Annette Bening a atriz que quer, pode e manda

Texto Rui Pedro Tendinha, em Toronto

Há coincidências. Coincidências daquelas que não se explicam. Têm que ver com o destino dos filmes e dos seus percursos cósmicos. Ora bem, a maior atriz americana da sua geração, depois de Meryl Streep, foi mais uma vez esquecida pela Academia pelo seu desempenho memorável neste As Estrelas não Morrem em Liverpool, de Paul McGuigan, embora, enquanto presidente do júri no Festival de Veneza, tenha dado o prémio máximo a A Forma da Água, de Guillermo del Toro, o maior favorito aos Óscares com 13 nomeações.

Foi Annette quem começou o percurso de vitórias dessa fantasia. Em setembro, alguns dias após a gala final em Veneza, encontrámo­‑la no Intercontinental Hotel, na Baixa de Toronto. Estava orgulhosa de As Estrelas não Morrem em Liverpool, mas não parava de falar de A Forma da Água: «Amo mesmo esse filme! É encantador.»

O nosso encontro é, no entanto, para falar de As Estrelas não Morrem em Liverpool, crónica dos últimos dias de Gloria Grahame, estrela de Hollywood dos anos 1950 que, nos últimos dias da sua vida, viveu e trabalhou no Reino Unido e teve o seu derradeiro romance com Peter Turner, na altura um jovem bastante mais novo do que ela. Uma Annette Bening a interpretar uma mulher expansiva que no fim da vida enfrentou uma inglória luta contra o cancro e a amargura de ver a sua fama esquecida.

«Fazer uma atriz é um desafio ancestral, vem dos tempos de Shakespeare e tem camadas atrás de camadas», diz Annette Bening, confessando ainda que o mais interessante nesta altura
é fazer personagens com a sua idade.

«Continuo a ser uma estudante. Aprendo sempre em cada filme que faço. Todos nós aprendemos, não? Por muito que haja um padrão de produção, todos os filmes têm uma forma diferente. As pessoas não são iguais de filme para filme», diz.

Extasiada com As Estrelas não Morrem em Liverpool, filme que lhe valeu as mais rasgadas críticas nos últimos anos e que pode valer­‑lhe o prémio de interpretação feminina nos BAFTA (os prémios da Academia britânica), fala do «grande respeito que tem por Gloria Grahame» e conta que muito do que vemos neste filme se baseia no livro de memórias de Peter Turner, o jovem por quem Gloria se apaixonou.

«Falei muito com ele enquanto me preparava para o papel. É estranho uma estrela como ela ter ficado de repente com tão pouco trabalho, não é? Presumo que tenha que ver com a sua vida pessoal: divórcios e processos em tribunal… Ela acabou por sofrer muito», diz.

Não deixa de ser curioso Bening representar uma mulher que é bastante mais velha do que o seu amante, logo ela, que é casada com Warren Beatty, 21 anos mais velho. No filme, a atriz liga muito bem com Jamie Bell (que se tornou conhecido em Billy Elliot), jovem ator com uma energia contagiante. Entre eles, há uma fervorosa química cinematográfica.

Aos 60 anos, Annette Bening continua a sonhar com o Óscar, estatueta que a sua personagem chegou a vencer em Cativos do Mal, de Vincente Minnelli, em 1952:
«É claro que uma pessoa, quando está nomeada, pensa sempre nessas coisas…e nos discursos. É um instinto humano… Já fui nomeada quatro vezes e antes as coisas eram tão diferentes. Agora é tudo mediatizado! Ninguém tem culpa disso, tem que ver com a tecnologia, com as redes sociais. Toda esta histeria da temporada dos prémios tende a tornar­‑se um covil», diz.

Annette Bening e Jamie Bell (conhecido por Billy Elliot) criaram uma química forte em As Estrelas não Morrem em Liverpool.

De acordo com Annette Bening o que isto dá é a tendência para que os atores se concentrem mais no silêncio das interpretações e esqueçam os prémios. «O nosso trabalho é o oposto deste frenesim dos prémios e das galas mediatizadas. Esses prémios e o trabalho dos atores acabam por se afastar, cada vez mais.

O glamour, com o passar do tempo, torna­‑se cada vez mais uma mercadoria. É pena estarmos a ser guiados pelo comércio. Fico feliz de, no começo da minha carreira, não existirem as redes sociais e os telemóveis. Felizmente, posso fazer o que me apetece. Não sou obrigada a fazer os papéis que não quero.»

