as coisas mudaram. “Nunca mais se envolveu comigo sexualmente Foi-se afastando. Desculpando-se que tinha muito trabalho, foi fugindo, fugindo, até ao ponto de já não atender as chamadas.”

Hoje, Isadora Lum, 37 anos, portuense, confessa estar melhor. Sai mais com as amigas. Ri e dança. “Estou a tentar engrenar outra vez, mas nunca é a mesma coisa.” Desde que o ex-namorado desapareceu, não foi capaz de se envolver de novo com um homem. “A autoestima vai toda abaixo. Eu fiz dupla mastectomia, não sinto nada. Ainda para mais, era uma zona muito erógena para mim, tinha muito prazer.”

Foi isso que a fez erguer muros a quem se aproximasse. “Nem era o cabelo, o cabelo não me afeta. É a questão do peito. Da mutilação. E claro, o facto de ter sido abandonada.” Ainda por cima aconteceu ter a mesma doença que lhe levou a mãe. “A questão é os homens saberem que eu sou doente e pensarem: coitadinha, tem um cancro, já não vou investir nela, se calhar já não pode ser mãe, ou vai durar pouco.” Isadora, magoada, fala com um discurso desgovernando. Agradece a Joel, um amigo, e à família dela, por terem estado presentes quando mais ninguém estava. “Não tenho como lhes pagar”, garante, emocionada. Mas regressa sempre ao ex-namorado. “A única coisa que mudou foi eu ter perdido os seios. Foi isso que o fez deixar-me, não é? Não pode ter sido mais nada. Ele nunca me disse o motivo por que foi embora.”

COMPANHEIRISMO

Sílvia Soares, natural de Sesimbra, não tira da cabeça a possibilidade de ter andado dois anos a passear um cancro ao peito. Da primeira vez que notou o nódulo disseram-lhe que era benigno. O cansaço extremo começou a afetar-lhe as rotinas. Passados dois anos acorda com picadelas e sente outro nódulo. A médica repreende-a – “Não pode andar a fazer mamografias com esta frequência” – mas acede a repetir o exame. Foi direta para o IPO de Lisboa. “Está avançado, no nível 3, vamos tratá-la já.” Quando ouviu a frase viu-se morta.

Recorda que, quando saiu da consulta, chovia e trovejava. Como um prenúncio. O Paulo deu uns murros numa mesa e prometeu-lhe: “Não te vou deixar ir a lado nenhum.” Parou de trabalhar para a acompanhar nos tratamentos. E estava ali para garantir que a esperança não a largava. “Na ala da quimioterapia, que tem um ambiente muito pesado, ele punha-me a rir às gargalhadas”, conta Sílvia. No dia da operação entrou em pânico. “Comecei a pensar em tudo o que a mama representava: era a parte feminina, a parte sexual, a parte maternal e que uma coisa daquelas era uma maldade.”

Despertou com o peito reconstruído. “Não foi um choque tão grande, mas sente-se a perda na mesma.” Após a cirurgia, começou a fazer radioterapia. “A pele ficou queimada, seca, ressequida e estragou a reconstrução.” Teve de retirar a prótese. Ia desmaiando quando viu o “buraco que tinha na pele, como se ali tivesse caído uma bomba”. Foi nos braços do marido que chorou. Para Paulo, com ou sem mama, a mulher é a mesma. “Eu amo-a!”

A ausência do peito nunca foi uma barreira sexual. Contudo, ela sempre se retraiu e ele sempre compreendeu. “É normal.” O cancro de Sílvia, 41 anos, está agora no grau 4. Metastizado nos ossos. Ele diz-lhe para não pensar nisso e que o amor deles há de durar. “Até sermos velhinhos.”

REJEIÇÃO

O “estamos juntos para o bem e para o mal” durou nove meses. Após esse tempo, Patrícia Baltazar, do Barreiro, descobriu a infidelidade, com a qual tentou lidar. Sem sucesso. Travou duas batalhas simultâneas: defender a vida do cancro que lhe apareceu no peito e tentar salvar a relação de quatro anos. A gota de água aconteceu enquanto fazia os tratamentos de quimioterapia. Estava “já carequinha, sem maminha e com aquela característica cara de cancro”, quando o companheiro ganhou um prémio na empresa, uma viagem ao Havai, para duas pessoas. Podia ter sido uma lua-de-mel. Ele nem sequer a convidou. “Isso deixou-me muito insegura e revoltada”, sublinha.

A vida sexual também se tinha degradado com o tempo. “Ele tentava distrair-se de mim e distrair-me do sexo. Eu procurava o meu homem, à noite na cama, e o meu homem não me respondia. Foi a única vez que me senti rejeitada na vida”, diz com mágoa. Por achar que estava a ser um fardo na vida do companheiro “libertou-o”. Depois de recuperada voltou a encontrar alguém. Mas a história repetiu-se, com o regresso da doença. “Julgo que as pessoas fazem planos e terem alguém doente ao lado altera toda essa estratégia de vida”, analisa. Nos olhos claros de Patrícia vê-se a beleza de uma mulher que se abandonou ao destino. O cancro metastizou-se. Está nos dois pulmões e no cérebro.

Aos 41 anos, opta pela solidão. “Envolver-me iria causar sofrimento à outra pessoa e a mim.” Continua a ter os seus afetos e uma vida sexual ativa. Mesmo com a menopausa forçada. “Gosto de sexo, de fazer amor e de ternura. Mas rejeito ter uma relação. Não vou hipotecar a vida de ninguém.”