Se neste ano a sua omissão nos Óscares talvez se explique pelo facto de a concorrência estar realmente pujante, no ano passado, em Mulheres do Século XX, de Mike Mills, o caso foi mais grave. A sua interpretação de uma feminista à procura do amor e com a missão de educar um adolescente no final dos anos 1970 tinha algo que se assemelhava a uma graça divina.

Annette Bening anda a ser «roubada» pela Academia, a mesma que já a nomeou quatro vezes (Anatomia do Golpe, 1990; Beleza Americana, 1999; As Paixões de Julia, 2004; e Os Miúdos Estão Bem, 2010).

Sobre a sua arte de representação diz que é algo em constante mutação: «Depende muito do período em que estou na minha vida pessoal. O que nunca muda é que uso sempre uma parte diferente do meu cérebro quando ouço a palavra ação. Nesse instante, não penso em mais nada e entrego­‑me ao momento, fico mais livre! Não tem nada que ver com o meu intelecto.

Mas julgo que é igual a qualquer processo criativo.» A investigação intelectual, garante, fica à porta do plateau, é toda feita antes. Mas conhecendo o que fez em filmes como Valmont, de Milos Forman, ou Uma Noite com o Presidente, de Rob Reiner, pressentimos que é uma executante do instinto.

De forma instintiva ou não, uma atriz a interpretar uma atriz traz sempre um nível de desafio. Em A Paixão de Julia, Annette Bening tinha já desbravado território, ainda que em As Estrelas não Morrem em Liverpool haja um elemento de fascínio pessoal, quanto mais não seja porque Stephan Frears, quando a dirigiu em Anatomia do Golpe, pedia para se inspirar nas interpretações de Grahame.

«Fazer uma atriz é um desafio ancestral, vem dos tempos de Shakespeare e tem camadas atrás de camadas», diz, confessando ainda que o mais interessante nesta altura é fazer personagens com a sua idade, embora aqui exista também um cuidado na composição de uma mulher doente. Bening é particularmente exímia nas sinalizações da decadência física de uma senhora consumida por um cancro da mama.

Gloria Grahame, em pleno romance com Peter Turner, sempre recusou subjugar­‑se ao diagnóstico dos médicos e só quando a doença voltou a surgir em força, seis anos depois, é que sucumbiu, devido sobretudo a uma peritonite, sem nunca ter deixado de atuar em teatro.

Observar Annette Bening a transfor­mar­‑se numa mulher que decidiu recusar o lugar de paciente é algo muito comovente: «Todos nós já estivemos com pessoas muito doentes e percebe­‑se logo. Não queria que o olhar da minha Gloria não indicasse isso mesmo, nisso não quis mesmo falhar. Quis encontrar a essência dela como atriz sem nunca a imitar, mas também quis dar­‑lhe o olhar de doente. Isso era muito importante».

Os últimos e menos conhecidos tempos da vida de Gloria Grahame, grande atriz e estrela de Hollywood, deram um filme.

Gloria Grahame: uma star vencida pelo cancro

O caso de Gloria Grahame, atriz da Hollywood dos anos 1950, é um exemplo de como a Hollywood machista tratava as atrizes que não se dobravam segundo as regras do poder masculino. Por ter fama de mulher independente e com personalidade (fazia questão de se divorciar quando não era respeitada, teve quatro casamentos, sendo que um dos seus maridos foi Nicholas Ray, o cineasta de Fúria de Viver), terá perdido importância no contexto de Hollywood mesmo depois de ter vencido o Óscar e protagonizado filmes bem-sucedidos como Matar ou não Matar (1950), ao lado de Humphrey Bogart, Corrupção (1953), de Fritz Lang, ou Oklahoma (1955), de Fred Zinnemann.

A atriz que foi projetada pela MGM como uma loura bombshell (eram assim que se intitulavam as mulheres sensuais de Hollywood), sempre se assumiu como atriz e não como estrela. Quando Hollywood lhe virou as costas, experimentou o teatro, primeiro na Broadway e, depois, nos anos 1970, em Inglaterra, onde se sujeitou a produções menores, muitas vezes fora do West End de Londres. Neste filme de Paul McGuigan vemos Annette Bening na pele da Gloria Grahame em Londres e sem o glamour de outros tempos. A atriz viria morrer aos 51 anos com cancro da mama, em 1981.